sábado, 14 de maio de 2022

Guerra na Ucrânia e suas implicações para o Brasil - Paulo Roberto de Almeida (Intervenção oral no evento do Mackenzie)

Abaixo, meu texto-guia, usado de maneira muito informal e seletiva (ou seja, não foi lido, assim como o texto maior preparado como base conceitual da palestra, a que eu refiro in fine), na sessão de encerramento da XX Semana de Ciências Sociais Aplicadas do Mackenzie.

O vídeo dessa sessão encontra-se disponível no seguinte link: 

Palestra 050 - Guerra da Ucrânia e as implicações no Brasil 20h30 13-05-2022: https://www.youtube.com/watch?v=7jQtR277iDc

A palestra do embaixador Rubens Barbosa começa ao 38:09 minutos (do total de mais de duas horas do evento); minha palestra começa aos 1:06:41 e vai até 1:28:08, seguida pela excelente explanação do Juliano Ferreira, um economista da mais alta qualidade, como vocês poderão assistir na sequência do vídeo.

Guerra na Ucrânia e suas implicações para o Brasil 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para exposição oral no quadro do encerramento da Semana de Ciências Sociais do Mackenzie, em 13/05/2022, 20h30

 


O tema título desta sessão de encerramento é bastante amplo, embora instigante. Como se trata de um evento organizado pelo Centro de Liberdade Econômica do Mackenzie, pode-se tentar abordar o tema por meio do conceito de liberdade econômica, justamente. 

Não existe maior cerceamento à liberdade econômica do que a guerra, sobretudo uma guerra não justificada por qualquer preocupação real com ameaça à soberania e à segurança de um país, que seria a única justificativa inscrita na Carta das Nações Unidas para o recurso legítimo ao uso da força militar, ou seja, a defesa de um país ante um ataque iminente. Todas as demais hipóteses de apelo ou uso efetivo da força estão banidas pela Carta de San Francisco de 1945, como aliás já estavam antes, pelo Pacto Briand-Kellog de 1928, ao qual o Brasil aderiu em 1931. 

Mas, parece que esse tratado, banindo as guerras e prescrevendo o uso de meios pacíficos para a resolução de diferendos entre os Estados signatários, não funcionou a contento na década seguinte, tendo em vista sua derrogação prática desde a invasão da Manchúria pelo Japão em 1931 (depois ao resto da China em 1937), assim como pela invasão da Etiópia pelas forças fascistas da Itália em 1935, assim como as ameaças da Alemanha nazista contra a Áustria e a Tchecoslováquia em 1938-39, assim como a selvagem intervenção das duas potências fascistas na guerra civil espanhola de 1936-39.

O segundo maior fator de cerceamento à liberdade econômica são as sanções econômicas por quaisquer motivos, geralmente por desentendimentos políticos, territoriais, comerciais, ou ameaça à segurança nacional, justamente, mas, no registro histórico das sanções no decorrer do século XX, a maior parte delas foi, tem sido, de forma unilateral, uma vez que as sanções multilaterais foram extremamente raras. No âmbito da Liga das Nações, as sanções contra a Itália pela invasão de um outro membro da própria Liga foram muito débeis, para não dizer totalmente inócuas; elas nem existiram para o caso do Japão em 1931 ou para os casos mais graves da invasão e esquartejamento da Polônia, em ação conjunta da Alemanha hitlerista e da União Soviética stalinista em 1939, para não mencionar a invasão e a incorporação dos três países bálticos, independentes desde 1919, pela União Soviética em 1940, ou sua criminosa guerra contra a Finlândia no mesmo ano. Diga-se de passagem, que o Brasil do Estado Novo simpático ao fascismo nunca reconheceu esse sequestro violento pela URSS de três países independentes, com os quais o Brasil mantinha relações diplomáticas normais, ainda que pela via cumulativa. 

Descobri isto quando comecei a trabalhar com o então conselheiro Rubens Barbosa na Divisão da Europa Oriental, em 1977, e encontrei, nos arquivos da DE-II, três maços, um pouco sonolentos, correspondendo a cada um dos três bálticos, Estônia, Letônia e Lituânia. Nunca me esqueci disso, mas só me inteirei dos detalhes mais tarde, quando, ao pesquisar sobre a gestão Oswaldo Aranha no Itamaraty – o segundo maior chanceler do Brasil no século XX, depois de Rio Branco –, fui ler os relatórios do Ministério das Relações Exteriores relativos aos anos de guerra e constatar que até o governo arbitrário do Estado Novo não reconhecia a anexação pela força de territórios de Estados independentes, o que se aplicava tanto ao governo da Polônia, em 1939, quanto aos dos três países bálticos, em 1940.

 

Guerras e sanções, unilaterais ou multilaterais, por causa de guerras ou quaisquer outras desavenças entre Estados, ou entre chefes de Estado, são, portanto, os maiores entraves à liberdade econômica que possam existir. Mas as sanções existem e são usadas justamente como armas econômicas, ainda mais terríveis, como aliás reconheceu seu propositor formal, o presidente Woodrow Wilson, ao estabelecer suas propostas para a conferência de paz de Paris em 1919. Transcrevi suas palavras, tal como relembradas pelo professor Nicholas Mulder em seu livro Economic Weapon (2022), do qual retirei largos trechos para inseri-los em meu trabalho “A guerra da Ucrânia e as sanções econômicas multilaterais”, já colocado à disposição de todos em minha página da plataforma Academia.edu. Como também registrado nesse trabalho e em todos os livros que consultei, o maior volume de sanções é sempre de natureza econômica e de iniciativa unilateral, contra algum parceiro recalcitrante de uma potência mais arrogante. O Brasil já entrou no grande clube dos recalcitrantes sancionáveis e não apenas por questões de comércio exterior (subsídios considerados ilegais, créditos fiscais muito generosos e contrários aos regimes do Gatt, contrafação de produtos ou pirataria de software e sistemas informáticos, suposto dumping de produtos siderúrgicos ou simplesmente reclamação de alguma indústria poderosa contra uma concorrência mais atraente, julgada, a torto ou a direito, como desleal). 

O Brasil também sofreu sanções econômicas, na verdade políticas, como, por exemplo, quando o governo Goulart parecia que se dava bem com os comunistas, e tínhamos vários governadores de esquerda, ou simplesmente progressistas: Leonel Brizola, por exemplo, governador do Rio Grande do Sul (1958-62), nacionalizou, ou estadualizou, em todo caso expropriou, duas empresas americanas e não queria pagar indenização; Miguel Arraes, de Pernambuco, e Mauro Borges, de Goiás, eram considerados nacionalistas antiamericanos; assim, os americanos cortaram assistência, empréstimos e financiamentos ao governo da União e passaram a ajudar apenas os governadores amigos dos Estados Unidos. Depois é que veio a promessa de ajuda aos militares golpistas, se por acaso ocorresse uma guerra civil. Outros países foram tratados de igual forma, os governos amigos a pão de ló, mesmo que fossem ditaduras, os recalcitrantes na base da ameaça do big stick, o porrete, como foi o caso da Guatemala de Jacobo Arbens, o Irã de Mossadegh, e outros. 

 

No caso da Ucrânia ou de outros países anteriormente fazendo parte da União Soviética, ou daqueles inseridos na chamada Cortina de Ferro nos tempos da Guerra Fria, não foram poucos os que incorrerão em retaliações de Moscou, mesmo deixando de lado as incursões armadas, como a Hungria de 1956, a Tchecoslováquia de 1968, ou ameaças de visitas de tanques soviéticos por discordâncias políticas, como a Polônia do Solidarnosc, a Romênia julgada muito independente, na primeira fase de Ceausescu, ou ainda a Albânia, que se bandeou para o lado da China maoísta, quando a União Soviética foi acusada de ser “revisionista”. Todos eles sofreram sanções ou ameaças de intervenção, quando não atuação direta do KGB junto aos membros fiéis dos partidos comunistas amigos de Moscou. Já na fase putinesca, a partir dos anos 2000, os países independentes das antigas repúblicas federadas soviéticas – bálticos e Europa central e oriental –, assim como os “associados” à Rússia, Belarus, Ucrânia e as antigas satrapias da Ásia central passaram por diversos constrangimentos derivados do desejo do novo czar de todas as Rússia de recompor as fronteiras do antigo império, cuja dissolução, disse ele, foi “a maior tragédia geopolítica do século XX”. Creio que foi realmente, ao cabo dos “dez anos que abalaram o mundo”, não exatamente o “fim da história”, mas o cumprimento de um vaticínio que já tinha sido antecipado muitos anos antes por mentes lúcidas como Hélène Carrère d’Encausse e Emmanuel Todd, por diferentes razões – periferia islâmica ou declínio demográfico –, mas todas elas convergentes com outro vaticínio, o de Jean-Baptiste Duroselle, segundo quem “todo império perecerá”. Aliás, o mesmo Emmanuel Todd escreveu um outro livro, Après l’Empire, prevendo a decomposição do império americano. 

Voltando à questão dos impactos econômicos da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia e seus efeitos sobre o Brasil, creio que muito já foi dito nas reportagens dos grandes jornais ocidentais e nos artigos analíticos e de opinião de famosos jornalistas e de economistas: podemos estar às vésperas de uma nova Grande Recessão, pelos efeitos combinados da guerra diretamente – interrupção de fluxos comerciais, ruptura de abastecimento, destruição dos canais logísticos do lado da oferta –, como pelos que derivam das fortes sanções unilaterais, mas convergentes, dos grandes atores da economia global, com exceção da China, que provocam consequências igualmente devastadoras para o alvo designado e para os autores das sanção. A China também não deixará de sentir os efeitos do novo regime de exclusão e de isolamento da Rússia, uma vez que seus grandes mercados estão praticamente todos nos países aplicadores de sanções. O Brasil, como a própria Rússia, sentiu os efeitos “benéficos” da guerra – subida das commodities de exportação, sobretudo na energia e nos alimentos –, mas também sofre os efeitos maléficos: inflação importada, ruptura de insumos cruciais para a economia brasileira, impactos difusos em quase todos os setores produtivos, no comércio exterior e no câmbio. 

Os economistas saberão explicar melhor do que eu a importância e a magnitude desses choques para a vida econômica e financeira do Brasil. O que eu poderia tentar argumentar, e com isso terminarei, seria a questão de saber se estamos entrando, como afirmou há pouco a velha raposa Henry Kissinger, numa nova era das relações internacionais. Creio que não é o caso, pelo menos não totalmente ou radicalmente, apenas parcialmente, uma vez que a Rússia é, sim, um grande ator das relações internacionais. Mas é preciso bem mais do que o isolamento de um grande ator para precipitar o surgimento de um mundo inteiramente diverso deste que temos atualmente, com a ordem econômica nascida em Bretton Woods, e ainda resiliente, e a ordem política inaugurada em San Francisco, e que ainda se mantém, a despeito de fissuras em seu edifício mais do que septuagenário. 

A questão central me parece ser o direito de veto, o mesmo que impede a imposição de sanções multilaterais contra a Rússia – da mesma forma como foi feito contra a África do Sul do Apartheid, contra a Rodésia do Sul de minoria branca, contra a Coreia do Norte, o Iraque de Saddam Hussein, o Afeganistão dos talibãs dos anos 2000. Creio que será preciso uma longa caminhada da comunidade internacional para que a Assembleia Geral, em talvez mais vinte ou trinta anos, com a crescente multipolaridade mundial, consiga dobrar a prepotência dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança no sentido de banir essa discriminação no princípio básico das relações internacionais contemporâneas, que é a igualdade soberana dos Estados, como proclamava Rui Barbosa em 1907. 

Não será uma caminhada fácil, pois o atual sistema do CSNU se parece muito com aquele velho samba-canção sobre a gafieira: “quem está fora não entra, quem está dentro não sai”, mas não é verdade que o baile segue calmamente: as tensões, e as ameaças de conflito nuclear, se acumulam, enquanto déspotas agressores permanecerem impunes. Pois é isso que está em causa atualmente no debate nos foros multilaterais sobre como tratar o caso da Rússia, de acordo com os princípios consagrados do Direito Internacional, ou aceitando escapatórias ao que deve ser feito, como parece estar ocorrendo neste mesmo momento com a diplomacia do Brasil sob o atual governo.

Com efeito, segundo leio uma matéria do jornalista Jamil Chade no UOL desta quarta-feira: 

O governo de Jair Bolsonaro manobra para tentar esvaziar uma resolução que será votada nesta semana na ONU (Organização das Nações Unidas) e retirar acusações diretas sobre crimes que possam ter sido cometidos na Ucrânia pela Rússia. O Itamaraty chegou a propor a exclusão do termo "agressão contra a Ucrânia" do projeto de resolução apoiado por europeus e países ocidentais. (“Na ONU, Brasil tenta esvaziar acusação contra Rússia por causa da guerra”, UOL notícias, 11/05/2022; link: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/05/11/na-onu-brasil-tenta-esvaziar-acusacao-contra-russia-por-causa-da-guerra.htm?cmpid=copiaecola&fbclid=IwAR2DeQ9qUOaaL9SHr4pN5HIFYzerGs0qWPcXWSVCTN1brteavEw5BjJ1wCk)

 

Como ainda escreveu o competente jornalista, registrando que a delegação do Brasil tem se esforçado para eliminar qualquer responsabilização da Rússia pelo que ela chama de  “conflito” e não de agressão, há um esforço visível para poupar a Rússia de qualquer tipo de acusação mais contundente: 

Ao longo das últimas semanas, o Itamaraty passou a adotar uma postura crítica contra diferentes resoluções apresentadas pela Europa nos vários órgãos internacionais. O argumento do Brasil é de que o "cancelamento diplomático" da Rússia ameaça aprofundar a crise e radicalizar as posições. Ao lado de China, Índia e outros países, o Brasil também é contra a expulsão dos russos do G20 e não deu seu voto para a suspensão do Kremlin do Conselho de Direitos Humanos.

 

Esse é o mesmo Brasil que, junto com o G4 – em companhia da Índia, da Alemanha e da África do Sul – tem envidado muitos esforços, desde a era Lula, para reformar a Carta da ONU, ampliar o número dos membros permanentes do seu Conselho de Segurança, a pretexto de “democratizar as relações internacionais”, que mais parece uma tentativa de ampliar a atual oligarquia num sistema que deveria ser simplesmente eliminado. Se não fosse uma ilusão política, sem qualquer correspondência com a capacidade do Brasil de contribuir efetivamente para a paz e a segurança internacionais, eu diria que é pura hipocrisia.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4153: 11 maio 2022, 5 p.


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