A paz e a deterioração do Direito Internacional

 Eiiti Sato*

Mudanças na liderança da ordem mundial

Nos fins do século XX disseminou-se a percepção de que a ordem mundial passava por mudanças, mas as várias interpretações referiam-se basicamente a mudanças na liderança mundial. A ordem internacional sob a liderança americana havia ganhado seus contornos na forma de estratégias de desenvolvimento econômico e, no campo da política internacional, na competição da guerra fria entre capitalismo e marxismo.[1] Com efeito, a liderança americana produzira a ordem internacional assentada sobre instituições como a ONU, a OTAN, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, além de organizações regionais como a Comunidade Econômica Europeia, a Organização dos Estados Americanos e o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Dessa forma, sob a liderança americana, a ordem internacional fez avançar o Direito Internacional ao fomentar a formação de redes internacionais de cooperação política, econômica e social por meio de tratados transformados em organizações internacionais permanentes. Do ponto de vista dos resultados, os benefícios e os problemas dessa ordem, obviamente, não se distribuíram pelo mundo de forma homogênea. Algumas nações se beneficiaram bastante, enquanto outras nem tanto, ou simplesmente se mantiveram à margem das ações geradas no âmbito da ordem política e econômica. Se for levado em conta que o crescimento econômico é um dos reflexos mais significativos e mais visíveis dos resultados de qualquer ordem internacional, é possível dizer que, em um primeiro momento, o destaque ficou por conta da Europa Ocidental e do Japão que, com a ajuda americana, reconstruíram suas economias e reorganizaram suas instituições sociais, políticas e culturais após a Segunda Guerra Mundial.[2] Além disso, ainda contando com a cooperação dos EUA, vários programas de fomento ao desenvolvimento econômico foram postos em prática com o objetivo de disseminar a modernização e o crescimento econômico para que mais nações se juntassem ao eixo da economia mundial representado pelos EUA e pelas economias que mais rapidamente haviam se recuperado da destruição provocada pela Segunda Guerra Mundial.

Após o fim da guerra fria, claramente, o grande destaque ficou para as nações da Ásia, que adaptaram o espírito da competição capitalista à busca pela ordem e pela eficiência presentes na cultura ancestral da região, em especial no confucionismo. O fato é que, ainda dentro da ordem internacional construída sob a liderança dos EUA, a partir dos fins da década de 1980, emergiram várias economias na Ásia, que se destacaram pela rápida modernização e pelo dinamismo de suas economias traduzidos em elevadas taxas de crescimento,que se estenderam até as duas primeiras décadas do século XXI. Com efeito, primeiro vieram os “Tigres Asiáticos”, em seguida o fenômeno da emergência da China e, mais recentemente, da Índia que se tornou a 5ª economia do mundo.[3] No início deste século XXI, emergiu na cena internacional a sigla BRIC designando um novo grupo de países (Brasil, Rússia, Índia e China) que, em virtude de suas dimensões e de seu desempenho econômico, estariam se movendo para o centro da ordem internacional, juntando-se aos EUA, ao Japão e à União Europeia no manejo dos destinos da ordem política e econômica mundial.[4] Em resumo,fazia parte da crença que se movia no substrato da ordem mundial construída sob a liderança dos EUA, que esse movimento em direção ao centro deveria ocorrer em todas as regiões do mundo. Esperava-se que especialmente as nações da América Latina seguissem essa rota, inclusive pela proximidade geográfica em relação aos EUA. Apesar de tudo, por várias razões, as nações latino-americanas rejeitaram, ao menos parcialmente, as estratégias de modernização e de crescimento presentes na ordem econômica internacional, preferindo trilhar outros caminhos. Entre os casos mais notáveis de rejeição da ordem internacional depois da Segunda Guerra Mundial destaca-se o caso de Cuba que, com a tomada do poder por Fidel Castro em 1959, decidiu romper com os EUA e com as instituições da ordem vigente preferindo se associar à União Soviética. Desde então Cuba passou a viver isolada da ordem política e econômica mundial, cuja situação piorou ainda mais após o colapso da União Soviética. Em outras palavras, mudanças na liderança na ordem internacional ocorreram em larga medida porque eram previstas e até mesmo desejadas. O que não se esperava era o fenômeno desencadeado recentemente do desprezo pelos tratados e pelo Direito Internacional, que se tornou mais notadamente visível com a invasão da Ucrânia. 

A construção do Direito Internacional

No processo de formação do Direito Internacional, os tratados desempenharam um papel central na formação de um ambiente para as relações entre nações que se organizavam em Estados nacionais. Empregava-se a expressão “santidade dos tratados” para reforçar a ideia de que os tratados deveriam ser respeitados. Pensadores como Francisco de Vitória (1483-1546), Emerich de Vattel (1714-1767) e, principalmente, Abbé de Saint-Pierre (1658~1743),de variadas formas, desenvolveram o argumento de que os tratados internacionais seriam a alternativa eficaz para a guerra.[5]

Nesse processo, que deu origem ao Direito Internacional na cultura política das nações do Ocidente, além da valorização dos tratados, um dos princípios mais centrais do Direito Internacional, que é o da “guerra justa”, foi discutido e amplamente questionado, sendo objeto de reflexão tanto por parte de filósofos e juristas quanto por governantes. A ideia de que a religião era motivo de “guerra justa” foi abandonada pelas nações do Ocidente após a calamidade em que se transformou a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Com efeito, a destruição causada por essa guerra, que envolveu praticamente todos os reinos europeus, só foi superada pela Primeira Guerra Mundial, trezentos anos depois. Apesar das enormes perdas de vidas humanas e da destruição de propriedades, pode-se dizer que a guerra resultara em um verdadeiro “empate” entre católicos e protestantes. Ou seja, ao final da guerra, os reinos católicos continuariam católicos e os reinos protestantes continuariam protestantes. Constatou-se também que, nessa guerra, além da religião, muitos outros interesses definiram alianças e adversários tais como direitos de sucessão, domínio sobre feudos, liberdade e direitos sobre o comércio etc.[6] Se não existisse essa variedade de interesses, como se poderia explicar a aliança na guerra entre a França católica, comandada por um Cardeal, com um reino protestante como a Suécia?

Assim, pode-se dizer que, implicitamente nos Tratados de Westfalia (1648), que selaram o fim a Guerra dos Trinta Anos, abandonou-se no Ocidente (que incluía a Rússia) o princípio de que a religião era motivo de “guerra justa”. No Direito Internacional nascente se sancionava o princípio de que a única condição de “guerra justa” se configuraria quando uma nação fosse atacada sem que tivesse cometido qualquer injúria grave contra essa nação. De acordo com esse Direito Internacional, por princípio, disputas sobre direitos, especialmente territoriais, seriam resolvidos por meio da diplomacia ou por cortes internacionais tanto permanentes quanto por cortes ad hoc. Esse entendimento sobre “guerra justa” foi, assim, incorporado ao Direito Internacional. Nesse sentido, na esteira das conferências de Paz realizadas na Haia (1899 e 1907) foram criadas a Corte Permanente de Arbitragem e a Corte Internacional de Justiça que, após a Segunda Guerra Mundial, passaram a integrar o Sistema ONU.

A volta do uso da força e a deterioração do Direito Internacional

Em fevereiro de 2022, ao invadir a Ucrânia apenas sob a alegação de que, historicamente, partes da Ucrânia pertenciam à Rússia e que a política da OTAN estaria pondo em risco a segurança dos interesses da Rússia, o princípio da “guerra justa” foi formalmente abandonado por uma potência de grande relevância na cena mundial. Apesar de as principais nações do Ocidente terem condenado a invasão e até mesmo oferecido ajuda militar à Ucrânia, o estado de guerra já persiste por mais de dois anos e tudo indica que, ao afinal, a Rússia acabará obtendo muitos dos resultados desejados com a invasão da Ucrânia.

Os fatos correntes mostram que a importância da guerra iniciada e travada unilateralmente por uma grande potência como a Rússia sobre uma potência menor como a Ucrânia não fica circunscrita apenas à esfera do Direito Internacional. Na realidade, serve como precedente na política e já tem produzido consequências sobre as relações internacionais onde os tratados vêm perdendo sua “santidade” e os princípios como o da “guerra justa” ou da “não intervenção” vêm  deixando de ser um referencial como norma moral para o comportamento das nações.

No Oriente essa perda de eficácia do Direito Internacional tem incentivado a China a endurecer suas reivindicações internacionais, em especial em relação a Taiwan e a Hong Kong, e também tem ajudado a reforçar a postura agressiva do governo da Coreia do Norte. Do mesmo modo, o precedente da invasão da Ucrânia tem estimulado a Índia a tornar-se mais intransigente nas suas demandas territoriais nas regiões do Himalaia contra o Paquistão e contra a própria China. Na América do Sul, um continente considerado notavelmente pacífico desde a Segunda Guerra Mundial, recentemente tornou-se destaque na cena internacional em razão da reivindicação da Venezuela que, por meio de ações unilaterais,tenta incorporar ao seu território a região de Ezequibo.

A iniciativa do governo da Venezuela já foi objeto de reprovação formal por parte da Corte Internacional de Justiça da ONU, e também significou o rompimento com o que ficou acordado na reunião realizada em São Vicente e Granadinas em dezembro de 2023. Nesse encontro os governos da Guiana e da Venezuela se comprometeram a não tomar iniciativas unilaterais que prejudicassem a busca de uma solução pacífica para a disputa sobre o território de Ezequibo. O caso do conflito armado, que eclodiu a partir do ataque do Hamas em outubro de 2023, por sua vez, vem se agravando e ameaçando ganhar amplitude dentro da mesma tendência de dar preferência a ações armadas em detrimento da diplomacia e do Direito Internacional.

Assim,são várias as ações e iniciativas que, claramente, vão na mesma direção da invasão da Ucrânia pelas forças militares da Rússia,e que têm “pipocado” em diferentes regiões do mundo indicando o crescente desprezo à diplomacia e ao Direito Internacional e uma tentação cada vez maior de se recorrer ao emprego da força. São fatos que revelam a emergência de novos padrões no comportamento da ordem internacional. Uma ordem internacional construída ao longo de mais de um século, que revelava ser possível mudar e transformar lideranças no mundo de modo pacífico, vai dando espaço para o velho padrão no qual o uso da força na política internacional gera direitos. 

Duas questões inquietantes 

Nesse quadro, muitos desdobramentos podem ocorrer nas relações internacionais e ao menos duas questões emergem como preocupantes no curto prazo. No plano global, a questão preocupante que emerge é saber como o jogo do equilíbrio de poder será manejado pelas potências em um mundo em que armamentos são cada vez mais letais e mais precisos enquanto arsenais de destruição em massa estão bastante disseminados, inclusive para potências menores e com visões religiosas e políticas excludentes e radicais. A segunda questão é saber o que nações como o Brasil, que não aproveitaram as sete décadas de relativa paz, após a Segunda Guerra Mundial, para construir um poderio econômico e estratégico suficientemente relevantes, e que deixaram o crime organizado se expandir de forma significativa, podem fazer diante dessa ordem internacional em transformação na qual a diplomacia e o Direito Internacional perdem espaço para o emprego da força de forma crescente. 

*Eiiti Sato, Dr. é formado em Economia (FAAP); mestre em Relações Internacionais (Universidade de Cambridge, U.K.), e doutor em Sociologia (USP). É professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB, dedicando-se ao ensino e à reflexão sobre filosofia, teoria e história das Relações Internacionais. Foi diretor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (2006-2014), e foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), tendo sido seu primeiro presidente (2005-2007).

Notas: 

[1] Em 1950 o PIB dos EUA era 7% maior do que o de outras 6 grandes potências somadas, incluindo-se a União Soviética (P. Kennedy, The Rise and Fall of the Great Powers. Fontana Press, 1989, p. 475).

[2] Em 1990 Henry Nau, que havia servido o governo americano em posições estratégicas, publicou o livro The Myth of America’s Decline (Oxford University Press, 1990). Na obra o autor traz muitos dados interessantes sobre o legado da liderança americana na construção e implementação da ordem de Bretton Woods.

[3] Os “Tigres Asiáticos” na realidade passaram a apresentar elevadas taxas de crescimento desde os fins da década de 1960. Depois vieram os “Novos Tigres Asiáticos” que também passaram a se modernizar e a apresentar elevadas taxas de crescimento (Filipinas, Indonésia, Malásia, Tailândia e Vietnã).

[4] Atribui-se a Jim O’Neill, que assina o relatório da empresa de estudos econômicos Goldman Sachs intitulado Building Better Global Economic BRICs, de 2001. BRIC em inglês significa tijolo e esse “tijolo” seria formado por quatro grandes economias emergentes: Brasil, Rússia, Índia e China.

[5] Francisco de Vitória, mesmo sendo frade dominicano, desenvolveu o argumento de que o fato de um rei não ser cristão não poderia ser motivo de guerra por parte da Espanha ou de qualquer outro reino cristão. Abbé de Saint-Pierre propõe a formação de uma União das nações europeias em substituição à paz por meio jogo do equilíbrio de poder. Vattel sistematizou de forma pioneira um código de Direito Internacional.

[6] Na historiografia a Guerra dos Trinta Anos é referida como “guerra religiosa”, pois teria se iniciado com os conflitos e perseguições entre católicos e reformistas mas, no final, os principais resultados da guerra foram traduzidos nos Tratados de Westphalia que, na essência, reconhecia o direito de os reinos católicos continuarem católicos e dos protestantes praticarem o protestantismo (C. V. Wedgwood, The Thirty Years War. Pimlico Ed., 1992).