Uma questão ainda atual, ou seja, a confusão entre políticas de Estado, de governo e de partido, quando não de um homem só, geralmente megalomaníaco. Depois que publiquei essa nota (em 2009), o embaixador Meira Penna escreveu-me dizendo que não concordava com minhas críticas ao Itamaraty, feitas paralelamente numa lista de debates. Coloquei a postagem dele ao final, e minha resposta logo em seguida...
Paulo Roberto de Almeida
15/05/2021
2026. “Sobre políticas de governo e políticas de Estado: distinções necessárias”, Brasília, 11 julho 2009, 3 p. Exatamente o que diz o título. Postado no blog Diplomatizzando (12.07.2009; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/07/1218-sobre-politicas-de-estado-e.html). Revisto ligeiramente e adaptado para publicação no Instituto Millenium (13.08.2009; link: http://www.imil.org.br/artigos/sobre-politicas-de-governo-e-politicas-de-estado-distincoes-necessarias/). Relação de Publicados n. 914.
Sobre políticas de governo e políticas de Estado: distinções necessárias
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11/07/2009
Saber se uma determinada política seguida por um governo específico, num dado momento da trajetória política de um país, corresponde a uma expressão da chamada “vontade nacional” – ou seja, se ela corresponde ao que normalmente se designa como política de Estado – ou se ela, alternativamente, expressa tão somente a vontade passageira de um governo ocasional, numa conjuntura precisa, geralmente breve ou temporária, da vida política desse mesmo país não é, certamente, uma questão trivial, pois esse conhecimento envolve usualmente a consideração de certo número de elementos objetivos que podem entrar na categoria dos sistêmicos, ou estruturais, ou também na classe dos passageiros, ou circunstanciais.
Muitos pretendem que toda e qualquer política de governo é uma política de Estado, já que um governo, que ocupa o poder num Estado democrático – isto é, emergindo de eleições competitivas num ambiente aberto aos talentos políticos – é sempre a expressão da vontade nacional, expressa na escolha regular daqueles que serão os encarregados de formular essas políticas setoriais. Os que assim pensam consideram bizantina a distinção, mas estes são geralmente pessoas do próprio governo, eventualmente até funcionários do Estado que pretendem se identificar com o governo de passagem. O que se argumenta é que, na medida em que suas propostas políticas já foram “aprovadas” previamente no escrutínio eleitoral, elas correspondem, portanto, aos desejos da maioria da população, sendo em conseqüência “nacionais”, ou “de Estado”.
Não é bem assim, pois raramente, numa competição eleitoral, o debate pré-votação desce aos detalhes e minudências das políticas setoriais e a todos os contornos e implicações dos problemas que podem surgir na administração corrente do Estado após a posse do grupo vencedor. Campanhas eleitorais são sempre superficiais, por mais debates que se possam fazer, e os candidatos procuram simplificar ainda mais os problemas em confronto, adotando slogans redutores, e fazendo outras tantas simplificações em relação às posições dos seus adversários. Por outro lado, as promessas são sempre genéricas, sem muita quantificação – diretamente quanto às metas ou sua expressão orçamentária – e sobretudo sem precisão quanto aos meios e seus efeitos no cenário econômico ou social. Todos prometem empregos, distribuição de renda, crescimento e desenvolvimento, defesa dos interesses nacionais, resgate da dignidade e da cidadania e outras maravilhas do gênero. Em outros termos, raramente a eleição de um movimento ou partido político ao poder executivo lhe dá plena legitimidade para implementar políticas de governo como se fossem políticas de Estado, que por sua própria definição possuem um caráter mais permanente, ou sistêmico, do que escolhas de ocasião ou medidas conjunturais para responder a desafios do momento.
Políticas de governo são aquelas que o Executivo decide num processo bem mais elementar de formulação e implementação de determinadas medidas para responder às demandas colocadas na própria agenda política interna – pela dinâmica econômica ou política-parlamentar, por exemplo – ou vindos de fora, como resultado de eventos internacionais com impacto doméstico. Elas podem até envolver escolhas complexas, mas pode-se dizer que o caminho entre a apresentação do problema e a definição de uma política determinada (de governo) é bem mais curto e simples, ficando geralmente no plano administrativo, ou na competência dos próprios ministérios setoriais.
Políticas de Estado, por sua vez, são aquelas que envolvem as burocracias de mais de uma agência do Estado, justamente, e acabam passando pelo Parlamento ou por instâncias diversas de discussão, depois que sua tramitação dentro de uma esfera (ou mais de uma) da máquina do Estado envolveu estudos técnicos, simulações, análises de impacto horizontal e vertical, efeitos econômicos ou orçamentários, quando não um cálculo de custo-benefício levando em conta a trajetória completa da política que se pretende implementar. O trabalho da burocracia pode levar meses, bem como o eventual exame e discussão no Parlamento, pois políticas de Estado, que respondem efetivamente a essa designação, geralmente envolvem mudanças de outras normas ou disposições pré-existentes, com incidência em setores mais amplos da sociedade.
Se quisermos ficar apenas com um exemplo, no âmbito da diplomacia, pode-se utilizar esta distinção. Política de Estado é a decisão de engajar um processo de integração regional, a assinatura de um tratado de livre comércio, a conclusão de um acordo de cooperação científica e tecnológica numa determinada área e coisas do gênero. Política de governo seria a definição de alíquotas tarifárias para um setor determinado, a exclusão de produtos ou ramos econômicos do alcance do tratado de livre comércio, ou a assinatura de um protocolo complementar definindo modalidades para a cooperação científica e tecnológica na área já contemplada no acordo. Creio que tanto o escopo das políticas, como os procedimentos observados em cada caso podem ser facilmente distinguidos quando se considera cada um dos conjuntos de medidas em função das características definidas nos dois parágrafos precedentes.
Por isso, não se pode pretender que as políticas de Estado possam ser adotadas apenas pelo ministro da área, ou mesmo pelo presidente, ao sabor de uma sugestão de um assessor, pois raramente o trabalho técnico terá sido exaustivo ou aprofundado o suficiente para justificar legitimamente essa designação. Isso se reflete, aliás, na própria estrutura do Estado, quando se pensa em como são formuladas e implementadas essas políticas de Estado.
Pense-se, por exemplo, em políticas de defesa, de relações exteriores, de economia e finanças – em seus aspectos mais conceituais do que operacionais – de meio ambiente ou de educação e tecnologia: elas geralmente envolvem um corpo de funcionários especializados, dedicados profissionalmente ao estudo, acompanhamento e formulação das grandes orientações das políticas vinculadas às suas respectivas áreas. Ou considere-se, então, medidas de natureza conjuntural, ou voltadas para uma clientela mais restrita, quando não ações de caráter mais reativo ou operacional do que propriamente sistêmicas ou estruturais: estas podem ser ditas de governo, aquelas não.
Portanto, quando alguém disser que está seguindo políticas de Estado, pare um pouco e examine os procedimentos, a cadeia decisória, as implicações para o país e constate se isso é verdade, ou se a tal política corresponde apenas e tão somente a uma iniciativa individual do chefe de Estado ou do ministro que assim se expressou. Nem todo presidente se dedica apenas a políticas de Estado, e nem toda política de Estado é necessariamente formulada pelo presidente ou decidida apenas no âmbito do Executivo. Como dizem os americanos: think again, ou seja, espere um pouco e reconsidere o problema...
Brasília, 11 de julho de 2009
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DEBATE:
On 30/07/2009, at 20:56, José Osvaldo de Meira Penna wrote:
Caro Paulo Roberto,
Talvez V. tenha motivos para sua crítica do Itamaraty, que acho injusta. Eu, pessoalmente, também não concordo com as iniciativas do Amorim mas a subserviência ao poder é o que se deve esperar de um órgão do governo. Nunca foi minha impressão depois de meio século de carreira que o Itamaraty seja uma Casa feudal. Uma carreira cujos membros são selecionados por concurso não pode ser feudal, eis que o feudalismo se define como essencialmente hereditário. Curiosamente, o que me parece feudal é o sistema que o barão do Rio Branco usava para, pessoalmente, escolher as pessoas que julgava dignas de entrar na Casa. Repito que não aprecio a atual diplomacia petista mas acho que acusações injustas enfraquecem a causa.
Um abraço do Meira Penna
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Caro Embaixador Meira Penna,
O Itamaraty é um órgão de Estado, não de governo. Embora deva obediência ao governo do momento, seus métodos, práticas, processos decisórios deveriam enquadrar-se em praticas de Estado, não de governo.
Tracei as distinções necessárias num recente artigo meu, não publicado, mas disponível num dos meus blogs:
Sobre políticas de governo e políticas de Estado: distinções necessárias, Brasília, 11 julho 2009, 3 p. Exatamente o que diz o título. Postado no blog Diplomatizzando (12.07.2009; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/07/1218-sobre-politicas-de-estado-e.html).
Diplomatas que se consideram servidores do Estado, e não apenas do governo, poderiam evitar ser subservientes a ponto de virem a público defenderem posições com as quais eles estão em desacordo, sabem que estão em desacordo, e tem vergonha de defender, mas o fazem por subserviência ao governo, ou ao chefe de plantão.
O feudalismo não tem tanto a ver com hereditariedade, quanto com o sentido da hierarquia servil, a vinculação do servo ao seu amo, e a prestação de serviços a este, e ao que vier em seu lugar, hereditário ou não. O temor reverencial à autoridade é notorio no Itamaraty, e poucos diplomatas ousam contestar o chefe, mesmo quando este está notoriamente errado, mal informado, deliberadamente equivocado. Isso é feudalismo e nao um ambiente democrático.
O Barao do Rio Branco era, literalmente, um barao feudal, decidia sozinho, sem qualquer concurso, quem podia ou nao ser diplomata. Isso é feudalismo. Alem de tudo era misogino, como muitos o foram na carreira, até os anos 1960, pelo menos.
Independemente de ser de esquerda, ou de direita, o Itamaraty é, sempre foi, continua e continuará sendo, eminentemente feudal.
Isto não é uma acusacao injusta, é uma simples constatacao, que qualquer antropólogo poderia fazer, se acompanhasse de perto os rituais do Itamaraty.
Passado este governo, que transformou o Itamaraty numa monarquia absoluta, ele continuará a ser feudal...
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Paulo Roberto de Almeida
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