Choque entre
2 visões de Brasil
Lourival Sant’Anna
O Estado de S.Paulo, 30 de março de 2014
O conflito, que refletia a divisão do mundo entre
capitalismo e comunismo, fermentava desde o início da década, ganhou as ruas e
teve seu desfecho com a intervenção militar
É quase sempre arbitrária e
discutível a definição do momento desencadeador de um acontecimento histórico.
A tentação é grande de retroceder um pouco mais na busca do ponto de inflexão,
do fato definidor. Com o golpe de 64 não é diferente. Mas talvez não seja possível
entender aquele ambiente sem recuar pelo menos até a ascensão de Getúlio Vargas
em 1930 e a implantação de seu Estado Novo (1937-45). Naquele período, o
ditador populista e autoritário encarnou a figura paterna com que tanto sonham, do Descobrimento até hoje, gerações
sucessivas de brasileiros, que se sentem desamparados sem um provedor, seja um
senhor de escravos, imperador, marechal, coronel ou governante, ao mesmo tempo
implacável, benevolente, poderoso.
Getúlio saiu e voltou. Retomado o ciclo dos governos democráticos, foi
antecedido e sucedido por presidentes mais ou menos liberais e carismáticos.
Mas seu suicídio em 1954 e sua carta-testamento selaram de forma quase mágica o
papel do pai austero e protetor. Ao eleger Juscelino Kubitschek em 1955, os
brasileiros buscaram uma resposta mais racional para os seus anseios. JK
governava com "planos de meta", que resultaram na industrialização e
na interiorização do País, por meio de rodovias e da construção de Brasília.
Mas o apego popular ao getulismo ficou manifesto na eleição do vice, João
Goulart, ministro do Trabalho e herdeiro político de Getúlio, que teve mais
votos que Juscelino.
Conterrâneo de Getúlio, Jango, como era conhecido, rico fazendeiro de
São Borja, no interior do Rio Grande do Sul, tinha convite, em meados dos anos
40, para entrar para o PSD, o mesmo partido do futuro presidente JK. Foi por
intervenção direta de Getúlio, amigo de seu pai, recém-saído da Presidência,
que Jango entrou para o PTB gaúcho. São dados biográficos importantes, que
compõem o seu perfil futuro, de trabalhista híbrido, líder indeciso, que
parecia ter de ser empurrado para o seu destino quase tão trágico quanto o de
seu mentor - a desistência não pelo suicídio, mas pela renúncia sem
resistência, seguida do exílio.
A posse de Juscelino teve de ser assegurada pelo general Henrique Lott,
então ministro da Guerra, contra oficiais que tentaram impedi-la, por
considerar a composição PSD-PTB à esquerda demais. Aí o golpe de 64 teve o seu
primeiro ensaio, e as duas vertentes doutrinárias do oficialato - a legalista e
a linha dura - se explicitaram. Os mandatos eram de cinco anos, sem direito à
reeleição do presidente, mas os vices podiam voltar a se candidatar, e sua
eleição era separada da do presidente. Em 1960, Jango consolidou sua
popularidade, voltando a se eleger vice de Jânio Quadros, da coligação liderada
pela UDN, principal partido conservador do País. Se no mandato anterior havia
certa convergência entre o PSD e o PTB, e se Juscelino em certo sentido
representava o ponto médio entre as correntes liberais e trabalhistas, com sua
abordagem "social-democrata" de desenvolvimento, a eleição de 60
lançou o País na rota da divergência ideológica.
Jânio. Precursor do populismo de direita que depois se atualizaria em figuras
como Paulo Maluf e Fernando Collor de Mello, Jânio foi o primeiro a dominar com
maestria a mensagem dos meios de comunicação de massa. Venceu a eleição
empunhando uma "vassourinha" para "varrer a corrupção" e
lanchando sanduíches de mortadela nos comícios , para se identificar com os
trabalhadores das grandes cidades. Excêntrico, imprevisível e intuitivo, Jânio
estava longe de ser um líder liberal no sentido clássico. No seu curto mandato
de sete meses, não esboçou uma política econômica coerente. No ambiente
internacional envenenado pela Guerra Fria - a disputa por influência entre os
Estados Unidos e a União Soviética -, explorou o arraigado sentimento
anti-imperialista brasileiro ao condecorar o líder guerrilheiro argentino
Ernesto Che Guevara, ícone da Revolução Cubana de dois anos antes, que então
começava a alinhar-se com o bloco comunista.
No Comício da Central do Brasil, 18 dias antes do golpe, foto de Getúlio Vargas indica influência de sua visão de Estado intervencionista sobre Jango e líderes sindicais
Essas ambivalências acompanhariam o drama que estava por se desenrolar,
e continuariam presentes na visão de Estado paternalista, provedor e
autoritário que une grande parte dos brasileiros até hoje. Mesmo que a divisão
não fosse clara e linear - e talvez poucas coisas o sejam no Brasil -, havia
duas visões, dois modelos, dois rumos para o País, que colidiram na composição
Jan-Jan (Jânio-Jango) e nos acontecimentos seguintes.
Em aparente manobra para angariar maior apoio no Congresso, o impulsivo
Jânio renunciou em agosto de 1961, denunciando "forças ocultas" nunca
vistas à luz da História. Jango recebeu a notícia em Cingapura, depois ter
passado pela China comunista, em missão acertada com o presidente, como parte
de sua política externa desalinhada com o esquema das duas superpotências - EUA
e URSS.
O golpe de 64 teve então o seu segundo - e mais robusto - ensaio.
Exército, Marinha e Aeronáutica tinham cada uma seu ministro, que, juntamente
com o da Guerra, marechal Odílio Denis, tentaram impedir a posse do vice, pelo
fato de ser apoiado pelos partidos Comunista e Socialista Brasileiro (PCB e
PSB). A posse foi garantida, mais uma vez, pela corrente legalista, liderada,
agora da reserva, pelo marechal Lott, que fora candidato a presidente na chapa de
Jango. Assim como em 1955, o general Humberto de Castelo Branco fez parte desse
grupo. Dessa vez, no entanto, foi necessário um acordo, pelo qual o
presidencialismo deu lugar ao parlamentarismo. Tancredo Neves, do PSD, foi
eleito primeiro-ministro.
O incidente abriu espaço para o protagonismo de Leonel Brizola,
governador do Rio Grande do Sul pelo PTB e cunhado de Jango, que promoveu a
"campanha da legalidade". Um plebiscito em janeiro de 1963 traria de
volta o presidencialismo. Jango, no entanto, seguiria com apoio insuficiente no
Congresso e nas Forças Armadas, e cada vez mais dependente do respaldo das
"massas trabalhadoras", organizadas pelos sindicatos vinculados ao
PTB e crescentemente hipnotizadas pela retórica febril de Brizola, que, já como
deputado federal, disputava influência nacional com seu cunhado. Brizola
pressionava Jango para adotar "reformas de base". Sabendo que não
havia apoio no Legislativo para elas, falava em Assembleia Constituinte (o que
era traduzido por "fechar o Congresso"), e em impô-las "na
marra".
Acuado, sem alternativa de apoio, Jango, de índole conciliadora, pareceu
vencer a própria relutância e atropelar a própria natureza no Comício da
Central do Brasil, no Rio, no dia 13 de março de 1964, quando adotou a
beligerância e a impaciência do cunhado - "vou falar em linguagem que pode
ser rude", desculpou-se. Anunciou que havia assinado o decreto de reforma
agrária e a nacionalização de cinco refinarias, criticou a Constituição e citou
o "supremo sacrifício" de Getúlio Vargas. Bandeiras comunistas
tingiam de vermelho a multidão de 150 mil a 200 mil pessoas.
Comunismo. Em reação ao que era percebido como o risco de "comunização"
do Brasil - apesar de trabalhismo e comunismo competirem entre si -, foram
organizadas as "Marchas da Família com Deus pela Liberdade", com
apoio da Igreja e de setores liberais. A Marcha começou em São Paulo, no dia
19, onde reuniu entre 300 mil e 500 mil pessoas, e se espalhou por várias
outras cidades, totalizando 1 milhão de manifestantes. Eles defendiam a
Constituição, a propriedade e a democracia.
Em 25 de março, cerca de 2 mil marinheiros, sob influência do PCB,
desafiaram o ministro da Marinha, Silvio Mota, celebrando o aniversário de uma
associação que havia sido declarada ilegal. No dia 30, Jango compareceu a uma
reunião de cerca de mil cabos e sargentos no Automóvel Club, no Rio, e
pronunciou seu discurso mais virulento, em que falou de "represálias do
povo" contra seus adversários, financiados pelo Exterior. Era uma
referência ao escândalo de ajuda financeira americana à campanha de deputados.
Alarmados com a possibilidade de o Brasil converter-se numa Cuba continental,
os Estados Unidos patrocinaram também o Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais (Ipes), com sede no Rio, que fazia filmes de propaganda anticomunista.
Os dois episódios foram considerados tão provocativos para o oficialato
que se especula se não foram estimulados por agentes da linha dura. Eles
demoveram a maioria dos legalistas de suas hesitações - a começar por Castelo
Branco, chefe do Estado-Maior. A reação foi imediata - e atropelou a cúpula. De
prontidão desde o Comício da Central do Brasil, o 10.º Regimento de Infantaria,
de Juiz de Fora, pôs-se em marcha às 12h30 do dia 31, rumo ao Rio. Quando
entraram em contato com as tropas sublevadas na estrada, as forças supostamente
legalistas se congraçaram com os companheiros e aderiram ao golpe.
Seis dias depois, a ‘Marcha da Família com Deus pela Liberdade’, que começou
em São Paulo e espalhou-se pelo País, denunciou o ‘risco comunista’
EUA. Os Estados Unidos enviaram uma força-tarefa com um porta-aviões,
quatro destróiers, duas escoltas e navios-tanque, para apoiar a intervenção
militar. Mas deram meia-volta muito antes de se aproximar da costa brasileira.
A rápida adesão dos comandantes levou Goulart a renunciar, partindo para o
exílio no Uruguai. Castelo Branco venceu uma surda disputa de poder com o
general Artur da Costa e Silva, líder da linha dura, e sagrou-se comandante da
"revolução redentora da democracia", como foi chamada por seus
partidários. O Congresso o elegeu presidente, e ele tomou posse no dia 15 de
abril.
A intenção dos setores civis que apoiaram o golpe - e aparentemente da
ala dos militares legalistas liderados por Castelo - era evitar um possível
"autogolpe" de Jango, no qual se presumia que ele fecharia o
Congresso e imporia suas reformas de base, inaugurando uma "ditadura do
proletariado" tropical, aqui chamada de "república
sindicalista". Entretanto, Costa e Silva liderou o que entrou para a
história como o "golpe dentro do golpe". Numa sequência de decretos
paradoxalmente denominados "atos institucionais", a ditadura militar
foi gradualmente se instalando, com o cancelamento da eleição presidencial de
1965, o banimento de partidos, a abolição dos direitos e liberdades. A cada
quatro anos, um Congresso subserviente elegeu um general-presidente, escolhido
antes pela cúpula das Forças Armadas.
A ditadura durou 21 anos, deixando marcas na sociedade brasileira com a
tortura e o desaparecimento de opositores. Na economia, seu legado foi
ambivalente: de um lado, a inflação e o endividamento elevados; de outro, a
implantação de uma importante infraestrutura no País. Toda essa história é
contada em detalhes, em muitos casos inéditos, nas páginas que seguem.
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