terça-feira, 4 de setembro de 2018

A Alca e o Interesse Nacional Brasileiro (2003) - Paulo Roberto de Almeida

Em 2003, os companheiros já estavam visivelmente engajados, com a ajuda dos bolivarianos e dos argentinos, na implosão da Alca. Eles não tinham exatamente argumentos técnicos, ou empiricamente fundamentados para recusar as negociações, apenas objeções ideológicas.
Em todo caso, tentei oferecer uma discussão racional sobre cada uma das objeções levantadas contra o projeto americano, não porque eu fosse favorável a Alca, apenas porque, sendo uma pessoa racional, e um diplomata responsável, considerava que não seria correto simplesmente recusar um debate objetivo sobre cada um dos pontos em consideração.
O texto abaixo, de meados de 2003, quando eu ainda me encontra em Washington, tentou colocar o debate em bases mais ou menos claras, considerando as diversas objeções que eu via serem levantadas pelos companheiros para recusar o processo negociador.
Tratou-se obviamente de um esforço inútil, pois os companheiros já tinham decidido enterrar a Alca, e assim levaram adiante o seu projeto.
A Alca foi definitivamente enterrada na cúpula das Américas de Mar del Plata, em novembro de 2005, sob os aplausos de Lula, Chávez e Kirchner conjugados.
Ofereço o meu texto como um testemunho de meus esforços para levar adiante um debate racional.

A ALCA E O INTERESSE NACIONAL BRASILEIRO:
DOZE QUESTÕES EM BUSCA DE UM DEBATE RACIONAL

Paulo Roberto de Almeida
Sociólogo, diplomata.
Washington, 29/07/2003
Os argumentos e opiniões emitidos no presente ensaio representam apenas os de seu autor e não podem ser considerados como expressando posições ou políticas de quaisquer órgãos governamentais.


Sumário:


1. Da controvérsia passional a um debate tendencialmente “socrático”
2. A Alca, o interesse nacional e a “dominação imperial”: um projeto fatal?
3. Corresponde a Alca a uma “ofensiva imperialista” contra os nossos interesses?
4. Estaria a Alca viciosamente marcada pela disparidade entre os participantes?
5. A Alca trará “desregulação selvagem” e “dependência tecnológica e financeira”?
6. A Alca será assimétrica pelo tamanho dos mercados e pelos níveis de proteção?
7. A Alca provocará uma crise sistêmica em virtude das assimetrias produtivas?
8. A lógica capitalista da Alca representará a ruína das empresas frágeis do Brasil?
9. A inferioridade tecnológica brasileira colocará em risco a soberania nacional?
10. A Alca é um projeto de dominação política que consolida a hegemonia imperial?
11. A Alca produzirá mais pobreza, precarização do emprego, concentração?
12. Devemos buscar uma integração alternativa?; “uma outra América é possível”?

 

1. Da controvérsia passional a um debate tendencialmente “socrático”


A Alca, pelo menos no Brasil, parece ter-se convertido numa espécie de rogue concept, ou seja, no vilão do momento. De fato, esse mero projeto se apresenta como uma perspectiva temida (para alguns, ele já seria uma realidade), ao mesmo tempo em que como um destino recusado pelas mais variadas correntes de opinião, englobando profissionais do anti-imperialismo e bispos da CNBB, políticos autoproclamados nacionalistas e industriais protecionistas, sindicalistas tradicionais e ecologistas pós-modernos. Mesmo economistas, usualmente tidos como ponderados, têm recorrido a conceitos como “dominação hegemônica”, “assimetria de poder”, “desmantelamento industrial”, que não costumam frequentar seu discurso normalmente circunspecto. Não se passa aliás uma semana sem que algum artigo vitriólico, descrevendo o saco de maldades embutido no futuro acordo hemisférico, seja publicado em algum jornal de circulação nacional, aproveitando o autor para cobrar do partido atualmente majoritário (e no poder) as dubiedades ou hesitações em relação a esse antigo projeto de “anexação” da economia brasileira ao território de caça do novo império.
Com tal exibição de paixões econômicas e de fúrias políticas, fica difícil manter um debate racional sobre a mais importante proposta de integração continental desde a primeira conferência internacional americana, realizada na capital do (então nascente) império em 1889-1890. No entanto, esse mesmo caráter controverso indica que estamos necessitando de bons estudos e de pesquisas rigorosas, como forma de devolver um certo equilíbrio a esse debate, que não pode obviamente ficar entregue a parti-prisredutores ou simplismos ideológicos, obscurecendo uma avaliação ponderada sobre a importância da Alca e seu possível papel no futuro das relações hemisféricas e para o próprio processo brasileiro de inserção econômica internacional (que não pode ser confundido como um itinerário para o desenvolvimento, o que a Alca não pode fazer sozinha).
Com uma certa regularidade, nos últimos anos, tenho procurado, de minha parte, fornecer informações objetivas sobre esse processo negociador no qual se encontra engajado o Brasil, ao mesmo tempo em que busco contribuir para a ampliação (racional) e o balizamento (conceitual) desse importante debate para o Brasil e o Mercosul, o que no entanto vem sendo grandemente dificultado pelas demonstrações de superficialismo até aqui disponíveis para o grande público. Um de meus trabalhos de discussão tentativa dos riscos e oportunidades da Alca para o Brasil e o Mercosul, sob o título “Mercosul e Alca na perspectiva do Brasil: uma avaliação política sobre possíveis estratégias de atuação”, está disponível na plataforma Academia.edu, tendo sido publicado, em formato impresso, in Marcos Cintra e Carlos Henrique Cardim (orgs.), O Brasil e a Alca: seminário(Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2002; ISBN: 85-7365-188-1), pp. 97-110.
Deixo de mencionar alguns debates dirigidos a um público mais aguerrido – como minhas considerações a certos documentos da CNBB, que tentavam “orientar”, de modo canhestro e obviamente desonesto, o “rebanho de fiéis” para uma ativa manifestação contra a Alca, no “plebiscito” de cartas marcadas realizado em 2002 –, mas não posso deixar de referir-me a um dos capítulos de meu livro A Grande Mudança, apropriadamente intitulado “Sinais trocados na Alca: teria a esquerda deixado de ser progressista?”.
Pode-se argumentar algo em meu favor: à diferença da maior parte dos demais “comentaristas” da questão da Alca, trata-se de uma temática que venho acompanhando com uma certa “intimidade” praticamente desde o nascimento – como aliás o próprio Mercosul –, tanto por curiosidade intelectual como por dever de ofício, sendo diplomata de carreira desde 1977 e, como tal, encarregado das negociações sobre investimentos (também para o MAI-OCDE e na questão dos acordos bilaterais de investimentos) entre 1996 e 1999, ao lado de uma intermitente atividade acadêmica nos intervalos e nos interstícios de uma profissão razoavelmente absorvente. Posso dizer, portanto, que me julgo um conhecedor interno de certos meandros do processo negociador que por vezes escapam ao “público externo”, não porque ele seja “clandestino” ou subtraído ao conhecimento da sociedade (como muitos acreditam), mas porque sua complexidade negociadora e a densidade documental (aliás disponível no site da Alca) se furtam a um conhecimento mais objetivo por parte daqueles não diretamente envolvidos no exercício negociador.
Tendo já respondido, nos textos citados, a uma série de interrogações de ordem econômica sobre o potencial “destruidor” e as eventuais virtudes “criadoras” da Alca para o Brasil e o Mercosul, proponho-me agora a tratar de uma série de outras questões, que buscarão tocar na maior parte das alegações contrárias à Alca – não que eu esteja interessado em defendê-la de quem quer que seja, e nem possuo procuração para tanto –, pois que esses argumentos me parecem eivados de contradições lógicas e non sequiturs.
Esclareço, antes de mais nada, que não sou particularmente partidário da Alca e que tampouco creio que as discussões estejam tendo lugar nas melhores condições possíveis. Em minha opinião, aliás, as melhores soluções, para o Brasil, se encontram obviamente na continuidade do processo de aperfeiçoamento do sistema multilateral de comércio e num aprofundamento realista do Mercosul. Proponho-me, porém, nos parágrafos e páginas que se seguem, oferecer minha contribuição em favor de um debate que seja preferencialmente marcado por uma certa racionalidade econômica, em torno dos riscos e oportunidades da Alca para o Brasil. Meus argumentos devem ser vistos nessa perspectiva de esclarecimento objetivo e de um diálogo “socrático” sobre um problema suficientemente complexo para não ser reduzido a conceitos ambíguos como os de “imposição hegemônica” ou de “defesa da soberania nacional”.

 

 

2. A Alca, o interesse nacional e a “dominação imperial”: um projeto fatal?


Começo pelo próprio título deste artigo, que toca numa das mais recorrentes questões dos assim chamados “comentaristas” da Alca, que imediatamente respondem pela afirmação desse interesse como sendo exclusivamente dos EUA. Concordo em que a Alca interessa prioritariamente à economia mais poderosa do hemisfério (e do mundo), assim como já interessava em 1889-1890, data da primeira conferência internacional americana, quando um projeto similar foi proposto pelo império então nascente. Não creio, todavia, que ela interesse apenas à economia do império, se concordarmos, como regra de princípio, em que as interações comerciais (e de investimentos, neste caso, ademais de vários outros aspectos) não constituem um jogo de soma zero, como as interações econômicas de modo amplo. A experiência histórica e os dados empíricos demonstram que a intensificação das correntes de comércio permitiu melhorar a situação – o conceito de “bem-estar” dos economistas – de todos os participantes no jogo, ainda que não de modo igualitário ou uniforme. 
Pode-se assim argumentar que a Alca interessa, sim, às empresas dos EUA, mas também às muitas empresas do Brasil e de outros países que possuem vantagens comparativas em face da competição externa, do império e de muitos outros países. É o caso das diversas atividades do complexo agropecuário, assim como das indústrias labor-intensivede modo geral, não considerando aqui o potencial protecionista embutido em grupos de interesse dessas economias mais poderosas, que se exercem precisamente nessas áreas de competitividade dos países em desenvolvimento.
Poderíamos afirmar, portanto, em que o interesse da Alca vai um pouco além dos objetivos ditos hegemônicos da economia imperial. Não fosse assim, não haveria uma tal oposição à Alca na capital do império, notadamente entre os congressistas do chamado rust-belte de um setor agrícola drogado no subsidiamento extensivo, bem como entre os sindicalistas temerosos da exportação de empregos para as zonas de baixos salários (que incluem também o Brasil). 
No Brasil, igualmente, o tom geral dos argumentos é bastante crítico em relação à Alca e não se poderia mesmo esperar aqui declarações favoráveis à Alca, ou em geral manifestações a favor do livre-comércio, pois essa seria uma realidade impossível em qualquer país do mundo atual, no qual há uma quase unanimidade da opinião pública contrária à liberalização comercial, ao mesmo tempo em que os governos tentam, por vezes de forma discreta e desajeitada, privatizar alguns mamutes, abrir a economia e atrair investimentos estrangeiros.
Não deve causar espanto, assim, o fato de que a maior parte das análises relativas à Alca apresentem, invariavelmente, uma visão crítica do processo, como aliás revelado nos artigos de imprensa mais comuns, tocando frequentemente nos temas clássicos da cobiça imperialista e das desigualdades de riqueza e poder entre o Norte e o Sul. Por que, exatamente, um julgamento severo, de maneira preventiva, contra a Alca, com base na desigualdade de base dos parceiros envolvidos, ao mesmo tempo em que, também invariavelmente, os opositores da Alca julgam de modo muito benigno (e de forma algo míope, eu poderia acrescentar) o mesmo projeto de livre-comércio em curso de negociação entre o Mercosul e a União Europeia? Por acaso, as chamadas “assimetrias estruturais” são menos relevantes neste caso, quando a UE ostenta aproximadamente o mesmo gigantismo em termos de PIB e de comércio exterior do que os EUA, sendo aliás muito menos atraente dos pontos de vista da composição do intercâmbio e do protecionismo e do subvencionismo revoltantes na área agrícola?
Não estarei inventando nada se disser que é evidente, no Brasil, a nítida relutância da maior parte das lideranças políticas brasileiras em relação ao projeto da Alca, mas deve-se reconhecer, igualmente, que a conveniência de se criar, ou não, uma área de livre-comércio hemisférica NUNCA chegou a ser objeto de um debate nacional franco, objetivo e livre, tanto quanto possível, de argumentos passionais e parti-prisideológicos.
Aqui parece residir a questão básica que angustia a maior parte dos observadores isentos, ou pretensamente imparciais, em relação à Alca: não se sabe, de fato, se ela será, ou não, boa para o Brasil, dada a ausência de debates adequados e mais ainda de estudos satisfatórios. Existem, obviamente, aqueles que respondem de imediato pela negativa, e até se permitem fazer plebiscitos com perguntas manifestamente capciosas (como as que vinculam a existência da Alca a uma ameaça à soberania nacional), assim como existem aqueles (poucos) que respondem positivamente, com base numa simples constatação de que uma maior exposição ao comércio internacional melhorará os índices de competitividade da economia brasileira, além de ampliar o acesso ao maior mercado do planeta. Não pretendo responder a esta questão nos limites deste artigo – o que seria de todo modo impossível de fazer em bases puramente hipotéticas, pois que tudo depende da Alca que se logre formalizar – mas pretendo abrir, pelo menos, algumas avenidas de discussão sobre o assunto.

 

 

3. Corresponde a Alca a uma “ofensiva imperialista” contra os nossos interesses?


Essa ofensiva já ocorreu e por vezes se repete, provavelmente por “necessidades eleitorais” (ou eleitoreiras) do governo americano, tendo começado no período anterior à III Cúpula das Américas (Québec, 2001) e sido renovado recentemente. O objetivo é compreensível e, em outros países, governos de outras orientações também adaptam determinados objetivos econômicos ou políticos a suas conveniências eleitorais. No Brasil, por exemplo, está em curso um programa “Mercosul 2006”, tendente a conformar o mercado comum até aquela data. Por que não antes?; por exemplo: em 2004, quando as negociações da Alca devem supostamente se encerrar, assim como os exercícios da OMC e de um acordo bi-regional UE-Mercosul? Talvez porque calendários eleitorais exercem um atrativo especial sobre os homens políticos, que a eles tentam condicionar determinados processos econômicos por mais complexos que pareçam.
A todas essas ofensivas, o governo brasileiro soube responder de modo adequado, opondo-se a qualquer antecipação prematura e confirmando o calendário original que prevê o final do processo negociador em 2005, como o fez recentemente Lula em Washington, sem qualquer renúncia ou “adesão”, diga-se de passagem, pois essa data já estava prevista no mandato de Miami (1994), tinha sido confirmada uma vez em Santiago (1998) e mais recentemente em Québec (2001). Não acredito assim que essa ofensiva produza resultados mais favoráveis do que foi o caso até aqui, mesmo se considerarmos que as datas não são o mais importante, como afirmou FHC no Canadá, e sim o conteúdo do pacote eventualmente acordado. 


4. Estaria a Alca viciosamente marcada pela disparidade entre os participantes?


Muito se fala, na Alca, de um “gigante” cercado de 33 “anões” e, de fato, se colocarmos lado a lado o PIB individual de cada um desses atores, as discrepâncias aparecem como incomensuráveis e talvez mesmo insuperáveis. Uma comparação estrita com base no PIB nominal por certo confirmaria essa visão, mas isso não parece tão claro a partir de uma análise desagregada – e reavaliada a partir das paridades de poder de compra – das várias interfaces da integração. Diferenças de tamanho, entretanto, nunca aboliram, ao que se sabe, o princípio das vantagens comparativas, que continua tão válido agora como nos tempos de David Ricardo, podendo, se tanto, produzir ganhos de escala que nunca são absolutos em vista de outras variáveis envolvidas na escala de competitividade.
De resto, o tão alardeado gigantismo das “megacorporações norte-americanas” – argumento aliás muito pouco utilizado em relação às “megaempresas europeias” – não parece sustentar-se em várias áreas de nítida competitividade brasileira (não apenas nas áreas labor-intensive, diga-se de passagem), com base em tecnologias tão ou mais avançadas do que aquelas existentes nos EUA – em siderurgia ou agribusiness, por exemplo – ou em muitos outros terrenos nos quais podem ser mobilizados nossos imensos recursos naturais, os preços menores de vários insumos (terra, energia, mão-de-obra) ou a própria inovação e engenhosidade brasileira (apesar de haver muito pouca confiança em nossas virtudes).
Se não fosse assim, por que, exatamente, os lobbiesno Congresso americano foram tão ativos e se apressaram em colocar limites ou várias condicionalidades no mandato que aprovou a capacidade negociadora do Executivo para a atual rodada de acordos comerciais? Se a assimetria é tão brutal, como explicar esses surtos de protecionismo setorial que de resto se exercem com igual acuidade no caso da Europa e de outros parceiros da OMC? Com apenas 1% do comércio internacional (e algo equivalente nas importações totais dos EUA), o Brasil pode não ser um global player, como alardeado de forma permanente por nossos negociadores, mas certamente não é o “anão” que se pretende mostrar em termos de poder de barganha e de vantagens competitivas. No frigir dos ovos, inclusive, nosso poder negociador é bem maior do que a mera expressão do nosso PIB quando confrontado ao do gigante.
Questão de tamanho à parte, outro dos problemas levantados a esse respeito refere-se às diferenças de condições econômicas entre os parceiros da Alca, invocando-se aqui as sérias dificuldades ocorridas nos países latino-americanos nas duas últimas décadas, em especial naqueles que teriam aberto suas economias e seguido o receituário neoliberal. A liberalização eventualmente patrocinada pela Alca tenderia a acentuar, nessa visão, essas dificuldades, em especial em termos de desigualdades e precarização das condições de trabalho.
Ora, não é certo que processos de liberalização comercial agravem as condições macroeconômicas de um país, como o provaria o caso do Chile, um dos países mais assumidamente neoliberais e, ao mesmo tempo, detentor de uma maiores taxas de crescimento com estabilidade da região (ademais de ser uma economia “menor”, do ponto de vista do Brasil, da Argentina ou do México). Não se pode acreditar, por exemplo, que essa “economia menor do que São Paulo” – como frequentemente ouvido em nossos “debates públicos” – tenha escolhido fazer um acordo de livre-comércio com o império (recentemente aprovado pelo seu Congresso, junto com o de outro “anão”, Cingapura) apenas por tendências suicidárias ou desejo de sufocar suas empresas. Não creio que o argumento se sustente, nem pelo tamanho, nem pelas condições gerais da economia; prefiro acreditar que as lideranças políticas e econômicas do Chile tenham feito um cálculo racional de perdas e ganhos e encontrado que a aposta na liberalização “assimétrica” valia o risco incorrido.
Para terminar com essa questão de disparidades entre as “massas atômicas” do “gigante” e dos “anões”, muitos comentaristas da Alca, no Brasil, parecem acreditar que os princípios do livre-comércio só funcionariam a contento se a alocação dos fatores se desse num quadro de condições semelhantes, à falta do qual caberia aos Estados prover medidas corretoras (das condições de mercado, entenda-se), suscetíveis de viabilizar um nível mínimo de igualdade de competição. Ora, a experiência histórica ensina que a doutrina ricardiana funciona justamente porque as condições entre os países são diferentes e, se se pretendesse uma igualdade prévia entre os parceiros, nunca ocorreria nenhum tipo de intercâmbio. Não se compreende, aliás, como, e em quê, uma integração com a UE seria mais vantajosa do que o esquema da Alca, dadas a existência das mesmas assimetrias estruturais e uma composição dos fluxos de comércio ainda menos diversificada do que aquela incidente no plano hemisférico.


5. A Alca trará “desregulação selvagem” e “dependência tecnológica e financeira”?


A Alca não se propõe, exatamente, introduzir a “desregulamentação” nas atividades industriais ou de serviços, uma vez que os setores continuarão “regulados” (nacionalmente e multilateralmente), apenas que parcialmente liberalizados para os países participantes do acordo (se acordo houver em todos esses setores, o que se afigura algo problemático, para quem conhece a marcha do processo). Os acordos em negociação na Alca (livremente disponíveis e consultáveis no site da secretaria da Alca) conformarão uma nova regulação, como de resto acontece no quadro mais amplo da OMC, onde o que de fato acontece é o “mercantilismo administrado”, não o livre-comércio apregoado por muitos. 
No caso dos fluxos de bens, para ser correto, se trata efetivamente de implementar o “livre comércio”, mas não em total ausência de regulação, pois que à supressão das tarifas aduaneiras sobreviverão normas fitossanitárias, de regulação técnica e de defesa do consumidor, da mesma forma como ocorre, aliás, no comércio do Brasil com o resto do mundo, inclusive no que se refere ao Mercosul. 
Quem consultar as minutas dos acordos, verá que todos esses setores  – serviços, operações financeiras (aliás compreendidos nos serviços), compras governamentais, investimentos e patentes – não serão desregulamentados, mas tão simplesmente submetidos aos procedimentos gattianos tradicionais: tratamento nacional e cláusula de nação-mais-favorecida, quando isso se aplicar (ofertas de abertura). No caso de compras governamentais, o governo brasileiro trabalha, se tanto, com o conceito de transparência, mas não de abertura incondicional. O setor patentário não avançará mais do que avançou na Rodada Uruguai, podendo existir alguns procedimentos adicionais para a proteção da propriedade intelectual, o que interessa também a muitas produções brasileiras (em música, por exemplo), hoje insuficientemente protegidas no plano multilateral ou regional. 
No que se refere à alegada assimetria tecnológica e dependência financeira, que seriam supostamente a consequência do acordo hemisférico, creio que se trata de uma visão pessimista, não confirmada pela experiência e pela teoria da integração, das possíveis consequências de um acordo da Alca. Processos similares conduzidos no âmbito do Nafta e da UE, assim como teorizações no âmbito dos investimentos industriais (por Roger Venables, por exemplo), induzem a pensar que essas associações ditas assimétricas tendem a beneficiar igualmente o parceiro menos desenvolvido, que recebe tecnologia via investimentos diretos e capitais excedentários dos parceiros desenvolvidos.
As experiências industrializadoras em diversas regiões periféricas – desde a fase áurea do imperialismo inglês – confirmam o comportamento anticíclico da maior parte dos investimentos diretos provindos dos centros financeiros e tecnológicos, seja na era da hegemonia britânica, seja em seu sucedâneo americano. Pode-se, obviamente, descartar esta visão como excessivamente “otimista”, mas ela tem tanto valor prescritivo e normativo, quanto uma abordagem “catastrofista” desse mesmo processo, cabendo à boa teorização e aos dados empíricos estabelecer o quanto de validade cada uma das afirmações possui intrinsecamente .


6. A Alca será assimétrica pelo tamanho dos mercados e pelos níveis de proteção?


Um dos argumentos mais frequentemente invocados contra a liberalização assimétrica da Alca refere-se ao diferencial dos mercados – tamanho e economias de escala – e sobretudo ao diferencial de sistemas de proteção, com medidas de defesa comercial e normas antidumping abusivas e arbitrárias. O argumento não leva em conta, entretanto, que o acesso a uma série de setores nos quais os Brasil é plenamente competitivo, e que permitiriam incrementar e diversificar o comércio, encontra-se hoje impedido por barreiras tarifárias e não-tarifárias, o que a Alca pretende justamente eliminar. Respondendo pela metade do nosso comércio hemisférico, o objetivo do Brasil seria consolidar o acesso ao imenso mercado norte-americano, impedindo retrocessos nas regras de entrada; quanto a outros setores, hoje dificultados ou impedidos, trata-se de negociar condições adicionais de acesso, objetivo a ser conquistado tanto quanto possível (em condições de reciprocidade, como é de regra nesse tipo de acordo).  
O Brasil tem plena consciência das barreiras existentes nos países avançados e vem justamente insistindo, desde muito, pela sua eliminação. Subsídios, antidumping e barreiras não-tarifárias constituem, precisamente, o cerne dos argumentos brasileiros no exercício hemisférico, o que fará, provavelmente, com que muitos temas tenham de ser transferidos a Genebra – sem possibilidade de resolução exclusivamente no âmbito da Alca –, com pendências correspondentes para o lado americano também (que deseja ver investimentos e propriedade intelectual tratados no plano hemisférico, ao passo que o Brasil prefere encaminhá-los no âmbito da OMC). 
Quanto ao argumento de que o Brasil estaria em franca desvantagem em virtude de níveis tecnológicos e de integração das cadeias produtivas inferiores em relação aos de empresas dos EUA, isso pode ser verdade no plano mais amplo da “generalidade” macroeconômica, mas não é válido no plano microeconômico da concorrência entre ramos e setores de atividade agrícola e industrial, que são os que competem primordialmente, abstraindo aqui os efeitos gerais de marketing, financiamento e outras externalidades. Se não fosse assim, os lobbies representativos das velhas indústrias e de modo geral de todo o complexo do agribusiness americano não exibiriam o pavor “antibrasileiro” que sabemos existir no Congresso e nos distritos que serão afetados pela “implacável” concorrência brasileira. 
Objetivamente, a visão da “desvantagem” brasileira não é partilhada por vários setores industriais no Brasil, assim como pela maioria do setor agrícola. Apenas uma falta de confiança em nossa competitividade – não consubstanciada pelos dados da realidade – pode explicar essa visão catastrofista de uma eventual liberalização dos intercâmbios ao abrigo da Alca. Certamente que existem muitos outros setores, assim como fatores de competitividade (ou de debilidade) sistêmica, que colocam nosso país em desvantagem, mas, assim como para os EUA, a abertura será medida e regulada em função das sensibilidades setoriais relativas. Haverá um cronograma de redução de barreiras e o período de transição deveria permitir-nos resolver os diversos elementos do chamado “custo Brasil” (que sem o aguilhão da Alca talvez sejam difíceis de remover).


7. A Alca provocará uma crise sistêmica em virtude das assimetrias produtivas?


Alguns acreditam que a liberalização das tarifas levará a uma crise de dimensões imprevisíveis para a indústria brasileira que não conseguirá enfrentar a concorrência dos produtores norte-americanos. Se isto fosse verdade, porque se insiste tanto, inclusive em setores do partido hoje majoritário, com um acordo entre o Mercosul e a UE, cujas condições de assimetria são tão ou mais importantes do que as existentes no hemisfério? A tese da crise sistêmica deveria se aplicar, portanto, no caso do acordo com a UE igualmente, ou até no caso de uma liberalização unilateral ou regulada pela OMC. 
O Brasil já enfrentou, como se sabe, um processo de abertura tão ou mais radical do que a Alca, consistindo da abertura dita “unilateral” do começo dos anos 90, quando tarifas foram reduzidas de uma média de 44% para 14% entre 1990 e 1995. O choque já ocorreu, portanto, e foi por alguns considerado como catastrófico, muito embora tenha fortalecido a base tecnológica de muitos setores produtivos (sabe-se, aliás, que nossa competitividade industrial aumentou bastante nesse período). Na verdade, a abertura dos anos 90 foi muito pouco unilateral – e até deveria, considerando-se os níveis de até 100% aplicados em diversos bens – e não foi destituída de barganha, pois que correspondendo ao processo de implantação da Tarifa Externa Comum do Mercosul.
De resto: se a supremacia tecnológica e industrial americana fosse indisputada, os legisladores e os sindicatos americanos não poderiam estar tão ativos lutando contra a Alca, assim como lutaram contra o Nafta. Podem os dois lados ter razão ao mesmo tempo, nós e os americanos? Algo não “bate”, como se diz, nesse raciocínio catastrofista para ambos os lados. Alguém precisa estar certo e outro alguém deve estar errado. Provavelmente, ambos os lados estão errados (ou certos em seu “pânico” anti-Alca) e os efeitos (sempre parciais e limitados) serão variados, em dentes de serrote, beneficiando ou afetando setores (ou ramos, melhor dito), em função de fatores macro- e microeconômicos de competitividade sistêmica ou setorial. 
De toda forma, o acordo da Alca não será necessariamente como “preconizado” pelo governo americano, e sim em função da barganha negociadora que o Brasil e outros países lograrem obter, em troca de outras vantagens que não serão todas “preconizadas” pelo governo americano. Apenas uma falta de confiança absoluta na capacidade negociadora do Brasil pode explicar esse temor e essa antecipação de uma catástrofe que não aparece como tal a quem está envolvido no processo. De forma geral, creio que a sociedade brasileira, inclusive seus industriais e acadêmicos, alimentam pauras que só podem ser explicadas pela baixa autoestima e falta de crença em nossas próprias “fortalezas”. Desde o início desse processo, o governo brasileiro não vê o eventual acordo como um contrato de “adesão” e sim como um arranjo possível resultante da negociação de um eventual esquema de liberalização comercial. 
As dimensões da Alca, de forma geral,  têm sido exageradas no mais alto grau, como aliás já tinha ocorrido anteriormente em relação ao Nafta. Por acaso o México teve transformadas radicalmente suas estruturas econômicas e sociais por efeito desse acordo comercial, para ele muito mais importante do que será a Alca para o Brasil? Por acaso, o Brasil aparece como menos “imperialista” aos olhos dos produtores argentinos de frangos, de pneus, de bebidas, de máquinas-ferramenta, de uma infinidade de outros produtos industriais e agrícolas (não esqueçamos o açúcar), apenas porque somos vizinhos e parceiros no Mercosul? Por acaso, um único dia de produção de uma indústria paulista não permite abastecer todo o Uruguai durante um ano inteiro (que nada mais é senão um bairro de São Paulo)? Esses países considerariam o Mercosul mais justo e democrático se ele significar o desmantelamento de setores industriais e agrícolas inteiros, por força da competitividade brasileira? 
Andemos um pouco mais adiante e façamos a mesma pergunta a nossos vizinhos andinos? Por que será que um acordo ainda não foi possível entre o Mercosul e a CAN? Apenas porque esses países já estão “vendidos” ao império? Ou será por justo temor da concorrência brasileira? Um pouco de visão crítica, e um olho na experiência histórica, por uma vez, não fariam mal aos nossos “comentaristas” da Alca.
Na outra vertente, pergunto se os “conglomerados” europeus funcionam segundo uma outra lógica e uma racionalidade capitalista diferente e oposta à de seus congêneres americanos apenas pelo simples fato de serem europeus? O protecionismo explícito e o subvencionismo pornográfico dos europeus na área agrícola apresentam insuspeitas virtudes solidaristas que eu por acaso desconheça e sobre as quais os “comentaristas” da Alca desejariam me informar? A demonização da Alca e o “embelezamento” dos acordos regionais e com a UE não me parecem elementos válidos segundo o mérito próprio dos argumentos esgrimidos pelos “comentaristas” da Alca.
Sinceramente, não compreendo a lógica desses pronunciamentos em favor de acordos regionais e com a UE, como se eles tivessem o mérito de afastar todos os problemas ligados “geneticamente” ao livre comércio e à lógica do “grande capital” apenas por insuspeitas (para mim desconhecidas) virtudes geográficas, ou como se solidariedade e justiça social emanassem naturalmente de acordos de livre comércio que se distinguem muito pouco, ou praticamente nada, de outros acordos de livre comércio. 
Algo não me parece “fechar” no seu raciocínio acima exposto e gostaria de saber exatamente o que é. Gostaria sobretudo de compreender as qualidades insuspeitas de acordos que se fazem à margem e à exclusão da potência imperial, que teriam o poder de afastar vícios capitalistas de alguns conglomerados, ao mesmo tempo em que se abrem às virtudes solidaristas de outros conglomerados.


8. A lógica capitalista da Alca representará a ruína das empresas frágeis do Brasil?


Concordo em que a “lógica” do capitalismo sempre foi a das reservas de mercado, a dos monopólios e preferências garantidos pelo Estado e a da exploração de vantagens exclusivas em situação de anti-concorrência perfeita. Tudo isso é déja vu na história do capitalismo, desde tempos imemoriais. Não me parece, porém, que essa “lógica” promete trazer a destruição da empresa nacional e seu avassalamento imperial.
Essa visão me parece representar uma antecipação não provada de forma absoluta pela experiência histórica e pelos dados disponíveis. Desde os anos 1950, pelo menos, que ouvimos falar na “desnacionalização da indústria brasileira”, e de fato nosso parque industrial se tornou mais “internacionalizado” ao longo dessas décadas. Não me parece, porém, que isso tenha impedido o surgimento, o desenvolvimento e a expansão de grupos industriais brasileiros, nacionalmente e internacionalmente. O Brasil, na fase de maior abertura e “neoliberalismo”, que foram os anos 1990, se tornou de certa forma um “imperialista”, no sentido leninista e luxemburguiano, isto é, um país exportador de capitais, o que ele certamente faz em direção da América do Sul (bastando consultar as páginas dos jornais econômicos) e crescentemente também nos próprios EUA. 
Se sobrevivemos ao suposto entreguismo de JK, da era militar, de Collor e de FHC, porque desta vez seria diferente? Algum movimento tectônico desmantelará todo o setor industrial brasileiro? Mas, o que vimos, justamente, foi o surgimento de grandes grupos nacionais – industriais, agrícolas e bancários – que impõem um certo respeito em nossos vizinhos e até mesmo nos americanos. Por que será que a Gerdau e a CSN estão adquirindo siderúrgicas nos EUA, por que nossos “citrícolas” paulistas estão adquirindo plantações na Flórida e por que nossos calçadistas e “textícolas” ainda não fizeram o mesmo em seus setores respectivos? Tudo isso é ilusão? 
Sinceramente, não consigo atinar a razão de tanto catastrofismo industrial. Talvez algum “comentarista” da Alca me dirá que sobrevivemos apenas graças às políticas desenvolvimentistas e nacionalistas praticadas desde a era Vargas, especialmente no período militar, e que as condições mudaram desde o fim da Guerra Fria, com a ascensão de governos “neoliberais” no Brasil, no decorrer dos anos 90. Pois foi justamente no decorrer desse último período que surgiram as primeiras empresas globais brasileiras e no qual a projeção do nosso poderio econômico no exterior – em primeiro lugar em direção da América Latina – vem sendo conduzida pari passuao processo de globalização.
Com base em meus conhecimentos dos meios empresariais, não me parece, realmente, que a empresa brasileira esteja se esvaindo no altar da globalização neoliberal. Tanto não é assim que estamos assistindo ao surgimento de empresas brasileiras – relativamente “internacionalizadas” – naqueles mesmos setores ditos “dominados” pelo imperialismo: software, design, sistemas integrados, aeronáutica e eventualmente biotecnologia.


9. A inferioridade tecnológica brasileira colocará em risco a soberania nacional?


Não recuso o argumento da (atual) inferioridade tecnológica, comercial e organizacional das empresas nacionais em relação às suas congêneres americanas, mas daí não deduzo uma postura de impossibilidade de concorrência no quadro de um eventual acordo de livre comércio, tanto porque, por um lado, possuímos outras vantagens comparativas que poderão ser explorados no momento certo e num quadro adequado de relações intrafirmas, como porque acredito, por outro lado, que as empresas, assim ensina a experiência, estão sempre se antecipando ao movimento dos governos e saberão preparar-se para os futuros embates com seus concorrentes hemisféricos. Os diplomatas, como os generais, estão sempre lutando o último combate, quando capitães de indústria já se posicionaram estrategicamente num terreno diferente daquele imaginado pelos “planejadores do passado” que somos nós.
Provavelmente, um dos argumentos mais “paralisadores” desse tipo de discussão refere-se ao famoso “projeto de soberania nacional”, que a Alca supostamente colocaria em risco. De fato, essa noção fetiche de “soberania nacional” tem o estranho poder de paralisar argumentos e de interromper o debate em torno de qualquer assunto que envolva grandes escolhas políticas ou econômicas pelo País.
Alguém já assistiu a algum debate conclusivo sobre como e por quê a “soberania nacional” estaria sendo afetada de uma forma, mas não de outra? Como não constatar o imenso sucesso do plebiscito da CNBB, que agitou a carta mágica da soberania nacional? Não parecem um pouco ingênuos esses apelos que se fazem atrás desse manto difuso da “soberania nacional” no qual se enrolam alguns personagens da República quando não estão dotados de argumentos possuidores de uma certa racionalidade econômica, como parece ocorrer no confuso debate sobre os riscos e oportunidades da Alca em nosso País? 
A mim, isso me incomoda terrivelmente, uma vez que esse tipo de recurso tem o poder nefasto de substituir um debate racional por posicionamentos que eu considero eminentemente ideológicos (e portanto obscurecedores de um verdadeiro entendimento da questão). Os argumentos em torno da ameaça à “soberania nacional” vêm sendo constantemente utilizados como um espectro a ser evitado: perigos à soberania (nunca bem esclarecidos quais seriam), o desmantelamento industrial (antecipado apenas com base na palavra do “comentarista”, que deveria ser tomada como manifestação empírica), ou ainda a tal de “dominação imperial”, terrível sombra sobre o destino de um país manifestamente frágil como o Brasil. Lamento por esses “comentaristas”, mas não consigo descobrir virtudes heurísticas legítimas nesse tipo de debate e de fato não ocorre nenhum tipo de controvérsia “socrática” em torno dessas supostas ameaças. 
Na prática, o debate no Brasil começa recém a tomar um perfil mais equilibrado, a partir de mudanças nas posições do próprio partido dominante, aliás agora no poder e devendo arcar com responsabilidades governativas e não apenas de crítica oposicionista a partir da tese da “anexação”. Portanto, cabe a pergunta: por que o acordo da Alca – um simples arranjo de livre comércio – seria uma ameaça maior ao Brasil do que o projeto de moeda única no Mercosul, que, sim, retira soberania absoluta ao nosso governo ao colocar nossa política monetária alinhada com sócios diversas vezes menores do que o Brasil?


10. A Alca é um projeto de dominação política que consolida a hegemonia imperial?


Talvez isso seja verdade, como já era verdade mais de um século atrás, quando se tentou o primeiro projeto de Alca. E o que resultou dessas tentativas imperiais? A América Latina ficou definitivamente e irremediavelmente enfeudada à águia imperial? O Brasil cresceu e se desenvolveu em oposição e à margem dos investimentos imperiais e da dependência financeira de Wall Street? Ou a eles se integrou, logrando preservar vários graus de soberania econômica e uma certa autonomia tecnológica?
Não estaria havendo aí, com esse tipo de colocação sobre a potência hegemônica – que beira à tautologia – um superdimensionamento da capacidade imperial? De resto, considerando-se as múltiplas facetas do processo de desenvolvimento – que envolve uma dimensão tecnológica, outra cultural e educacional, além de várias outras relativas às instituições públicas (fiscalidade estatal, por exemplo) –, não estaria havendo um desvio do debate, ao se pretender que o rabo comercial abane o cachorro econômico? Do meu ponto de vista, não foi assim no passado (protecionista) e não será assim no futuro.
Alguns “comentaristas” argumentam que os EUA buscam com a Alca consolidar um espaço econômico de saldos comerciais superavitários, para compensar os déficits que enfrentam nas relações com a China, o Japão e outras potencias comerciais. Não creio, contudo, que as atuais relações comerciais no âmbito americano produzirão, inevitavelmente, um saldo superavitário em favor do império e não, como seria de se esperar, em favor de suas “dependências coloniais” no hemisfério. Deve-se recordar, a esses “comentaristas”, que do ponto de vista das empresas americanas, o esquema da Alca é sobretudo um acordo de investimentos.
Nessas condições, como antecipar fluxos comerciais e saldos de intercâmbio como se a “alocação ótima de recursos”, utilizada pelos microeconomistas, devesse se fazer sempre em benefício do centro do império? A Grã-Bretanha, no auge de seu poderio imperial, sempre ostentou saldos comerciais cronicamente deficitários, compensados é verdade pela remessa de pagamentos a título de serviços e compensações diversas do capital. Esta é a lógica do capitalismo, a que não está imune tampouco o Brasil, nas relações com a sua própria “periferia” regional. Ou será que o Paraguai, a Bolívia e o Uruguai mantêm (e manterão) uma relação totalmente “igualitária” com a economia brasileira?
Independentemente dos cenários que possam ser projetados, não me parece de boa política econômica projetar saldos sempre deficitários para um dos lados e superavitários para outros, quando as dinâmicas econômicas do século XX já nos provaram que não há nada de absolutamente imutável no comércio de bens, no intercâmbio de serviços, nos fluxos de capitais financeiros e de investimentos diretos. A história do “longo século XX” deveria nos precaver contra certos julgamentos “definitivos” em direção ao futuro.


11. A Alca produzirá mais pobreza, precarização do emprego, concentração?


Todos os casos historicamente conhecidos de liberalização de comércio provocaram crescimento e aumento de salário, particularmente nos países mais pobres, como ocorreu na China e na Índia. Casos de concentração de empresas são normais, e absolutamente temporários, pois que novas empresas estão continuamente surgindo para explorar novas oportunidades de mercado que surgem desse processo de expansão do comércio internacional. A Microsoft não existia 20 anos atrás, hoje é a mais poderosa empresa na área de tecnologia da informação, mas essa dominação é temporária e será erodida pela concorrência e por novos produtos que já estão surgindo nessa área. O “empobrecimento” é também muito relativo, e se restringe aos casos de perdas de emprego localizados pela não competitividade de uma determinada empresa ou determinado setor. No cômputo geral porém, a criação de empregos e o enriquecimento produzidos pela expansão do comércio internacional são superiores aos fatores negativos.
As consequências negativas antecipadas pela maior parte dos “comentaristas” da Alca, entre eles os ecologistas, são por demais impressionistas para serem discutidas seriamente. A preservação do meio ambiente tem feito progressos em vários países, a despeito de graves problemas que ainda persistem e que não dependem de acordos comerciais para existirem, pois a maior parte dos investimentos diretos foi feita até hoje à margem de qualquer acordo do tipo do Nafta ou da futura Alca. Endividamento crescente não tem nada a ver com acordos de comércio, que geralmente provocam aumento de negócios e portanto geram mais divisas; a dívida externa deriva de causas propriamente financeiras, que são representadas pelo desequilíbrio entre poupança externa e interna, algo que o aumento do comércio vem justamente inverter. Os países mais pobres são justamente aqueles que não participam dos fluxos de comércio, de investimentos e de intercâmbio tecnológico. A China tem se tornado um pouco mais rica depois que, justamente, se inseriu de forma mais ousada na globalização: ela aderiu à OMC na esperança de diminuir sua pobreza via comércio crescente. 
Um acordo comercial não é feito para que tudo permaneça como antes, mas para que os países e as empresas explorem as vantagens comparativas de cada lugar. Não representa dumpingsocial ter salários mais baixos; este é um dado socioeconômico que vai persistir por muito tempo, até que as condições de vida se tornem menos desiguais entre o sul e o norte das Américas. Os interesses dos trabalhadores brasileiros (e supostamente dos sindicalistas preocupados com o futuro do Brasil) está justamente em trazer mais empregos para o Brasil, não contribuir para que eles fiquem amarrados no hemisfério norte, pois com a Alca algum desses empregos virão para o sul, o que é legítimo, absolutamente normal e esperado desse tipo de acordo. 
Por isto, soa algo esquizofrênico ouvir sindicalistas do Sul repetir argumentos sobre as consequências econômicas e comerciais desses acordos de seus congêneres do norte do hemisfério, que estão basicamente interessados em defender os seus empregos, supostamente (ou realmente) ameaçados pelo Nafta ou pela Alca.O que os sindicatos e ativistas do norte estão procurando fazer é isso: congelar os empregos no norte, algo tão ilógico e antinatural, como pretender que todos continuem utilizando hoje a roca de fiar. A tecnologia e os empregos se movem em redor do mundo em busca de melhores condições de produção. O que os ativistas do sul deveriam fazer seria justamente contribuir para acelerar esse processo, pois ele vai trazer bem-estar para seus povos.
Não é certo que a Alca venha a existir, não pela oposição de líderes ou sindicalistas latino-americanos, mas basicamente pela oposição de políticos, líderes sindicais e alguns religiosos nos EUA. Se isso ocorrer, o panorama na América Latina não vai mudar muito nos próximos anos, sendo muito parecido com o que ele é hoje. Agora, não se vislumbra nenhuma melhoria social ou econômica com a preservação das condições atuais. A Alca não é uma promessa de desenvolvimento, longe disso, mas não é o monstro que querem fazer acreditar os ativistas norte-americanos. Eles terão sido bem sucedidos se a Alca não existir, pois toda a sua campanha vai nesse sentido. O que sim, vai ocorrer, é que uma das poucas possibilidades de aumento de padrões trabalhistas, de melhoria das condições de vida de milhões de cidadãos da América Latina ficarão em parte comprometidas porque empresas que poderia acorrer para esses países não o farão pela ausência de abertura comercial. Se é esse o resultado que pretendem os lideres políticos e sindicais de países como o Brasil, eles precisam estar conscientes de que estarão atuando contra os interesses de seus cidadãos.
Um acordo da Alca bem negociado pode não representar nenhuma alavanca fundamental no desenvolvimento econômico e social dos países mais pobres do hemisfério, o que depende basicamente de medidas internas, não de acordos comerciais. Mas, a completa ausência de qualquer tipo de acordo, representa, sim, uma garantia de que nada vai mudar no panorama da integração e do progresso social no continente.


12. Devemos buscar uma integração alternativa?; “uma outra América é possível”?


Tenho ouvido falar, de maneira recorrente, de um “projeto de integração alternativo”, geralmente avançado pelos mesmos opositores do projeto da Alca. Não tive acesso, porém, a nenhum documento ou estudo que apresentasse de maneira concreta esse projeto alternativo, e em que, exatamente, e como, ele se distinguiria e se oporia, segundo alguns comentaristas, ao projeto imperial. Gostaria, sinceramente, de conhecer melhor os argumentos econômicos e políticos em favor desse tipo de projeto, de maneira e me habilitar a debatê-lo de modo aberto e profundo, como costumo fazer em relação aos diversos problemas que retêm minha atenção (entre eles, particularmente, o Mercosul e a Alca, já objeto de diversos trabalhos e alguns livros escritos a respeito). Desde já, apreciaria receber de todos os “comentaristas” da Alca indicações concretas sobre essa matéria, suscetíveis em todo caso de aumentar minha compreensão sobre essas vias alternativas da integração hemisférica.
Acredito, efetivamente, como proclamado pelo Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, que um outro mundo, e possivelmente também uma outra América, sejam possíveis e desejáveis e devemos todos esforçar-nos para torná-los reais e tangíveis, em benefício de milhões de miseráveis e oprimidos neste e em vários outros continentes. Tenho acompanhado religiosamente, se ouso dizer, ainda que apenas pela imprensa e através da documentação liberada na Internet, todos os encontros realizados na capital gaúcha, assim como sou um leitor atento de todos os documentos disponíveis sobre as questões da integração, do Mercosul e da Alca, sejam eles oficiais, dos governos, sejam eles “alternativos”, sejam ainda de observadores isentos, como costumam ser os economistas acadêmicos. 
Confesso, sinceramente, que, à parte as proclamações retóricas desse tipo, não tenho conseguido encontrar material de leitura suscetível de sustentar minhas reflexões sobre as vias alternativas do desenvolvimento e da integração, salvo em níveis muito altos de generalidade e de abstração, pelo menos não com o detalhamento das propostas oficiais em torno do Mercosul da Alca, da rodada Doha da OMC e em torno de muitas outras questões desse gênero. Aspiro, francamente, ao surgimento de propostas concretas que possam desviar o curso eminentemente (e, aparentemente, inevitavelmente) “capitalista” dos atuais processos de integração e de liberalização, e que nos coloquem num caminho alternativo de desenvolvimento e de integração. Até agora esse meu desejo não conseguiu se concretizar, talvez porque eu não tenha acesso a todos os debates e estudos realizados nessas instâncias alternativas. 
Em contrapartida, uma “Alca possível”, para mim, não seria nenhum grande projeto de integração hemisférica, e muito menos a realização perfeita e acabada de uma área de livre-comércio (para mim utópica, nas atuais circunstâncias), mas uma “colcha de retalhos” (de geometria variável segundo os parceiros e setores “colados” entre si), na qual teríamos de colocar na nossa “periferia” todas as nossas vantagens comparativas naturais e adquiridas e deixar no “centro protetor” os setores e ramos dotados ainda de relativa fragilidade sistêmica. As simulações econométricas que precisaríamos fazer para participar desse jogo nos permitiriam, precisamente, medir a situações de maiores ganhos de bem estar para a economia brasileira, adotando então um perfil absolutamente pragmático (e não necessariamente uniforme) nas áreas selecionadas para abertura seletiva. Não se poderia excluir nem mesmo, a esse respeito, entendimentos ad hoccom os EUA relativos a medidas de defesa comercial – um dos nossos “demônios” principais – nos vários exercícios negociais e absolutamente intratáveis até mesmo para as autoridades americanas em virtude dos humores congressuais.
Estou, por outro lado, absolutamente certo de que, assim como – no dito conhecido – os generais tendem a planejar a próxima guerra segundo as condições e técnicas militares dos combates precedentes, os diplomatas também negociam segundo cenários existentes em processos anteriores, sendo uns e outros ultrapassados pela dinâmica efetiva dos acontecimentos que se sucedem na vida real. Dessa forma, acredito que as empresas e os agentes econômicos, quando concluído o presente exercício negociador, terão avançado consideravelmente nos fluxos cruzados e nas interconexões recíprocas de investimentos produtivos, associações empresariais, fusões e outras formas diversas (e simultâneas) de market sharing, de cooperação e de competição, que diminuirão sensivelmente o impacto efetivo de uma futura (e ainda hipotética) Alca, assim como o Nafta, por exemplo, revelou-se bem menos transformador do que o “imenso sorvedouro de empregos” ou o “fabuloso manancial de modernização tecnológica”, imaginados por uns e temidos por outros.
A Alca (em grande parte imaginada e imaginária) cresceu a ponto de “seqüestrar” boa parte da atual agenda  diplomática brasileira, quando ela não é, de verdade, nem o monstro metafísico temido por alguns (os opositores), nem a solução mágica do desenvolvimento brasileiro desejada por outros (os “neoliberais”). Uma visão mais modesta desse exercício negociador, certamente complexo, mas nem por isso totalizador e totalitário, poderia contribuir para reduzi-lo às suas reais dimensões e eliminar, assim, os componentes ideológicos que hoje cercam o debate em torno dessa questão no Brasil. 
Quanto aos EUA, uma “Alca pragmática” – que provavelmente não será a mesma “possível” para o Brasil – certamente pode vir a satisfazer os setores da Administração americana que buscam “quaisquer” resultados politicamente aceitáveis, para o eleitorado e para o Congresso, ainda que não para as corporações mais exigentes em termos de programa maximalista. Estas são as opções reais e disponíveis no quadro do atual processo negociador de um acordo hemisférico, e elas estão muito longe, deve-se reconhecer, das invectivas anti-alcalinas e anti-imperialistas de comentaristas e opositores românticos (que ainda não conseguiram promover, ao que eu saiba, modelos alternativos de integração). Entre a Alca possível e a pragmática, tenho a impressão de que existe um certo espaço para um acordo razoável que possa atender a alguns dos interesses do Brasil. 

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 29/07/2003

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