Sobre
as ‘causas’ do golpe militar de 1964
Paulo Roberto de Almeida
Um historiador, já famoso por seus
trabalhos de outra forma equilibrados e bastante conhecidos sobre o golpe
“civil-militar” de 31 de março de 1964 – mais propriamente civil, como ele mesmo
gosta de enfatizar – e de ensaios igualmente meritórios sobre o regime militar
e de todo o período que se seguiu, termina um recente artigo sobre a questão de
forma absolutamente surpreendente. Ele afirmou o seguinte:
“Quando um jornalista me perguntou
qual era a causa, ‘em uma palavra’, do golpe de 1964, eu respondi: ‘o medo’. O
autoritarismo que marcava e marca a sociedade brasileira expressou-se, naquela
ocasião, no medo das elites e da classe média diante das possíveis conquistas
sociais que as propostas de reforma de base representavam: mais vagas nas
universidades, tabelamento dos aluguéis, reforma agrária etc. Essa talvez seja
a principal atualidade do golpe de 1964.”
(Carlos
Fico, “50 anos do golpe: balanço”, blog Brasil
Recente, 20/11/2014; link: http://www.brasilrecente.com/2014/11/50-anos-do-golpe-balanco.html?spref=fb)
Já comentei esta surpreendente afirmação
– que destoa de outros argumentos mais razoáveis nesse seu curto artigo – em
uma postagem rápida de meu blog, escrita on spot, ou seja, apenas como reação
inicial a uma questão que me parece importante no quadro dos debates que
tivemos durante o ano, pela passagem dos 50 anos do golpe (ver o link: https://www.facebook.com/paulobooks/posts/838895436173908?pnref=story). Também já escrevi o suficiente
sobre a farsa das “reformas de base” do governo Goulart – que ficaram como um
slogan, apenas, pois nunca vi algum desses que se referem a elas se
aprofundarem em seu exame – para não ter que voltar ao exame de cada uma nesta
oportunidade. Quem quiser conhecer a análise que fiz, pode buscar este texto: “Deformações
da História do Brasil: o governo Goulart, o mito das reformas de base e o
maniqueísmo historiográfico em torno do movimento militar de 1964”, Revista do Clube Militar (Rio de Janeiro: ano LXXXVI, no 452,
fevereiro-março-abril de 2014; edição especial: “31 de Março de 1964 – A
Verdade”, p. 107-122; ISSN: 0101-6547; disponível na plataforma Academia.edu
(link: https://www.academia.edu/9430621/2590_Deforma%C3%A7%C3%B5es_da_Hist%C3%B3ria_do_Brasil_o_governo_Goulart_o_mito_das_reformas_de_base_e_o_manique%C3%ADsmo_historiogr%C3%A1fico_em_torno_do_movimento_militar_de_1964_2014_).
Vou tratar aqui mais em detalhe da
afirmação do professor, acima transcrita, e ater-me estritamente às suas
palavras, no que julgo ser um saudável exercício de debate acadêmico, aberto a
todas as pessoas que dispõem de argumentos substantivos sobre os conceitos
emitidos e o sentido que se lhes pode atribuir no contexto daquele processo
histórico, de tão profundas consequências para mais de uma geração de
brasileiros.
As palavras-chaves de sua resposta
ao jornalista, talvez formulada rapidamente, sem a necessária reflexão (mas ela
foi transcrita, posteriormente, para artigo escrito e, como tal, publicado num
blog, o que é evidência de reflexão e de aprovação pessoal do argumento
desenvolvido), são as seguintes: (a) “causa” (em uma palavra); (b) “medo”; (c) “possíveis
conquistas sociais”; (d) “reformas de base”; (e) “atualidade do golpe de 1964”.
Se todos concordarem com isso, procedo agora ao exame de cada um desses
conceitos, tentando ser fiel ao contexto da época e ao espírito do historiador
que trabalha sobre temas tão graves, em suas consequências políticas, e de tal
complexidade para justificar inclusive certa fratura historiográfica, o que
também não deixei de registrar na abertura de meu artigo acima referido.
Em primeiro lugar, poucos historiadores,
ou cientistas sociais, seriam capazes de realizar uma síntese tão arriscada quanto
apontar “a causa, ‘em uma palavra’, do golpe de 1964”. Parece
evidente que evento, ou episódio tão momentoso, não possui uma causa podendo
ser expressa numa única palavra, e seria difícil encontrar um único conceito
que pudesse resumir toda a complexidade de uma grave crise política que vinha
se arrastando desde o segundo governo Vargas, pelo menos, e talvez durante toda
a era Vargas. As crises políticas brasileiras, constantes e regulares durante
toda a República de 1946, refletiam as divisões existentes igualmente em outras
formações políticas da América Latina, que colocavam em confronto estatistas e
“livre-mercadistas”, liberais e “desenvolvimentistas”, conservadores e
“progressistas”, e várias combinações possíveis dessas classificações. O uso de
aspas em vários desses conceitos se justificam em função de possíveis
interpretações ambíguas sobre seu real significado.
Não existiu uma única causa para o golpe – ou o movimento civil-militar,
como prefere o próprio professor – e se as causas pudessem ser resumidas sob
algum conceito provavelmente este não seria o “medo” das elites e da classe
média das “reformas de base” do presidente Goulart (e dos movimentos que o
apoiavam). Vou estender-me sobre esse suposto medo mais abaixo, mas antes vou
abordar um outro conceito usado como suposto real da sociedade brasileira
naquele momento, que é incorporado ao discurso do professor como algo natural,
ou esperado: o “autoritarismo”. Por que a sociedade brasileira seria
autoritária, mesmo naquela época e naquele contexto? Haveria algum tendência
política majoritária que impeliria a sociedade para o autoritarismo?
A afirmação é tanto mais
surpreendente porque nenhuma sociedade, em seu conjunto, pode ser considerada
autoritária, como se isto fosse uma emanação cultural, ou algum traço
civilizatório que pudesse marcar estruturalmente sociedades modernas, que são
sempre mais complexas do que simples comunidades agrícolas ou pastoris,
divididas entre diferentes classes, com interesses e objetivos políticos muito
diversos entre elas. Vamos ver alguns precedentes históricos em torno desta
questão.
Ao examinar a evolução da sociedade
moderna, poderíamos, por acaso, considerar a sociedade francesa do final do
século XVIII e do decorrer do século XIX como autoritária, em primeiro lugar
porque passou pelo Terror do período do Termidor, quando Robespierre deu início
ao período mais autoritário da revolução francesa, um período aliás admirado
por Lênin e alguns outros? Seria ela autoritária porque seguiu o primeiro
cônsul Bonaparte no seu 18 Brumário, e depois ao criar o maior império
centralizado que já conheceu aquele velho país de tradições libertárias? Ou ao
apoiar, novamente, o sobrinho, em sua eleição presidencial pós-1848, e depois
novamente quando este fez o seu próprio 18 Brumário e se proclamou imperador,
como o tio?
Seria a sociedade japonesa pós-Meiji
autoritária? E a da Prússia, antes e depois da formação do Império alemão, também?
Seria elas autoritárias porque apoiaram as derivas militaristas de suas
lideranças políticas e militares, nos dois processos que presidiram à ascensão
dessas duas novas potências no quadro de conflitos interimperiais do início do
século XX? Seria autoritária a sociedade italiana dessa mesma época, por ter
sancionado e seguido a liderança fascista de Mussolini, até quase o final do
mais desastroso experimento político da Itália contemporânea. E seria
autoritária a sociedade brasileira, por ter apoiado, em sua ampla maioria, os
militares que derrubaram Goulart e deram início a um regime que deveria ser de
correção dos problemas do momento – inflação, grevismo político, quebra de
hierarquia nas FFAA, ameaça comunista – e de renovação dos quadros dirigentes?
Parece difícil admitir que a
sociedade brasileira fosse “autoritária”, sob qualquer critério, inclusive porque
a maior parte dos historiadores “progressistas”, ou seja, os que se posicionam
claramente contra o golpe, não deixam de mencionar o “amplo apoio das massas” às
“reformas de base” e às demais medidas “progressistas” de Goulart. Muitos desses
historiadores consideram que tais reformas foram interrompidas por uma minoria
conservadora, ou mesmo reacionária, que, lamentavelmente, colocou a alta cúpula
das Forças Armadas a serviço dos latifundiários e da alta burguesia, ambos aliados
ao imperialismo, segundo as interpretações correntes. Pareceria contraditório, portanto,
mencionar o caráter “popular” dessas reformas, e ao mesmo tempo alegar a
natureza autoritária da sociedade como um todo.
Creio que se pode, assim, descartar
essa característica, que não se fundamenta em alguma análise empiricamente
embasada que pudesse sustentar tal argumento para o Brasil de meio século atrás.
Sociedades, em geral, não são uniformemente autoritárias, mas lideranças
políticas específicas podem conduzir a maioria da cidadania a adotar uma tal
postura em função de peculiaridades que se desenvolvem ao longo de uma história
política marcada por eventos e processos que favorecem o autoritarismo (crises
internas, aumento da anomia, graves desafios externos, ruptura de padrões
anteriores). Em resumo, não existem evidências quanto ao “autoritarismo” da
sociedade brasileira ao início dos anos 1960: provavelmente ela apenas seria um
pouco mais conservadora do que foi o caso no período subsequente, acompanhando
tendências comportamentais já detectadas, aliás, outras sociedades em outros
países.
Chegamos agora ao suposto medo que
teria, não a sociedade brasileira, mas especificamente as classes médias e as
elites, de conquistas sociais que estariam embutidas – como se elas fossem uma
certeza – nas reformas de base. Na verdade, o que havia, nos meses que
precederam o golpe, era uma grande agitação em torno dessas reformas, mas
jamais uma ação coerente para colocá-las em vigor, seja mediante medidas
administrativas, as que não dependiam de processo legislativo – como a oferta
de vagas nas universidades públicas, por exemplo –, seja pelo envio de projetos
de lei que teriam de passar pela aprovação do Congresso para se converterem em
realidade, como grande parte delas: reforma agrária em modalidades não
previstas na Constituição (mas o governo poderia fazê-la sobre terras públicas,
obviamente), voto do analfabeto e dos militares (com elegibilidade para ambos),
ou diferentes medidas econômicas. Já tratei de cada uma delas no artigo citado
acima, para retomar cada uma em detalhe.
O governo Goulart foi incapaz de
desenvolver uma ação coordenada para levar adiante seu conjunto de reformas –
que de toda forma não existiam como um programa coerente, tendo o conceito sido
consolidado praticamente ex-post – e se contentou, às vésperas da crise final –
que se desenvolveu de forma independente a qualquer ação em torno das reformas –,
em assinar dois decretos: um previa a desapropriação de terras ao longo das
grandes vias federais para fins de reforma agrária, e outro a fixação de um
teto para os alugueis urbanos, cujo aumento contínuo era creditado à
especulação imobiliária, não à inflação que, naquela altura já rodava ao ritmo
de 90% ao ano. A classe média – e de fato todos os brasileiros – tinham mais
medo da inflação do que de supostas conquistas sociais que seriam asseguradas
por reformas diáfanas e vagas, raramente expressas em projetos legislativos.
Poucos historiadores (que são essencialmente
políticos) se dão conta dos efeitos devastadores que uma inflação quase
ultrapassando os três dígitos poderia ter sobre o poder de compra e os projetos
de poupança (sempre remunerada a 6% ao ano) do conjunto dos brasileiros, que
até então não tinham sido apresentados à fórmula mágica (e alimentadora da
mesma inflação) da indexação, ou correção monetária (introduzida mais adiante
sob o regime militar). Poucos desses historiadores se dão igualmente conta dos
efeitos devastadores sobre os princípios militares da hierarquia e da
disciplina que tiveram a revolta dos sargentos de setembro de 1963 (por motivos
essencialmente políticos, diga-se de passagem) e a dos marinheiros, no início
do ano seguinte. Mais grave ainda foi a sanção dada pelo poder político a esses
atos de insubordinação e de desrespeito aos comandantes militares, o que
indispôs a maior parte dos comandantes com o presidente da República e seus
principais auxiliares, entre eles sindicalistas ligados ao Partido Comunista,
considerado o inimigo principal da soberania do país desde a Intentona de 1935.
Havia, sim, na classe média, nas
elites e principalmente nas Forças Armadas um sentimento de medo muito preciso,
que não tinha nada a ver com as reformas de base, e sim com esse mesmo
espantalho do comunismo, na verdade uma ameaça considerada real para os
principais protagonistas do drama político que se desenvolvia no auge da Guerra
Fria. Elementos indispensáveis desse clima algo paranoico eram os avanços do
comunismo além das fronteiras da Europa oriental, com a revolução cubana, a
crise dos misseis soviéticos em Cuba e várias bravatas dos líderes soviéticos
sobre a possibilidade de o comunismo “enterrar o capitalismo”, como havia
proclamado pouco antes Nikita Kruschov, o Secretário-Geral do PCUS. Ignorar que
esse temor fosse uma preocupação legítima de amplos setores da sociedade
brasileira seria considerar que a maior parte da população teria de assumir os
pressupostos soi-disant progressistas e majoritariamente anti-imperialistas
desses mesmos historiadores e analistas políticos da academia.
A verdade é que a maioria da
sociedade brasileira estava – independentemente da mobilização dos grupos,
partidos e movimentos de esquerda e direita – exasperada com o ambiente quase
caótico vivido durante todos os confusos meses de lutas políticas vividos no
período imediatamente anterior ao golpe. Esse ato de ruptura na legalidade
democrática não estava exatamente planejado, nem obedecia a uma conspiração
preparada pelas elites nacionais em conluio com o imperialismo, como tendem a
proclamar os adeptos da historiografia de esquerda. Ele acabou se impondo por
um conjunto desigual de circunstâncias, entre as quais se contam o ânimo oposicionista
de governadores interessados na presidência e a impetuosidade de alguns chefes
militares, todos eles observados de perto pelos observadores diplomáticos e
agentes do setor de inteligência da embaixada dos Estados Unidos. O Big Brother
hemisférico não estava obviamente disposto a deixar se instalar no continente
um outro regime que poderia ser não uma nova Cuba, mas uma espécie de nova
China, pela dimensão e importância do país. No ambiente exacerbado da Guerra
Fria se tratava igualmente de uma preocupação legítima da maior potência
capitalista e líder do chamado “mundo livre”.
Cabe considerar, finalmente, o que
seria essa “atualidade do golpe de 1964”, que estaria contida na alegação de que foi o
medo da classe média das “reformas de base” que precipitou o golpe militar,
como se o mesmo processo pudesse se desenvolver nos dias que correm. Reformas
são desenvolvidas todos os dias a todos os momentos dos processos políticos
conhecidos em quase todas as democracia de mercado, e em alguns regimes menos
democráticos também. Não são elas que precipitam a radicalização das forças
sociais, se conduzidas pelos canais normais da democracia representativa. O que
pode, sim, exacerbar paixões e precipitar rupturas não institucionais é a
quebra de padrões e a ameaça de rebaixamento das condições de vida, que soem
ocorrer em processos inflacionários virulentos, acoplados à quebra de confiança
nas autoridades políticas. Foi isso, finalmente, que ocorreu no Brasil de
1963-64, e é isso que vem ocorrendo atualmente na Venezuela, e em menor escala
na Argentina, por exemplo.
As condições “ideais” para a
intervenção dos militares na arena política estão, no entanto, longe de se
reproduzirem novamente, e pode-se inclusive dizer que o longo regime militar
registrado de meados dos anos 1960 aos 80 pode ter imunizado o país de novas
aventuras desse gênero. Nem o ambiente internacional, com a derrocada total, e
aparentemente definitiva, do comunismo, suscitaria o mesmo clima de exacerbação
dos espíritos como ocorria no auge da Guerra Fria. A menos que o mesmo caos
político que caracterizou o governo Goulart se imponha novamente ao país, com forte
descontrole inflacionário e quebra da legalidade em diferentes instâncias da
vida política e social, não existe clima nem condições objetivos para qualquer
“atualidade” de um golpe. Não se imagina tampouco qualquer temor da classe
média ou das elites por reformas que promovam maior grau de igualdade
distributiva e inclusão social, desde que conduzidas pelos canais admitidos do
jogo político-partidário e dos mecanismos institucionais de representação
política e de ação legislativa. A hipótese, portanto, simplesmente não existe, não
cabendo, em consequência, qualquer argumento em favor da “atualidade” dessas
“reformas de base”, um conjunto heteróclito e desordenado de propostas que
adquiriu foros de mito, sem ter consistência empírica para tal.
Grande parte do trabalho do
historiador consiste, entre outras tarefas de cunho interpretativo, em separar
os discursos dos atores políticos – sempre tentados pela retórica fácil e
muitas vezes demagógica – das ações efetivas tomadas no terreno dos processos
em curso na arena das barganhas e negociações entre eles mesmos. Via de regra,
sociedades avançam por meio de reformas progressivas, não mediante golpes ou
revoluções, que de resto não são planejados, nem passíveis de uma coordenação
efetiva entre seus supostos líderes. Tais rupturas são eminentemente acidentais
na vida dos países, e se dão no quadro de deteriorações graves da vida social,
política e econômica. Esse era o quadro do Brasil meio século atrás; não parece
mais ser o caso atualmente, em que pese a permanência de alguns atores que
parecem não ter aprendido quase nada com as infelizes experiências tentadas
numa sociedade em crise.
As marcas dessa crise podem não ter
desaparecido inteiramente no espírito de alguns atores e observadores do drama
de meio século atrás. Certos eventos exigem a passagem de mais de uma geração
de atores e espectadores para que um julgamento não passional possa ser feito
por aqueles que se ocupam de interpretar o passado.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 23 de novembro de 2014.
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