terça-feira, 25 de maio de 2021

O País do deboche - Ana Carla Abrão (OESP)

 O País do deboche

ANA CARLA ABRÃO

O Estado de S. Paulo, 25/05/2021

 

O Brasil se aproxima da triste marca de meio milhão de mortos por covid-19. Meio milhão! Milhares dessas mortes teriam sido evitadas se a ciência tivesse sido colocada à frente do negacionismo e de teorias persecutórias doentias. Mas não foi e ainda não é assim. É a ignorância de alguns que ainda nos guia por esses dias cada vez mais sombrios.

Nessa mesma triste esteira, mais de 14 milhões de brasileiros desempregados e 14,5 milhões em pobreza extrema engrossam os números de uma tragédia que levará décadas para ser revertida. Poderia ser pior não fossem os programas de apoio à manutenção do emprego e ainda mais profundos seus efeitos não fosse o auxílio emergencial. Muito mais eficaz e certamente bem mais barato teria sido priorizar a vacinação em massa. Mas as mesmas amadoras e doentias ideias que nos levaram a tantas mortes também nos condenaram a uma lenta e sofrida recuperação econômica, compondo o saldo final do negacionismo: mortes, desemprego e fome.

Mas a nossa tragédia vai muito além dos números. Ela também se traduz na corrosão dos nossos valores como sociedade. E essa sim deverá ser a pior das heranças que esse triste momento nos legará. Ao apostar no grotesco, no obscuro, no deseducado, na omissão e na mentira, estamos comprometendo nossa capacidade de avanço, de recuperação e de reversão. Não há sociedade que avance na ignorância. Não há desenvolvimento econômico ou justiça social que resistam aos erros repetidos, ao ódio, ao preconceito e à intolerância.

Os exemplos dos nossos desvios de curso são muitos. O mais recente deles, o loteamento do orçamento público, equivale a abrir mão da competência de governar. Delega-se e distribui-se essa função como se delegável fosse. Abandonam-se os conceitos de planejamento e gestão. A distribuição sorrateira, dissimulada e opaca dos recursos é feita por mecanismos amplamente conhecidos, sempre marcados por desvios, baixo retorno e desperdícios.

Anestesiados, vemos validadas e repetidas as práticas que têm como motivação um pouco de quase tudo, menos o interesse público. O furo no teto de gastos é outro exemplo. Sob o nobre pretexto de enfrentamento da pandemia e o falso argumento da proteção social, protegem-se os privilégios dos mais ricos em detrimento dos pobres de sempre. Como resultado, amplia-se a desigualdade social e o País como um todo empobrece.

Na educação, o desastre se aprofunda. Prioriza-se a discussão sobre homeschooling para atender aos interesses de uma das bases eleitorais do presidente da República, enquanto uma geração inteira de crianças e jovens brasileiros tem perdas irreversíveis de aprendizagem. O governo federal não orienta, não apoia e nem mitiga os impactos que irão comprometer a empregabilidade e a produtividade futura de tantos. 

Enquanto isso, ganha corpo um discurso delirante que ignora o conceito de Federação e acredita que repassar recursos exime o governo das tantas outras funções de gestão numa crise dessa magnitude. Na educação, assim como na pandemia, a desculpa padrão da transferência de responsabilidades a governadores e prefeitos e o confronto aberto nada mais são do que o enfraquecimento do pacto federativo e, portanto, do Brasil. Mas são os exemplos de corrosão de valores os que mais pesam. E o desfile de mentiras e de provas de omissão em que se transformou a CPI da Covid talvez seja uma das grandes representações dessa degradação. O País assiste, paralisado, ex-ministros e ex-assessores do governo, cuja função deveria ser a de atuar em prol da população, abusando de uma falsa retórica e desconstruindo os valores que deveriam nortear a vida pública: a ética, a moral, o respeito, a honestidade e a responsabilidade com o coletivo. A covardia, que deveria passar ao largo dos homens e mulheres públicos, escancara-se ora travestida de falsa humildade, ora de arrogância, lá ou nas manifestações públicas cheias de deboche. 

Pioramos muito. Perdemos muito. Falhamos vergonhosamente. Meio milhão de mortos é parte irrecuperável dos custos de escolhas erradas. A degradação das nossas instituições é outra parte. Mas estas, ao contrário das vidas perdidas, podem se recuperar desde que emerjam uma nova liderança política e uma agenda de País que resgate os valores que hoje se perdem em meio a tanta ignorância e a tanto deboche. 

 

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.