Na verdade, os representantes atuais dessas correntes não possuem condições de propor qualquer programa racional de governo, pois uma está dominada por um mafioso encarcerado, a outra por um capitão desmiolado.
Lacerda seria alguém muito sofisticado para inspirar os ignaros rústicos da atualidade.
Louvo o cuidado de Lucas Berlanza em resgatar a grande contribuição de Carlos Lacerda para a política prática no Brasil – embora com restrições para com sua atitude realmente golpista em diversas oportunidades do esterilizante debate udenismo-pessedismo na República de 1946 –, mas não acredito que sua figura ou seus trabalhos possa fornecer a base para uma revitalização da UDN no momento presente.
Como dizia Roberto Campos, a UDN era um partido burro formado por homens inteligentes, e ele estendia essa "reflexão" ao Itamaraty igualmente. Em outros termos, mentes brilhantes podem ter frequentado tanto o partido quanto a Casa de Rio Branco, mas a ação coletiva deixava muito a desejar.
Paulo Roberto de Almeida
Livro busca reabilitar Lacerda, o Corvo, como padrinho da nova direita
A história não foi simpática com Carlos Lacerda (1914-1977).
Um dos grandes oradores do sua época, ficou marcado como o algoz de Getúlio Vargas. Houve um tempo em que lacerdismo, ou udenismo (de UDN, seu partido) eram quase palavrões.
Foi chamado de “Corvo”, apelido que pegou e o perseguiu até a morte. Político sagaz até a meia-idade, terminou a vida marcado como ingênuo, por ter acreditado que o golpe de 1964 seria apenas uma ponte para sua chegada ao Palácio do Planalto.
Num lance de desespero, teve de se humilhar ao formar uma quixotesca frente opositora com antigos adversários, como João Goulart e Juscelino Kubitschek. Fracassou.
Mas é possível ver Lacerda de outro ângulo. Por vias tortas, sua trajetória antecipou grande parte dos movimentos de direita que vemos neste início de século 21.
A retórica afiada antecipou a dos polemistas das redes sociais. A defesa de limites ao tamanho do Estado influencia a nova geração de liberais.
Mesmo sua conversão, de comunista militante para anticomunista ferrenho, é a mesma de diversos pensadores da direita atual.
Há um certo movimento de resgate da figura do jornalista e político, que atingiu o ápice quando governou o antigo estado da Guanabara (1960-65).
Em agosto, um encontro em Campinas (SP) aprovou a recriação da UDN (União Democrática Nacional), com loas a Lacerda. O partido, extinto em 1965 pela ditadura, ainda espera homologação do TSE para ser refundado.
Também está sendo lançado um novo livro sobre o tema. “Lacerda, a Virtude da Polêmica” (editora LVM), do jornalista Lucas Berlanza, é menos uma biografia clássica e mais um longo ensaio analítico sobre discursos e textos do personagem.
Berlanza não esconde admiração por Lacerda e busca, num livro denso e de rica pesquisa, contribuir para o resgate de sua imagem. Logo no início qualifica seu biografado como um “personagem incompreendido e injustiçado por contrariar os interesses de demagogos”.
“É um ícone do conservadorismo e do liberalismo no Brasil”, afirma o autor, que lamenta o fato de que “muitos porta-vozes da direita moderna parecem ter extremo pudor em assumir qualquer inspiração nele”.
Muito antes de Jair Bolsonaro fazer campanha prometendo unir o conservadorismo de costumes e o liberalismo econômico, Lacerda já percebia que esse era o caminho para a direita chegar ao poder e evitar a ascensão comunista. Defendia “preservar a ordem como único meio de salvar a liberdade”.
Pregou durante décadas a primazia da iniciativa privada e a desburocratização, e insurgiu-se como poucos contra o desenvolvimentismo de JK e suas políticas inflacionárias.
Foi um crítico da construção de Brasília, embora tenha recolhido sua artilharia quando viu que a empolgação na sociedade com a nova capital era uma onda irrefreável.
Mas foi no antiesquerdismo e suas inúmeras variações (varguismo, janguismo, sindicalismo) que Lacerda construiu sua reputação.
Abrigado no jornal “Tribuna da Imprensa”, seu texto era “cruento e satiricamente irresistível, usando e abusando de apelidos, invectivas pungentes, acusações e analogias das mais criativas”, como define Berlanza.
Num país carente de figuras de proa do conservadorismo (em oposição à abundância de “pais dos pobres”), é inevitável que Lacerda se destaque.
Mas há um obstáculo incontornável na tentativa de reabilitar a figura de Lacerda como uma espécie de godfather da nova direita: seu desapreço pela via democrática e seus constantes flertes com o golpismo. E Lacerda foi um golpista de mão cheia.
Um parágrafo que escreveu em 1950, por ocasião da eleição que trouxe Vargas de volta ao poder, até hoje é uma espécie de padrão-ouro da defesa da ruptura da legalidade:
“O sr. Getúlio Vargas não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
Nunca, nem antes nem depois, algo parecido foi dito, embora Berlanza tente suavizar um pouco a declaração argumentando que era uma espécie de apelo contra a volta ao poder de um ex-ditador.
Cinco anos depois, ele voltou à carga, tentando impedir a posse de JK na Presidência e Jango na Vice, recém-eleitos pelo voto popular. “Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar posse, não tomarão posse”, afirmou.
É justo, porém, que uma figura da importância histórica de Lacerda não seja reduzida à de alguém que passou a vida tramando contra adversários, algo que o livro faz muito bem.
E é inevitável não sentir uma certa melancolia com o fim de um político que poderia ter contribuído com o debate ideológico brasileiro muito mais do que conseguiu.
Preso pelo AI-5, ele fez greve de fome e escreveu uma tentativa de carta-testamento, talvez inspirado, ironicamente, pelo próprio Vargas que tanto combateu.
“Os heróis de fancaria vão ver como luta e morre, sozinho e desarmado, um brasileiro que ama a pátria, mas a pátria livre. Se isto acontecer, malditos sejam pra sempre os ladrões do voto do povo, os assassinos da liberdade”, disse.
Mas, diferente de seu arqui-inimigo, ele não saiu da vida para entrar na história. Morreria nove anos depois, uma pálida sombra do tribuno de outrora.
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