Em meados de junho do corrente ano, eu ensaiava algumas hipóteses sobre o que seria, qual seria a diplomacia do presidente eleito Lula, em outubro. O texto permaneceu inédito desde então. Coloco-o à disposição agora, em novembro de 2022, com Lula já eleito e tendo algumas indicações de qual seria a sua política externa, mas sem reler o texto ou fazer qualquer observação adicional.
Cabe aos leitores apreciar sua validade continuada.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de novembro de 2022
Um Lula 3 na política externa: o nunca antes all over again?
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Nota sobre os desafios de um novo governo Lula no âmbito da diplomacia).
Brasília, 4169: 12 de junho de 2022.
Admitindo-se a vitória de Lula no 1º ou no 2º turno das eleições de outubro de 2022 e sabendo que seu principal conselheiro em política externa continua sendo o ex-chanceler Celso Amorim, quais poderiam ser as grandes linhas da diplomacia de Lula em seu terceiro mandato? Para responder a essa pergunta, cabe em primeiro lugar traçar as principais características do cenário internacional a partir de 2023 (até, previsivelmente, 2026), as tendências prováveis no plano regional, para, em segundo lugar, tentar adivinhar quais seriam as iniciativas e esforços diplomáticos a serem deslanchados por esse novo governo desde o final deste ano e, sobretudo, a partir de sua inauguração em janeiro de 2023.
O cenário internacional será ainda marcado – não se sabe por quanto tempo mais – pelo prosseguimento de hostilidades na Ucrânia e, portanto, com impasses relativamente duráveis nas relações entre as principais potências apoiadoras do atual governo da Ucrânia, por um lado, e a Rússia, por outro lado, com o apoio mais ou menos discreto da China, assim como a continuidade da posição indefinida dos demais Brics, seja Brasil, Índia e África do Sul. Em outros termos, a impossibilidade prática de diálogo, seja no plano multilateral, seja no contexto regional ou bilateral, entre os contendores e seus apoiadores tende a assegurar a continuidade da tensão atual nas relações internacionais, com escolhas difíceis a serem feitas pelos países diretamente envolvidos, assim como pela comunidade internacional em geral. Se os EUA continuarem com seu projeto impossível de “conter a China”, o cenário poderá se agravar ainda mais, com aumento das tensões bilaterais e seus reflexos regionais e no plano multilateral; ou seja, estamos embarcando num cenário de tensões e fricções contínuas.
No plano regional, o mais provável é a continuidade da “desintegração”, ou seja, a difícil reconstrução de instâncias e mecanismos de consulta e coordenação em vista de visões distintas na América do Sul, e mesmo na América Latina, quanto a quais instrumentos se deveria apelar (Celac, Unasul reconstruída?) ou tentar reconstruir para essa tarefa. As razões principais estão na grande diferenciação de orientação política dos diferentes governos, vários com muitas dificuldades internas, o que torna difícil o estabelecimento de uma plataforma mínima, consensual, de entendimento quanto aos instrumentos regionais que deveriam ser colocados em marcha. Esse processo requereria estadistas suficientemente capazes, e legítimos, para tal tipo de empreendimento, o que não é certo que surjam. Na fase anterior, havia certo número de líderes políticos nacionais – Lula, Chávez, Kirchner, Morales, Correa, e alguns outros – capazes de dialogar e mobilizar consensos, o que não é certo que se obtenha a partir de 2023, mesmo com o retorno de Lula ao poder: ele dialogaria com quem exatamente? Os calendários eleitorais e a fragmentação dos velhos partidos nacionais tendem a criar uma atmosfera pouco propícia a grandes empreendimentos continentais.
O que ocorrerá na diplomacia brasileira a partir da vitória de Lula, no começo ou no final de outubro de 2022? Conhecendo-se o personagem, é presumível que, passando a escolher seus principais assessores presidenciais, ele dê uma importância imediata à frente externa, com um discurso que pretende “resgatar” a imagem deteriorada do Brasil no cenário internacional por Bolsonaro, passando a dialogar com diversos líderes estrangeiros e até programando viagens externas nos dois últimos meses do ano. Teremos um documento-guia de política externa, formulado previsivelmente por Celso Amorim – com a interferência de alguns apparatchiks do PT, mas também personalidades da vida pública, dos meios políticos e empresários, para refletir o seu governo de “coalizão” – e a apresentação das principais linhas de sua política externa, feitas de revalorização dos antigos instrumentos criados por ele mesmo e seus assessores diplomáticos nos anos 2003-2010: Ibas, Unasul, Brics, parceria estratégica com a UE, visitas aos parceiros regionais (o que ainda é uma grande dúvida), iniciativas vinculadas à pobreza mundial, fome, desigualdade, etc.
Pode ser que Celso Amorim prefira atuar a partir do Palácio do Planalto, e deixar a condução da diplomacia a cargo de um diplomata mais jovem seu aliado e amigo, com sua estreita orientação quanto aos principais dossiês das relações regionais, hemisféricas e multilaterais, com atenção especial aos grupos privilegiados. Lula possivelmente enviará mensagens ou emissários, antes mesmo da posse, aos líderes do Ibas, Brics (que se confundem, para todos os efeitos), talvez até aos saudosistas da Unasul, que talvez possa ser reconstruída em novas bases, já sem a preeminência perturbadora do chavismo ativo. Muito provável que Brasília se encha de líderes mundiais para a sua posse, o que será um excelente sinal de recuperação do antigo prestígio do Brasil sob o lulopetismo diplomático. Será a oportunidade para dialogar diretamente com alguns deles, e anunciar imediatamente viagens, visitas, programas, iniciativas e grandes demonstrações de trabalho conjunto e de recuperação de programas que ficaram “enterrados” sob Bolsonaro (como o Fundo Amazônia), o diálogo estratégico com a UE (e até o anúncio de retomada de negociações para colocar em vigor o acordo assinado em junho de 2019). Não se sabe bem o que Lula e Amorim dirão sobre a OCDE, mas o processo deve continuar, ainda que se anuncie uma “nova visão” sobre essa adesão e as condições do ingresso, em vista dos velhos preconceitos petistas.
Ao início, haverá menos pirotecnia ao estilo dos dois primeiros mandatos, tanto porque os cenários internacional e regional são mais complicados, e também porque Lula terá difíceis problemas pela frente a resolver no plano interno, a começar pela “herança maldita” que receberá no lado das contas públicas, com o agravamento do desequilíbrio fiscal e uma inflação ainda ultrapassando, e muito, o teto da meta. O cenário do Parlamento não será fácil de equacionar, assim como a persistência da fome e da miséria entre largos estratos da sociedade exigirão atenção máximo nas primeiras semanas e meses.
Provavelmente se anunciará a retomada do “diálogo” com países africanos e árabes, e uma “reforma” do Mercosul, cujos contornos não parecem muito claros ainda. O lado mais difícil será o encaminhamento a ser dado ao problema da Ucrânia, tendo em vista as tomadas de posição claramente contra a Otan já publicamente feitas por Lula. Não é difícil continuar numa linguagem evasiva a esse respeito, na qual são peritos os diplomatas, assim como sobre as relações com os Estados Unidos, tendo em vista a “censura” pública de Lula a Joe Biden. Quanto à Argentina – qualquer que seja a situação do país, e quem seja o próximo presidente –, a mensagem será de total entendimento para um futuro comum de trabalho conjunto, assim como com os demais vizinhos, especialmente os governos progressistas (Chile, Bolívia, talvez Colômbia).
Não existem grandes negociações em curso – nem na OMC, nem no FMI –, mas o governo Lula manterá suas prioridades no âmbito do Brics, das relações com os países africanos e, cada vez mais, com a China e outros asiáticos. Ele contará com a boa disposição da maior parte dos parceiros tradicionais no exterior, e poderá prometer que vai reverter TODAS as más políticas de Bolsonaro no terreno ambiental, no campo dos direitos humanos, do multilateralismo em geral (com destaque para OMS e OIT) e no sentido de construir uma América do Sul (Latina?) mais forte e mais unida para o relacionamento global. Ou seja, tem tudo para dar certo ao início, à condição que o ambiente internacional não se deteriore um pouco mais, presumivelmente por conta da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, o que obrigará o seu governo a algumas tomadas de posição bastante difíceis, tanto na ONU quanto bilateralmente (com EUA e UE, principalmente).
Quanto ao Itamaraty, não deve passar por qualquer “expurgo”, ou “reconstrução”, o que já estará sendo feito nas últimas semanas de 2022, sob a orientação conciliadora de Celso Amorim e do chanceler designado, uma vez que os principais “barões” da Casa já estão sendo removidos para o exterior. Várias mudanças serão feitas nas chefias das principais embaixadas, o que absolutamente normal na rotina da Casa, sobretudo com mudanças de governos. Alguns “resistentes” ao bolsonarismo se manifestarão, ou serão indicados a postos de chefia na Casa e no exterior, e também se anunciará reforço na dotação orçamentária, assim como se fará, no plano interno, para ciência e tecnologia. Um grande alívio ocorrerá na Casa, enfim livre do horroroso chefe de Estado que emporcalhou o prestígio do Brasil em todos os quadrantes do globo (com exceção dos regimes de direita, que não mais disporão de portas abertas no Brasil, à exceção talvez de Putin, o que resta a ver). Entre outubro e janeiro, o Itamaraty ainda bolsonarista terá de processar dezenas de mensagens de congratulações ao novo presidente: não sabemos se enviará todas ao Palácio do Planalto.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4169: 12 junho 2022, 4 p.
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