A Magna Carta completa 800
anos: alguma lição para o Brasil?
Paulo Roberto de Almeida
O Estado de S. Paulo, Opinião, 14/07/2014
O Estado de S. Paulo, Opinião, 14/07/2014
Dentro de pouco menos de um ano (mais exatamente em 15
de junho de 2015), a Magna Carta completará 800 anos. Os interessados em
conhecer o seu conteúdo, em inglês moderno, podem consultar este link no site
dos Arquivos Nacionais americanos: http://www.archives.gov/exhibits/featured_documents/magna_carta/translation.html. Uma explicação contextualizada sobre o seu
significado histórico, e sobre a influência que ela teve na formação do
constitucionalismo americano e no próprio espírito do povo americano, figura
nestes dois outros links da mesma instituição, bastante instrutivos, por sinal:
http://www.archives.gov/exhibits/featured_documents/magna_carta/ e http://www.archives.gov/exhibits/featured_documents/magna_carta/legacy.html.
A carta é uma espécie de obrigação formal assumida por
um rei substituto com barões ingleses revoltados, mas ela constitui, sem dúvida
alguma, a base de todas as liberdades modernas: a do princípio democrático, a do
governo pelo consentimento dos governados, a da taxação com representação, a do
respeito da propriedade pessoal e a do devido processo legal. “Nenhum homem
livre”, se lê num dos parágrafos da carta, “será preso ou destituído de suas
posses, ou considerado fora da lei, ou exilado, ou de alguma forma
prejudicado... salvo mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pela lei
do país. A ninguém será negado o direito ou a justiça”. Antes de aporem suas
assinaturas, os barões confirmavam que “todos os costumes e liberdades acima
citados, que nós garantimos existir neste reino que a nós pertence, têm de ser
observados por todos, religiosos ou laicos, e todos devem respeitá-los com
respeito a todos os demais.”
Seria interessante, a esse respeito, focar sobre o
caso brasileiro para tentar determinar, exatamente, até onde ainda não chegamos, em relação à aplicação
plena dos princípios da Carta. Os barões da Inglaterra medieval estavam se
revoltando contra um rei ladrão, João Sem Terras, que foi obrigado a assinar o
compromisso de consultar seus súditos nos casos especificados na Carta. No
nosso caso é um pouco diferente, o que complica as coisas: aqui talvez haja uma
conivência entre os barões e os ladrões.
Quando os nossos barões – que por enquanto são só
ladrões – se revoltarem contra a prepotência do Estado, contra as exações fiscais
do príncipe, contra a falta de representação real no corpo parlamentar, contra
as deformações da democracia, contra a corrupção (que eles mesmos patrocinam,
ao comprar parlamentares, ao sustentar lobistas, ao subsidiar partidos
mafiosos), contra as políticas especiais de puxadinhos e improvisações (que
eles mesmos, ademais, pedem ao Estado todo poderoso), quando, enfim, os barões
capitalistas conseguirem conduzir uma fronda empresarial contra o Estado,
contra os corruptos que eles mesmos colocaram no poder, então, talvez, nos
aproximaremos um pouco, pelo menos, dos valores e princípios da Carta de 1215.
Estamos um pouco atrasados, como todos podem
constatar. Mas não só nós.
Os franceses também, pois só foram conduzir uma fronda
aristocrática depois que os ingleses já tinham decapitado um rei, que abusava
justamente de seus poderes. Estes consentiram com o início de um outro reinado,
depois de uma breve experiência republicana – um pouco sangrenta, para qualquer
padrão –, mas resolveram tirar esse mesmo rei, desta vez pacificamente, depois
que ele resolveu ser tão arbitrário quanto o decapitado, pretendendo retomar os
antigos hábitos absolutistas da sua família. Os ingleses, então, “importaram”
uma nova dinastia do continente, aprovaram um Bill of Rights que limitava sensivelmente
– na verdade podava totalmente – os poderes do novo soberano, e desde então
vivem pacificamente com os seus soberanos de teatro (mais para comedia dell'arte do que tragédias shakespeareanas).
Em todo caso, eles são a mais velha democracia do mundo, em funcionamento
contínuo desde 1688.
Foram seguidos mais tarde, ainda que no formato
republicano, mas absorvendo todas as bondades da Magna Carta e do Bill of
Rights, pelos seus expatriados da Nova Inglaterra e das demais colônias, que se
revoltaram justamente quando os ingleses, ou melhor, o seu rei empreendeu uma
tosquia muito forte nos rendimentos dos colonos, decidindo aumentar as taxas
sobre o chá e cobrar outros impostos. Ah, os impostos...
A fronda dos americanos foi uma revolução, como eles a
chamam, mas com isso criaram a primeira democracia moderna da história, e que
se mantém até hoje, com a mesma constituição original e algumas poucas emendas.
Enquanto isso, os franceses estavam guilhotinando o seu rei, para construir um
poder ainda centralizado e opressor.
Não se pode, obviamente comparar a constituição
americana com nenhuma das nossas sete cartas constitucionais – com dois ou três
grandes remendos no curso de nossa história autoritária – e as dezenas, quase
uma centena, de emendas à mais recente (talvez não a última) carta, tratando
dos assuntos mais prosaicos. Tem uma que regula trabalho de domésticas: alguma
outra constituição abriga algo tão bizarro? Nada contra trabalhadores
domésticos, mas não creio que eles devam figurar numa constituição.
Enfim, os nossos barões, que também são extorquidos
pelos príncipes que nos governam, não parecem ter muita disposição para mudar o
cenário, menos ainda para decapitar algum soberano. Talvez devessem: quando a
carga fiscal passar de 40%, por exemplo, quem sabe eles resolvem fazer a sua fronda
empresarial? Afinal de contas estamos falando de dois quintos da riqueza
produzida pela sociedade que é apropriada pelo Estado, o que representa duas
derramas coloniais: pela metade disso, Tiradentes e seus amigos se revoltaram
contra a prepotência da coroa. Libertas
quae sera tamen?
Paulo Roberto de Almeida
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