A Guerra dos
Mascates
Paulo Roberto de Almeida
O romance
homônimo de José de Alencar, um dos mais importantes escritores do Brasil
oitocentista, reporta-se ao conflito entre Olinda e Recife, no início do século
XVIII. A luta opôs as famílias proprietárias de engenhos do interior aos
habitantes de Recife, onde residiam os “mascates”, como eram designados os
comerciantes portugueses. A disputa era uma mistura de poder econômico e poder
político, pois que os comerciantes do Recife pretendiam fugir à autoridade de
Olinda, então sede da capitania. Depois de alguns entreveros, os recifenses
solicitaram e obtiveram da Corôa liberdade de jurisdição para sua cidade, então
uma simples vila portuária.
Estamos
assistindo a uma nova guerra dos mascates, mas ela não se dá em torno de um
projeto de liberdade política ou jurisdicional, mas por incapacidade
concorrencial, como revelado na disputa dos fabricantes argentinos contra seus
“irmãos” brasileiros, supostamente aliados e parceiros da mesma união aduaneira
e do mesmo projeto de mercado comum. Desde vários anos, os industriais
argentinos, sustentados por suas autoridades políticas, movem uma guerra de
posições contra a entrada de produtos brasileiros em seu território, numa
flagrante ilegalidade em relação aos princípios do tratado de Assunção (1991),
que criou o Mercosul.
O mais incrível nessa disputa,
feita de golpes baixos e de medidas arbitrárias, é que o protecionismo dos
argentinos está sendo apoiado pelas próprias autoridades brasileiras, num total
desrespeito aos interesses dos empresários brasileiros, que investiram e se
prepararam para disputar espaços do que seria um território “liberado”. Com
efeito, as medidas ilegais e abusivas dos novos mascates estão em dissonância
com as normas da zona de livre comércio que deveria existir desde o primeiro
dia de janeiro de 1995, aprovada na conferência de Ouro Preto, de dezembro de
1994.
Sim, o
leitor leu corretamente: a zona de livre comércio (ZLC), isto é, a liberdade de
circulação de mercadorias, deveria estar em vigor há quase 20 anos, e se ela
continua a ser, ainda hoje, essa cortina furada que todos sabemos que é, tal se
deve à incapacidade dos países membros de implementar o que eles mesmos
acordaram na capital paraguaia em 1991. Ora, não apenas a união aduaneira não
se completou, mas a ZLC continua sendo uma promessa, mirífica ao que parece. Se
o governo FHC ainda ameaçava retaliar contra restrições similares que vinham
sendo impostas contra os interesses brasileiros por parte do governo Menem, as administrações posteriores brasileiras não esboçam sequer um sinal de reação, achando
que sendo leniente com essas ilegalidades pode “fortalecer” o Mercosul .
De fato, a Argentina tem pleno
direito de, atendendo às normas do GATT e da OMC, de introduzir salvaguardas
não discriminatórias contra a importação de quaisquer produtos que possam estar
provocando perdas insuportáveis aos produtores locais, desde que ela prove que
as dificuldades derivam dessas importações. Ela não o fez, e sequer se
preocupou em argumentar na OMC que as medidas de defesa comercial eram
justificadas e necessárias. Mas ela nunca poderia fazê-lo no quadro do
Mercosul. Ela transferiu ao Brasil o ônus da incapacidade concorrencial dos
seus produtores industriais, impondo aos nossos fabricantes uma discriminação
que não encontra respaldo nos acordos do Mercosul. Ora, em lugar de protestar e
de colocar uma reclamação contra as medidas ilegais da Argentina, seja no
âmbito dos mecanismos de solução de controvérsia da OMC, seja no âmbito do
próprio Mercosul, o que fazem as autoridades brasileiras encarregadas do setor?
Nada, absolutamente nada. Ou
melhor, ainda demonstram “compreensão”, aderindo à falsa tese argentina das
“assimetrias estruturais”. Elas pensam estar, assim, “reforçando” o
Mercosul, quando se está, na verdade, minando-lhe os fundamentos, a ponto de
torná-lo inviável e não operacional. Trata-se de um equívoco incomensurável,
desde os tempos em que David Ricardo formulou sua teoria das vantagens
comparativas, no início do século XIX. Como todos sabem, a base essencial de
qualquer relação de comércio é, precisamente, a existência de “assimetrias
estruturais” entre países, que só assim conseguem confrontar suas
especializações respectivas. Sem isso não haveria comércio.
É preocupante constatar que se fazem concessões comerciais sem barganhas, não apenas aos
argentinos, mas a vários outros “parceiros” comerciais, em nome de ilusórios
ganhos políticos. No caso da Argentina, porém, a leniência brasileira já provocou perdas de milhões de dólares aos nossos
industriais. Será que o Brasil vai continuar fazendo concessões indevidas à
Argentina? Talvez tenham razão os industriais paulistas: em lugar de conservar
a ficção do Mercosul, melhor fazê-lo retroceder a uma ZLC. Antes que vire uma
zona…
Um comentário:
- E por falar da Argentina ...
http://www.libremente.org/?p=1123
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