Velhos e novos amigos: as cartas do Dr. Everardo Moreira Lima
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Resenha do livro de Everardo Moreira Lima, Cartas aos Amigos (Rio de Janeiro: N 30 Editorial, 2022, 212 p.; ISBN: 978-85-5484-303-8).
Nunca é tarde para se fazer novos amigos, assim como para continuar cultivando os velhos amigos, inclusive para conquistar novos admiradores entre leitores que estão muito longe no espaço e, talvez, um pouco menos na dimensão temporal. Esta é a impressão que recolho depois de percorrer as cartas, na verdade verdadeiras crônicas (de viagens, de leituras, de trabalho, de aprendizado), escritas ao longo de mais de três décadas, sobre um pouco de tudo, começando pela infância, percorrendo a vida e o tempo, e culminando na pós-verdade, sem esquecer o novo e já velho grande problema da atualidade: o aquecimento global. O livro, prefaciado em janeiro de 2022, e apresentado pelo seu próprio filho, Sérgio Eduardo Moreira Lima –meu chefe, quando nos divertimos juntos, ele na presidência da Fundação Alexandre de Gusmão, eu na direção do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais, entre 2016 e 2018 – é uma coletânea muito bem organizada das melhores “cartas” que o Doutor Everardo dirigiu por iniciativa próprias aos seus muitos amigos, tratando dos temas que mais lhe interessaram ao longo de uma vida intensamente vivida, entre itinerários familiares, viagens de lazer, leituras – autores brasileiros e estrangeiros, de Homero a Garcia Márquez, de Machado a Camus – e uma excelente cartilha (em quatro lições) para o “exercício da cidadania brasileira”.
As orelhas são assinadas por um neto, Leonardo, e a contracapa por ninguém menos do que o nosso antigo Consultor Jurídico do Itamaraty (1985-1990) e juiz, falecido neste mesmo ano, da Corte Internacional de Justiça, Antonio Augusto Cançado Trindade, que destaca o que tinha o prazer de compartilhar com o autor, a lição de Aristóteles, “para quem o bem, para o ser humano, reside no exercício da excelência (que implica perfeição e probidade), podendo a excelência moral ser adquirida pela prática e pelo hábito, e a intelectual com o tempo e a experiência, moldando o comportamento justo com os demais”. As afinidades eletivas entre ambos se explicam por “um gosto comum, o do cultivo do estudo do tempo, não só no universo conceitual do Direito, mas também, e sobretudo, na condição existencial”. Pois foi essa a característica que me chamou a atenção neste livro original, um modelo perfeito para quem sabe, empreender uma obra não semelhante, mas similar?
Destaco, de imediato, como útil para nossa familiaridade com a grande família dos Moreiras Limas, a fotos coletadas por um de seus filhos de alguns integrantes desse grande clã, assim como uma árvore genealógica, do século XIX ao XXI, de todos os antecessores e descendentes deste ilustre membro da advocacia, do Ministério Público, os amigos que lhe fizeram companhia, durante décadas seguidas, em restaurantes do Rio de Janeiro. A afeição por ele demonstrada em direção desses muitos amigos transparece em muitas das cartas, inclusive em viagens, uma das quais à Hungria, quando seu filho Sérgio Eduardo se exercia como embaixador nesse país do finado império soviético. Everardo destaca, num dos textos iniciais, sobre o “significado” destas cartas aos amigos, que
... desde muito cedo, venho registrando nestes escritos meu ponto de vista contra o desmatamento da Amazônia, pela preservação das florestas e do meio ambiente, como também pela manutenção dos povos indígenas nos territórios onde viveram tradicionalmente, vale dizer, onde sempre estiveram suas tribos, posição esta que tem a finalidade de evitar o aquecimento do planeta e a consequente extinção dos seres vivos, inclusive da espécie humana. (p. 29)
Vale destacar, também, de imediato e de modo singularmente atrativo, sua redação límpida, sem adjetivos rebarbativos, num estilo ao mesmo tempo coloquial e erudito, com as muitas referências a autores das mais diversas origens e épocas. A parte IV, dedicada à literatura, explica, provavelmente, a correção da linguagem e a profundidade das reflexões próprias sobre autores os mais diversos, da antiguidade aos atuais, começando pelas três seções de uma “Pequena Estante de Literatura Brasileira” de Manuel Antonio de Almeida (Memórias de um Sargento de Milícia) a Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha) e o inevitável Machado de Assis, que para ele se situa “nos altiplanos da literatura universal” (p. 132). Do criador da Academia Brasileira de Letras, ele cita os romances mais importantes, destacando a originalidade das Memórias póstumas de Brás Cubas (p. 135). Sobre o maior autor brasileiro, ele se refere inclusive a um romance recente, O Homem que Odiava Machado de Assis (por José Almeida Júnior, cujo nome ele não cita), do qual ele não gostou, por ser um “machadista ferrenho” (p. 139), terminando por transcrever o poema que Machado dedicou à sua finada esposa, Carolina, que está no centro das intrigas desse curioso romance de um acusador e inimigo de Machado.
Os muitos textos da primeira seção, trinta mais exatamente, são saborosas crônicas sobre uma saga familiar tipicamente brasileira, com as sucessivas migrações dos estados setentrionais até o estabelecimento na segunda capital da República, mas com ramos que se espalharam em outros estados e até mundialmente. A parte III é inteiramente dedicada a uma viagem com amigos de trabalho a Portugal, objeto de trinta páginas de uma bem planejada incursão na terrinha, em março e abril de 2018. A Parte V, A Vida e o Tempo, é, talvez, a mais reflexiva, e instrutiva, de todo o livro, com considerações de grande densidade intelectual sobre as vários noções do tempo, nas obras e pensamentos de filósofos famosos (de Aristóteles, na antiguidade, ao francês Comte-Sponville), mas também oferecendo lições de história – calendários juliano e gregoriano, por exemplo – e os ensinamentos próprios que o Doutor Everardo adquiriu na fruição dessas obras e na absorção do significado dessa abstração que não tem existência tangível. Como ele mesmo explica:
O tempo não está na consciência como uma coisa, somos nós mesmos que o intuímos pelos sentidos e convencionamos os padrões de sua medida em relação a coisas para facilitar a comunicação.
Não é o tempo que passa, somos nós que passamos. Tudo na natureza nasce, vive e morre. Somos protagonistas e testemunhas desse ciclo inexorável. (p. 175)
Na última parte, VII, dedicada à Pós-Verdade, há toda uma reflexão, distribuída em quatro textos de títulos similares, sobre os “fatos alternativos”, expressão utilizada “pela primeira vez por George Orwell (Eric Arthur Blair) no seu livro “1984”, lançado em 1949, como forma de o Estado totalitário apresentar sua versão dos fatos” (p. 208). Doutor Everardo faz a imediata conexão com as práticas do inacreditável presidente americano dessa época (2017), Trump, o ídolo do presidente brasileiro eleito um ano depois (mas esse repetidor de “fatos alternativos” não comparece em nenhuma das cartas). O epílogo dessas cartas é oferecido com todo o carinho do Doutor Everardo:
A título de epílogo, gostaria de agradecer aos meus leitores e dizer-lhes do meu prazer, ao longo dos últimos trinta anos, em poder escrever a Carta aos Amigos e da satisfação ainda maior em receber comentários. Seria difícil de imaginar, que aos 98 anos pudesse manter vivo o desejo de comunicar-me com esse pequeno universo de pessoas com quem compartilhei estórias, impressões e sentimentos. (p. 211)
Bem mais do que isso, Doutor Everardo, seu livro teve o poder de “fabricar” novos amigos, mesmo distantes e num formato virtual. Aprendi muito com suas dezenas de cartas, não apenas pelo estilo claro, sincero, transcendendo simpatia com amigos e, sobretudo, o seu caráter íntegro, honrado e intelectualmente honesto e modesto. Dele retirei inspiração e um modelo para lançar-me num empreendimento não semelhante, mas certamente similar.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4279: 28 novembro 2022, 3 p.
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