Uma coisa é o Brasil, outra é Lula
Marcelo de Paiva Abreu*
O Estado de São Paulo, segunda-feira, 3.5.2010
Têm sido frequentes as tentativas de rebater as críticas à política externa adotada desde 2003, com base na constatação de que publicações estrangeiras afirmam que "nunca o Brasil teve tanto prestígio". Sem entrar no mérito de tais avaliações e, mesmo acreditando que protagonismo e voluntarismo não são alicerces ideais de uma política externa eficaz, é importante desfazer confusões que impedem uma avaliação menos superficial da política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Avaliação que ajude a alicerçar análise realista do que poderá ser a política externa pós-Lula.
É indubitável que a percepção que a opinião pública mundial tem do Brasil, hoje, configura avanço em relação ao passado. O Brasil, afinal, pode ser levado a sério depois da superação da inflação crônica que solapou sua credibilidade internacional por longo tempo. Reformas seletivas permitiram minorar distorções setoriais ou sociais mais gritantes. Por outro lado, houve o impacto favorável da imagem do presidente Lula na opinião pública internacional, que culminou no "this is the guy" de Barack Obama.
A política externa brasileira tem sido marcada pela simbiose do protagonismo institucional do Itamaraty com o protagonismo pessoal do presidente da República. Com base na diplomacia presidencial, vicejou a concentração de esforços em assegurar um lugar no novo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Multiplicaram-se as iniciativas de cunho político. Para o bem ou para o mal, a política externa foi acomodada à exploração da boa marca Lula.
A avaliação substantiva da política externa nos últimos oito anos sugere que os resultados estão longe de memoráveis. Do ponto de vista da imagem de Lula, contudo, o resultado é favorável.
Lula é hoje um líder mundial indubitavelmente influente. Mas isso não significa que a política externa brasileira tenha tido sucesso. Uma coisa é o Brasil, outra é Lula.
A sucessão de Lula se encarregará de sublinhar a diferença entre a avaliação da política externa e da política de exposição da imagem internacional do presidente. Será sustentável a atual política externa a partir do início de 2010? De fato, nem José Serra nem Dilma Rousseff têm perfis que se assemelhem de longe ao de Lula. No atual governo, a política externa caracterizou-se por privilegiar a forma em detrimento da substância. Sem poder contar com um substituto de Lula no plano midiático, a política externa do novo governo teria de ser rebalanceada para dar ênfase à substância. Menos protagonismo presidencial, menos fogos de artifício, mais arroz com feijão.
Ambos os candidatos podem aproveitar a limitada herança substantiva a ser recebida do atual governo sem ter grandes problemas. Talvez a melhor parte dessa herança seja o que se acumulou em reputação desde o início dos panels sobre algodão e açúcar em 2002, na Organização Mundial do Comércio (OMC). E, também, nas negociações da Rodada Doha. Embora a coalizão do G-20 da OMC se tenha trincado, há uma reputação que poderá ser útil em negociações futuras. Muito do que se fez quanto a negociações políticas também é pouco controvertido, embora os resultados sejam etéreos: integração na América do Sul, cooperação política com os demais países que compõem o Bric e relações com Índia e África do Sul no âmbito do Ibas.
As questões espinhosas a enfrentar no terreno político têm a ver com iniciativas que o atual governo considera como sinais de "altivez" e seus críticos consideram demonstrações de imprudência. Por razões distintas, quem suceder a Lula provavelmente tenderá a moderar tais iniciativas, em particular quanto ao Irã e seu programa nuclear e à sintonia automática com a hostilidade do neobolivarianismo aos Estados Unidos. Seja por discordância, seja por insegurança, mesmo que temporária.
Resta saber se algum dos dois candidatos terá condições de alcançar resultados substanciais na política externa, que sejam capazes de compensar o arrefecimento do ativismo "protagônico". Há pouco espaço para otimismo. Os candidatos têm indicado que haveria reticência, se não hostilidade, a negociações bilaterais, regionais ou multilaterais no terreno econômico.
De um lado, protecionismo pertinaz e alinhamento estreito com interesses industriais. De outro, além de protecionismo, crença quase religiosa no papel condutor do Estado.
O risco é que isso resulte em política externa sem fogos de artifício, mas, também, sem grande substância.
*Doutor em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular no Departamento de Economia da PUC-Rio.
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