Itamaraty, desbolsonarização e criação de um ‘Conselhão’
Assis Moreira
É correspondente do Valor em Genebra desde 2005. Cobriu 20 vezes o Fórum Mundial de Economia, em Davos, e dezenas de conferências ministeriais em vários países.
Valor Econômico, 03.01.23, 18:23
Brasil de volta ao mundo – mas não pode improvisar
Novo chanceler prometeu um ‘enorme trabalho de reconstrução’ da política, desbolsonarização e participação social na política externa.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva volta ao poder num momento internacional significativamente mais grave do que em 2003, quando assumiu pela primeira vez a presidência. Era um momento de relativo otimismo e moderação, fim da guerra do Iraque, hegemonia americana, China crescendo muito, boom de commodities, Brasil crescendo pela primeira vez em mais ou menos em linha com a média mundial, e a América Latina subindo junto.
Hoje é o contrário, com efeitos persistentes da covid-19, acirramento da competição estratégica entre China e EUA, guerra na Europa, ameaça de recessão global, e securitização de todos os temas. Se em 2003 se estava negociando Rodada Doha de liberalização comercial, hoje o foco é em segurança energética, segurança alimentar, guerra e controle de exportação de chips, uso do argumento de segurança nacional para fechar as fronteiras, lógica de blocos em vez de multilateralismo.
Em 2003, o mundo passava por um momento de estabilidade das relações internacionais. Estava tudo mais ou menos funcionando. Agora, há uma tremenda confusão e mais imprevisibilidade. É um cenário tenso, que trouxe a geopolítica para o dia a dia das considerações de cada governo e empresas.
O Brasil é um país com boa complementaridade com a China, mas habita em outra vizinhança. A pressão vai persistir para nações como o Brasil se reposicionem. O que todo mundo tem feito é procurado evitar decisão, para um ou outro lado, americano ou chinês. Existem limites para a ação diplomática do novo governo Lula, mesmo em movimentos pequenos.
Além dessa primeira grande condicionante, que é a situação internacional, tem a situação interna, altamente polarizada, com uma política externa que foi muito contestada muito contestada por causa do isolamento especialmente na área ambiental. Isso vai levar ao que parece ser a mais evidente correção de rumos. O risco, para certos analistas, é de um excesso de correção, fazer tudo o que parceiros exigem e passar de mau aluno para aluno modelo num cenário complicado.
Basta ver que uma legislação da União Europeia para proibir commodities originárias de desmatamento, com alto risco de seletividade que aumentará o custo da produção agrícola. O mesmo ocorrerá na área industrial com a taxa de carbono na fronteira que a UE vai impor sobre siderurgia e outros produtos. Bruxelas usa unilateralmente sua capacidade regulatória como um fator de distorção do comércio. Uma questão é como o novo governo em Brasília vai conciliar os interesses do agronegócio e dos ambientalistas, e responder na prática aos europeus.
O novo governo prioriza também aumentar a integração com a América do Sul e a retomada da cooperação com a África. Mas a capacidade brasileira de fazer coisas concretas é menor, hoje. O Brasil diminuiu de perfil mundial nos quatro anos de Bolsonaro. Agora, o governo Lula tem uma série de aspirações políticas, mas se defronta com restrições do mundo real.
É preciso ver como o Itamaraty se encontra hoje. É uma instituição inchada no topo ao longo dos anos. Aumentou a idade da aposentadoria para 75 anos, colocou mais gente nos seus quadros e a soma das ambições individuais é muito maior do que o Itamaraty. Com isso, surgem brigas entre diferentes gerações de diplomatas, diferentes grupos de diplomatas, entre homens e mulheres diplomatas, e entre identidade de diplomatas (étnica, sexual etc).
Uma frase repetida em Brasília é a de que a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se. Mauro Vieira é considerado como tendo a experiência e sensibilidade para modernizar a instituição nesses tempos conturbados. Mas um artigo de um jovem diplomata em licença remunerada, e atualmente professor da Queen University of London, Felipe Antunes de Oliveira, mostra que a tarefa não será fácil.
Para ele, mesmo se a desastrosa política internacional do governo Bolsonaro está prestes a acabar, o bolsonarismo continua vivo dentro do Itamaraty. ‘Há um bolsonarismo arraigado no Itamaraty. Enquanto não houver uma profunda reforma da política externa brasileira e da instituição responsável por sua implementação, qualquer combinação entre más ideias e péssima implementação continua possível’, escreveu Antunes.
A base material do bolsonarismo latente no Itamaraty, segundo Antunes, se assemelha a uma grande linha de produção com quatro engrenagens articuladas entre si: elitismo sistêmico, formação continuada de baixíssimo nível, infantilização funcional permanente e falta de transparência e previsibilidade nas práticas de promoção e remoção, gerando uma série de incentivos negativos ao longo da carreira de todos os diplomatas – e tudo isso tem efeito sobre políticas públicas.
A possibilidade de Ernesto Araújo ter chegado ao posto de chanceler e durar mais de dois anos, implementando a política externa que implementou, mostra que a sociedade não pode deixar o Itamaraty dirigindo a política externa em piloto automático, diz essencialmente Antunes.
O reconhecimento da política externa como política pública, e inseparável da política interna, deveria levar ao estabelecimento de um mecanismo permanente de diálogo com a sociedade civil. A necessidade de institucionalização da abertura do Itamaraty à sociedade, com as devidas atenções à especificidade da diplomacia, já foi tema de tese no Itamaraty, como o da diplomata Vanessa Dolce de Faria.
A ideia de um grande ‘Conselho’ para debater linhas gerais da política externa, com participação de diferentes setores da sociedade, chegou a ser explorada nas gestões dos ministros Antonio Patriota e Luiz Alberto Figueiredo. Proposta de criação de um Conselho Nacional de Política Externa também foi encaminhada a Mauro Vieira quando chanceler de Dilma Rousseff. Ele tem nova oportunidade de tratar do tema, agora, num novo governo que fala muito de transparência e participação social.
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