Falcatruas lulopetistas (subintelequituais) dos
acadêmicos gramscianos
Paulo Roberto de Almeida
[Considerações
sobre uma utopia passageira; falta uma vacina lógica]
O fenômeno lulopetista, que dominou a política – e
muito das mentalidades – no Brasil das últimas duas décadas (senão mais), pode
ter alguma explicação teórica mais elaborada, mas não creio, sinceramente, que
ele mereça mais do que um único capítulo na história futura do Brasil, aquela
que vai ser escrita apenas dentro de duas gerações, aproximadamente, quando as
paixões políticas amainarem e a consciência do imenso atraso institucional (sem
falar da destruição econômica) acarretado por esse fenômeno tomarem o lugar de
certos comportamentos histéricos que se observam atualmente em alguns meios bem
determinados. Vou tratar basicamente desse fenômeno que considero passageiro,
sem a capacidade de sequestrar todo um povo, e de o manter imobilizado num
populismo de baixa extração, como ocorreu, por exemplo, na vizinha Argentina,
com o peronismo, que pode ser considerado uma múmia que tomou como refém toda
uma nação (ou pelo menos grande parte dela) durante várias gerações.
Comparado ao fenômeno relativamente durável do
peronismo – que dispunha de uma doutrina, o justicialismo – e que se manteve ativo,
ainda que dividido, durante muito tempo após o desaparecimento do seu fundador,
o lulopetismo representa no máximo um peronismo de botequim, com muita bazófia
e nenhuma elaboração política mais consistente, pura catarse, que antes de
sequestrar a nação parece ter sequestrado os corações e mentes de acadêmicos
gramscianos totalmente desconectados da realidade. O lulopetismo nunca dispôs
de alguma doutrina política mais elaborada, em que pesem os esforços de alguns
acadêmicos gramscianos no sentido de prover o populismo rude de seu líder com
algumas ideias coerentes entre si, além e acima de alguns slogans mal
formulados por marqueteiros apressados, explorados abusivamente pelo “Nosso
Guia”.
O lulopetismo foi, durante certo tempo, maior do que o
partido que lhe deu origem, o PT – formado basicamente por três principais
componentes: os sindicalistas, os guerrilheiros reciclados e os adeptos da
teologia da libertação, que compõem a massa de manobra, sendo que os dirigentes
são extraídos dos dois primeiros componentes –, mas ele teve um sucesso de
certa forma maior do que o partido, e isso graças a um outro componente que
normalmente não aparece entre os apparatchiks e líderes partidários, mas que
são responsáveis por muito do seu sucesso político e eleitoral (até agora).
O partido, e o próprio personagem que representou sua
alma, sua imagem, e que foi responsável por um grande triunfo eleitoral em mais
de três mandatos, devem esse sucesso não tanto ao dinheiro e à capacidade de
organização dos sindicatos que lhe são fiéis, ou aos apparatchiks do partido
vindos das antigas organizações de oposição ao regime militar, ou ainda à sua
base social bastante diversificada nos estratos humildes da população
(consolidados mais solidamente depois da conquista do poder), mas ao poder de
comunicação de diversas categorias de trabalhadores “intelectuais” –
professores, jornalistas, funcionários públicos, classe média educada nos
padrões “freireanos” de nossa educação pública (e privada também) – que,
juntos, construíram os mitos sobre os quais se apoiou o lulopetismo durante sua
fase ascensional, e que continua a perdurar ainda agora, numa fase de relativo
declínio, talvez irresistível. Com efeito, não se sabe se o mito – que é na
verdade uma falcatrua – saberá resistir aos golpes das investigações policiais
e judiciarias, que devem levar boa parte da tropa dirigente do partido às barras
dos tribunais e possivelmente à cadeia.
Mas, a julgar por toda a publicidade em torno dos
grandes “benefícios sociais” do lulopetismo, e pela imensa reação suscitada
pelo “golpe” do impeachment – com cinco ou seis livros publicados, antes mesmo
o processo estar consumado – essa mistura indigesta de populismo econômico, de
propaganda enganosa e de cinismo político que é o lulopetismo parece ainda
dispor, e gozar, de amplos apoios em certos círculos sociais e em ambientes
profissionais (entre os sindicalistas, por exemplo, mas continuadamente entre
professores e jornalistas), o que promete, justamente, certa sobrevida ao
fenômeno em causa, mesmo quando o seu líder estiver trancafiado por crimes
cometidos contra o patrimônio público e o código penal. Entre os motivos dessa
resiliência (pelo menos temporária) eu coloco a difusão desse gramscismo de
academia, que não precisa de Gramsci, ou de qualquer outra teoria política,
para se instalar e se disseminar, pois ele corresponde a um “estado de
espírito” que “plana” nesses meios sociais e profissionais independentemente
das leituras – ou falta de – que possam exibir os agentes políticos do
fenômeno, ou identificados a ele.
Essa persistência da “crença” no fenômeno vago do
lulopetismo foi demonstrada especificamente na conjuntura dos últimos meses,
quando, a despeito dos imensos golpes assestados contra a “respeitabilidade” de
“doutrina” (se existe alguma) e do personagem pelos crimes revelados nas
investigações da PF e do MPF, setores ainda representativos da vida cultural,
acadêmica e profissional se reagruparam atrás do próprio e do partido para
defender não se sabe bem quais “conquistas sociais” que estavam sendo ameaçadas
duplamente: pelo processo de impeachment e pela Operação Lava Jato. Nos meses
de maior frenesi, antes da consumação do processo político no Congresso, eu
contei muitos manifestos redigidos por diretorias de respeitáveis (assim
pensava, em todo caso) associações profissionais, todas elas numa linguagem
similar, em defesa do governo corrupto e do partido convertido em organização
criminosa.
Terminei por me perguntar, numa postagem de meu blog Diplomatizzando, quais seriam as razões,
as motivações, os propósitos que estavam levando acadêmicos experientes, muitos
até com doutorado ou pós-doc, a insistir na defesa de criminosos reconhecidos,
indiciados ou condenados pela Justiça, vários equiparados a bandidos vulgares, a
delinquentes comuns (pela tipificação dos roubos cometidos contra o patrimônio
público), mas vários deles organizados numa quadrilha mafiosa (desculpem a
redundância), enfim, o que estaria por trás dessa insistência no apoio aos
meliantes políticos ante tantas provas dos “malfeitos” já disponibilizadas nos
relatórios policiais e nos processos do MPF? Confesso não ter encontrado respostas
convincentes, ao menos que satisfizessem meu desejo de explicações lógicas,
concordantes com as verdades expostas, com a factibilidade dos crimes
perpetrados pelos aliados dos gramscianos.
O que pensar da adesão de artistas, profissionais da
mídia, acadêmicos de peso, além e acima dos militantes do baixo clero e dos
sindicalistas, dos quais não se espera mesmo outra atitude, inclusive em função
dos benefícios materiais que muitos dessa segunda categoria retiravam e
retiraram do lulopetismo no poder? A primeira categoria, em princípio, não
estava diretamente envolvida com o exercício direto do poder ou foi a
beneficiária direta das benesses que, não obstante, sempre fluem a partir do
poder para os grupos de “companheiros de viagem”, aos apoiadores voluntários e
aos associados políticos dos lulopetistas no poder (e agora fora dele). Não sei
como essas pessoas, geralmente alfabetizadas (tanto quanto se possa julgar),
supostamente bem conectadas, e de fato dispondo de todos os meios de informação
possíveis, puderam e podem continuar apoiando personagens e partidos
notoriamente implicados, envolvidos, responsáveis por crimes comprovados; por
quais razões eles fariam e continuam fazendo isso? Seria por cegueira
ideológica, ignorância deliberada, fundamentalismo político, ou será mesmo
falta de caráter?
O que, exatamente, induziria
indivíduos normalmente bem constituídos, quase sempre dispondo de diplomas
superiores, a continuar defendendo os chefes de quadrilha e seus integrantes,
numa fase em que se torna muito difícil ignorar os relatórios
da Polícia Federal, assim como as peças acusatórias do MPF e da chamada “República
de Curitiba”, contendo provas cabais daquilo que pessoas bem informadas, mas também
jornalistas abertos a simples evidências factuais, desconfiavam, e agora
constataram efetivamente: o fato notório de que o Brasil estava sendo
governado, desde 2003, por um governo que terminou se identificando a uma
organização criminosa. Não existe, a rigor, nenhuma objeção de princípio, a que
indivíduos das mais diversas origens e condições sociais manifestem sua adesão
a plataformas de direita, de esquerda, de centro, ou que elas se disponham a
defender os programas sociais e as políticas econômicas que julgam mais
adequadas às suas crenças ou concepções de vida. Fica no entanto muito difícil
admitir que se possa defender, contra todas as evidências já disponíveis,
lideranças políticas, funcionários de governo ou responsáveis empresariais notoriamente
e comprovadamente envolvidos com os piores crimes de corrupção e de
responsabilidade política, tais como assistidos no Brasil na última década e
meia.
Independentemente do
julgamento que se possa ter sobre a qualidade da política econômica que levou o
Brasil ao que pode ser chamado – depois da Grande Depressão dos anos 1930, e da
Grande Recessão do período recente – de Grande Destruição, o mais surpreendente
é, de fato, a defesa acerba que os gramscianos acadêmicos fazem de criminosos
políticos, que são, na verdade, bandidos comuns: assaltantes do
dinheiro público (isto é, nosso), quadrilheiros vulgares. Quem ainda insiste em
fazê-lo, ante tantas evidências dos crimes cometidos pelos companheiros, por
razões ideológicas, ou por quaisquer outros motivos, só revela sua falta de
caráter, pois já não pode alegar ignorância ou o argumento canhestro de que “todo
mundo sempre fez assim”.
Como não admitir, em face dos crimes cometidos,
devidamente identificados e em processo de julgamento e condenação, que o
Brasil passou a ser dirigido, a partir de 2003, por uma organização criminosa? Com
a instalação dessa organização criminosa no poder, os companheiros inauguraram
um “modo superior de corrupção”, e adotaram uma técnica sistemática,
abrangente, de extração de recursos do Estado e da sociedade. Eles não roubavam
apenas para o partido, confirmando a minha tese, “dialética”, da passagem da
quantidade para a qualidade, de acordo com o velho Friedrich Engels. Qual foi a
natureza do “salto dialético” da roubalheira lulopetista?
Tal upgrade se expressa pela transição de um “modo de
produção” da corrupção de sua fase artesanal, que é quando políticos roubam por
si, para si, individualmente, (como sempre fizeram), para uma fase industrial
do “modo de produção" da corrupção, que é quando o partido passa a roubar
de modo sistêmico, em grande escala. O que não impediu, obviamente, que os
companheiros também passassem a roubar pelo modo tradicional, para si, em si e
por si, alguns até (os “mais iguais”, como certo ministro das finanças da
quadrilha), em escala verdadeiramente gigantesca, multinacional.
A amplitude da roubalheira foi evidentemente muito
maior do que o até aqui noticiado nos meios de comunicação. Por exemplo:
contratos das grandes companhias de construção, ou de engenharia em geral
(sobretudo nos terrenos do petróleo e afins) representam apenas a “crème de la
crème” da corrupção institucionalizada, aquela que rendeu, por certo, centenas
de milhões, ou bilhões, à quadrilha de meliantes instalada no poder. Mas os
roubos, as falcatruas, os desvios de dinheiro, os superfaturamentos, as
propinas, a extorsão, a rapina, tudo isso se estendeu por praticamente todas as
áreas, sublinho TODAS, do setor público e se disseminou também ao setor
privado, na medida em que praticamente todo o ambiente de negócios no Brasil é
controlado por regras impostas pelo Estado, a começar pelo contexto regulatório
e pelo sistema tributário.
Mais até do que roubar diretamente, os companheiros
fizeram valer o seu exemplo criminoso em quase todas as esferas da
administração pública (contaminando muitos outros partidos) e até na vida
civil, na qual cada indivíduo se julgou habilitado a roubar, a trapacear e a
fraudar, já que o exemplo vinha de cima. Os anos do lulopetismo no poder, além
da extrema incompetência, o que redundou na Grande Destruição da economia do
país, foram também, e principalmente, os anos do desmantelamento institucional
(salvaram-se, felizmente, alguns bastiões do republicanismo, o que nos levou à
Lava Jato, tristemente sozinha na sua missão extirpadora) e sobretudo na grande
degradação moral e ética a que fomos levados por termos, justamente, uma
organização criminosa no poder.
Ainda não se fez o balanço de tudo o que o Brasil
perdeu, no plano estritamente orçamentário, mas também em termos morais, com a
quadrilha totalitária no poder, e muito não poderá ser devidamente verificado,
por ausência de registros, justamente (o que deve ter sido deliberado). Mais
importante ainda, dificilmente se poderá aferir, de modo adequado, no futuro, o
imenso custo-oportunidade que o Brasil perdeu com mais de uma década de
políticas absolutamente erradas, em praticamente todas as áreas. Mas mesmo naquelas
áreas e políticas que podem ser consideradas como bem sucedidas – como a
pretensa redistribuição de renda via Bolsa Família e outros mecanismos com finalidade
similares – são, na verdade, equivocadas na forma e na substância, uma vez que
não são sustentáveis a longo prazo, e não apenas por dificuldades fiscais ou de
natureza orçamentária. Políticas redistributivas de renda sem contrapartidas
claras ou sem mecanismos de saída claramente identificados costumam provocar
deformações nos mercados laborais, ou até – o que é mais sutil no plano da
psicologia social – na concepção geral de sociedade que se pretende promover:
uma baseada na iniciativa individual ou na responsabilidade pessoal quanto ao
trabalho promotor de dignidade social, ou outra fundada no assistencialismo
estatal que redunda, na maior parte dos casos, na criação de um curral
eleitoral que reproduz velhos esquemas do Brasil tradicional dominado por
oligarquias patrimonialistas.
Não cabe entrar aqui num debate sobre a diplomacia do
lulopetismo, outro item não apenas controverso no reinado dos companheiros, mas
vergonhoso do ponto de vista da diplomacia profissional, quando o Brasil passou
a estar alinhado com algumas das piores ditaduras da região e alhures, e quando
também diversas iniciativas de política externa permaneceram na sombra,
obscurecidas por contatos paralelos que jamais deixaram registro nos arquivos
da diplomacia oficial. Haveria pouco espaço para registrar tantos equívocos
cometidos pelo lulopetismo diplomático – muitos dos quais identificados em meu
livro Nunca Antes na diplomacia...: a
política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris,
2014) – mas pode-se aventar, por exemplo, a infeliz e patética disputa entre Lula e Chávez pela liderança ideológica na América Latina: ambos se detestavam
amigavelmente, pois disputavam e competiam por prestígio político entre os
vizinhos e por um lugar maior na história mundial.
Infelizmente,
a história real das relações dos lulopetistas – sem esquecer o papel do Foro de
São Paulo e de seus mestres cubanos – com as lideranças cubanas e bolivarianas
talvez nunca a venha ser escrita completamente, por falta de documentos e por
falta de depoimentos sinceros de eventuais trânsfugas do lulopetismo (como foi o
caso, por exemplo, dos muitos dissidentes do comunismo soviético, que contaram como
eram as coisas, realmente), e também porque os cubanos não serão ser pegos de
surpresa (como foi a Stasi, com a queda repentina do muro de Berlim, e porque
burocratas, como os da Stasi e os nazistas, registravam tudo o que eles mesmos
faziam de malvadezas), e devem estar limpando os arquivos de documentos
comprometedores. De outra forma, saberíamos, por exemplo, que não havia nada de
muito ideológico nessa aliança dos totalitários, mas sim dinheiro, chantagens,
ameaças, cadeias diversas de submissão montadas sobre muita sujeira e
patifaria. Tempos sombrios vividos pela diplomacia brasileira.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de outubro de 2016
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