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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Constatação simplória 3 - Paulo Roberto de Almeida

Constatação simplória 3

Paulo Roberto de Almeida


O Brasil, a despeito da iniquidade de sua estrutura social, de seu sistema econômico excludente, de suas instituições políticas dominadas por uma casta de arrivistas e aproveitadores, apresenta-se como um tecido elitista aberto aos oportunistas.

As chamadas elites não são formadas apenas por oligarquias emboloradas, aquelas descendentes dos latifundiários escravocratas e altos magistrados do Império, mas soube-se abrir aos novos burgueses da República, aos empresários atilados da era Vargas, aos adesistas das ditaduras militares, aos novos esforçados bandeirantes do agro, aos “reis da soja”, da carne, aos industriais do Estado tecnocrático, aos banqueiros protegidos da concorrência externa, aos provedores das compras governamentais exclusivamente nacionais, aos mandarins da aristocracia do Judiciário e, modernamente, a qualquer “influenciador digital” mequetrefe, a novos  cantores afinados ao gosto popularesco, enfim, a qualquer um que se encaixe nos padrões pouco exigentes de uma “elite” intelectualmente medíocre, mas financeiramente ambiciosa.

Esse é o o Brasil, inovador e conservador ao mesmo tempo, avançado e atrasado, esperançoso e decepcionante.

Como disse Mario de Andrade, em 1924, duzentos anos atrás, “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. Profeta!

Paulo Roberto de Almeida 

SP, 3/01/2025


Constatação simplória 2 - Paulo Roberto de Almeida

Constatação simplória 2

Paulo Roberto de Almeida

Constato, não sem certa tristeza, que não somos o único grande país no qual as elites dirigentes e dominantes se congratulam entre si, falam apenas para si próprias, embevecidas em seu mundo-fantasia, no qual nada deve mudar no futuro previsível.

De certa forma, além do Brasil, a Rússia de Putin e os EUA de Trump, parecem partilhar da mesma tendência à introversão num cenário construído para a autossatisfação.

Sorry pela nota deceptiva.

Paulo Roberto de Almeida 

SP, 3/01/2025


Uma constatação simplória - Paulo Roberto de Almeida

Uma constatação simplória

Paulo Roberto de Almeida

Cada vez que eu vejo nas revistas e jornais, inclusive na TV, um desses magníficos anúncios sobre encontros de luxo, em cidades atraentes da Europa e dos EUA, com a participação de praticamente toda a classe dirigente do Brasil atual, metade do STF, ministros de Estado, a nata do empresariado nacional e economistas famosos, todos devidamente fotografados e reunidos lá fora, para discutir e debater entre si mesmos, apenas em português, regiamente pagos e com uma audiência predominantemente brasileira, que são os pagadores, satisfeitos pelo fato de estar na companhia fugaz daqueles dirigentes do momento, proferindo platitudes sobre os “problemas e desafios” do Brasil atual, cada vez que eu vejo um anúncio desses, ombilicalmente congratulatório, eu me convenço de que o Brasil não tem a menor chance de mudar nos próximos 20 anos, e que continuará a ser o país terrivelmente desigual, iníquo para os pobres, injusto com os desfavorecidos pelo seu sistema social excludente, medianamente medíocre e semi-desenvolvido, como tem sido desde sempre: um país que funciona para suas oligarquias, mas não para os comuns, um país no qual as elites continuarão a falar para si próprias.

Não há a menor chance de que esse cenário deplorável de mandarins do Estado falando para os ricos e endinheirados (muitos com recursos coletivos desviados em seu favor) mude no futuro previsível.

Continuaremos a ser um país feito para poucos, uma formidável aldeia Potenkim.

Paulo Roberto de Almeida 

São Paulo, 3/01/2025


Uma visita em souvenir de onde tudo começou: a Biblioteca Municipal Infantil Anne Frank, Itaim, SP

Uma visita em souvenir de onde tudo começou: a Biblioteca Municipal Infantil Anne Frank, Itaim, SP

O segundo dia do ano de 2025, foi dedicado a uma visita sentimental, parcialmente realizada. Fui ao local no qual minha jornada intelectual começou, antes mesmo de aprender a ler: 

Encontrei-a toda pintada, o que não era o caso quando comecei a frequentá-la, em meados dos anos 1950, primeiro para brinquedos infantis e filmes da época, depois para ler, um a um, todos os seus livros: 

O cartaz do portão principal informa que ele foi estabelecida apenas um ou dois anos depois que foram revelados os diários da jovem judia holandesa assassinada no Holocausto nazista, dois anos antes de meu nascimento: 

Este portão de entrada, onde passei centenas de vezes durante todo o meu período infantil e pré-adolescente: 

Mas, para azer nosso, ela estava fechada pelas festas de final de ano: 

Yasmin ainda atentou entrar, mas sem sucesso: 

Pretendo retornar, assim que possível...

Paulo Roberto de Almeida e Yasmin Palazzo de Almeida Ribeur

São Paulo, 2 de janeiro de 2025

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

O extremo consevadorismo da familia Gandra - Jamil Chade (UOL)

Nomeada por Nunes costurou aliança global de reacionários e extrema direita

Jamil Chade

Colunista do UOL, em Genebra

UOL, 02/01/2025 05h30

Angela Gandra, a nova secretária de Relações Internacionais do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), foi tida dentro do Itamaraty como a responsável por costurar uma aliança inédita do Brasil com os movimentos ultraconservadores do mundo e partidos de extrema direita durante a presidência de Jair Bolsonaro.

Mesmo depois da queda de Ernesto Araújo do comando do Itamaraty, em 2021, a ofensiva do governo Bolsonaro com grupos reacionários pelo mundo continuou e, em grande parte, esse trabalho coube à nova secretária de Nunes.

Gandra ocupava a Secretaria Nacional da Família do ministério comandado por Damares Alves e passou a ter uma ampla agenda de viagens internacionais e palestras para estrangeiros. Entre embaixadores, ela era considerada como o "cérebro" da guinada da "guerra cultural" promovida pela política externa bolsonarista.

Mulheres: aliança global com Hungria, Arábia Saudita e Trump

Ela foi uma das artífices, ao lado do governo de Donald Trump, da criação de uma aliança global para frear qualquer expansão da questão de educação sexual na agenda internacional. O projeto ficou conhecido como Consenso de Genebra.

Além do governo Bolsonaro, o projeto reuniu ainda governos ultraconservadores do Oriente Médio, denunciados por sérias violações contra o direito das mulheres, e a extrema direita mundial.

Com a derrota de Trump, Joe Biden anunciou no primeiro dia de seu mandato que estava retirando os EUA da pauta ultraconservadora. Mas, em emails internos, a administração americana indicava aos demais países que o projeto seria mantido e que a condução seria liderada pelo Brasil.

De acordo com os emails, foi o próprio governo brasileiro que se colocou à disposição para liderar o projeto.

"Estamos firmes no Consenso de Genebra, estamos recebendo mais demandas de países que querem estar conosco", disse Granda, depois da derrota de Trump.

A meta era desmontar e questionar qualquer brecha para que organismos internacionais considerassem o aborto em suas decisões, recomendações ou medidas.

Gandra não se limitou ao trabalho da aliança. Numa viagem em 2021 e enquanto a pasta insistia à reportagem do UOL que ela estava de férias, a secretária participou, em Kiev, da Prayer Breakfast, uma tradição que começou nos EUA em 1935 e que envolve a reunião de políticos e movimentos ultraconservadores cristãos poderosos.

O movimento ganhou notoriedade ainda quando um documentário na Netflix, "The Family", revelou a dimensão do poder de seus membros e como atuam para manobrar o destino de leis e governos. Um de seus lemas é manter "uma diplomacia cristã invisível".

Angela Gandra, em suas redes sociais, indicou que defendeu valores conservadores em suas intervenções e como ouviu "de várias pessoas que encontram inspiração no Brasil".

Na capital ucraniana, o evento foi liderado por pessoas como Pavlo Unguryan que, quando deputado, apresentou vários projetos de lei para "banir a propaganda homossexual". Unguryan atua em parceria com a Aliança Ucrânia pela Família e tem vínculos com a direita religiosa norte-americana, mantendo relações com Mike Pence, vice-presidente dos EUA sob o governo de Donald Trump.

A visita da brasileira à Ucrânia ocorreu no momento em que o país via a criação de uma sessão local do Ordo Iuris, uma organização ultracatólica que está vinculada à rede europeia da TFP. O grupo assinou um acordo com o Vsi razón, um movimento anti-LGBT.

Na Espanha, também em 2021, a secretária participou de um encontro com políticos católicos, além de discussões sobre "Estado de direito". Mas um dos encontros da brasileira foi com o membro do Tribunal Constitucional da Espanha, Andrés Ollero. Antiaborto e apontado por diferentes jornais espanhóis como um representante da Opus Dei, o magistrado votou por recursos para educação segregada.

Há dez anos, quando seu nome foi apresentado para ocupar o cargo, um vasto debate foi iniciado sobre suas declarações sobre temas sensíveis. Num deles, Ollero faz um duro ataque contra mães que abortam.

Ele ainda atacou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. "Falar em matrimônio homossexual não faz sentido algum em termos jurídicos, é algo inconcebível. Está sendo imposta, a partir do poder, uma opção moral e com tal medida somente se aspira que a sociedade deixe de considerar determinadas condutas íntimas —despidas de qualquer relevância jurídica— como imorais", completou.

Elogios em evento de herdeiros de Franco

Num outro evento, ainda no governo Bolsonaro, Angela Gandra afirmou a parceiros internacionais que as autoridades em Brasília estavam comprometidas em expandir a agenda ultraconservadora pelo mundo, levando as pautas antiaborto e de combate ao que chamam de "ideologia de gênero" para novas organizações internacionais. Ela se desculpou depois pelo uso do termo.

A informação foi dada diante de movimentos ligados a grupos religiosos e mesmo partidos xenófobos,disse como o espanhol Vox, herdeiros políticos do franquismo. No encontro, ela foi amplamente elogiada pelos anfitriões.

Ao destacar o compromisso do governo Bolsonaro sobre o tema, a secretária garantiu que as autoridades não se limitariam a implementar as medidas no âmbito doméstico. "Vamos levar para a OEA (Organização dos Estados Americanos) e para a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em seu tempo", disse Angela Gandra.

Ação na Corte Suprema dos EUA contra o aborto

Gandra ainda participou do processo na Corte Suprema dos EUA que determinou um novo rumo para o aborto nos estados americanos.

A representante brasileira fez parte de um "amici curiae", um instrumento para submeter ao tribunal sua opinião em relação ao tema sob debate. A decisão da corte desmontou 50 anos de flexibilidade para o aborto nos EUA foi amplamente comemorada pelo bolsonarismo.

A secretária assinou o documento que defendia a revisão ao lado de 141 acadêmicos —alguns dos quais brasileiros— que submeteram à corte sua opinião.

Para observadores, a decisão da brasileira de participar do grupo demonstrava a aliança que existe entre o movimento ultraconservador brasileiro e o grupo nos EUA que pressionou por uma mudança na lei americana.

No documento, o grupo diz que, se a corte "optar por consultar o direito internacional neste caso, descobrirá que não existe nenhum tratado que reconheça o chamado direito humano ao aborto, nem tal direito foi estabelecido através do direito consuetudinário".

"Pelo contrário, a prática em todas as regiões demonstra uma prerrogativa consistente do Estado para proteger a vida não nascida. Tampouco qualquer tribunal internacional declarou a existência de um direito internacional ao aborto, mesmo em regiões com os regimes de aborto mais permissivos", disse.

A ofensiva da qual Gandra fez parte alega que um grupo tenta "inventar um novo direito ao aborto" e "erram ao interpretar instrumentos internacionais chave, tais como a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, o Estatuto de Roma, e a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento".

A visão de Gandra e os demais juristas se contrapõe ao que a ONU avalia como sendo a base do direito. Para a entidade, a decisão da corte foi "um grande golpe para os direitos humanos das mulheres e para a igualdade de gênero"."O acesso ao aborto seguro, legal e eficaz está firmemente enraizado na lei internacional dos direitos humanos e está no centro da autonomia e capacidade das mulheres e meninas de fazer suas próprias escolhas sobre seus corpos e vidas, livre de discriminação, violência e coerção", afirmou a ONU.

"Esta decisão tira tal autonomia de milhões de mulheres nos EUA, em particular aquelas com baixa renda e as que pertencem a minorias raciais e étnicas, em detrimento de seus direitos fundamentais", alertou Michelle Bachelet, a então alta comissária da ONU para Direitos Humanos. "Mais de 50 países com leis anteriormente restritivas liberalizaram sua legislação sobre aborto nos últimos 25 anos. Com a decisão, os EUA lamentavelmente estão se afastando desta tendência progressiva", completa.

Na ocasião, o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos explicou que Angela é professora universitária. "Durante a sua carreira buscou a participação em pautas de interesse acadêmico. A secretária sempre destacou o seu posicionamento em defesa da vida, sendo um dos motivos para compor a equipe de gestores do atual governo", afirmou.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

A insanidade de Putin ao sacrificar tantas vidas por alguns quilometros de terra ucraniana - CDS

A insanidade de Putin ao sacrificar tantas vidas por alguns quilometros de terra ucraniana - CDS

Copio, do relatório do início do ano de 2025 do Centre for Defense Strategies, uma ONG ucraniana, este trecho sobre o custo, em homens, da conquista de alguns poucos quilometros de território da Ucrânia, no contexto da guerra de agressão deslanchada em fevereiro de 2022 por Putin: 

Over the course of the year, Russian forces captured 4,168 square kilometers, losing an average of 102 servicemen for every square kilometer of Ukrainian territory seized.

Ou seja: para conquistar esses 4.168 kms2, Putin achou que a perda de mais de 425 mil soldados era um resultado aceitável. 

O resto do relatório é uma tristeza: 

·       During the night of January 1, Russia launched an attack on Ukraine with 111 strike UAVs, including Shahed drones and others. Ukrainian air defense destroyed 63 drones, while another 46 failed to reach their targets.

·       On the morning of January 1, debris from an enemy drone fell on a residential building in Kyiv's Pecherskyi district, partially destroying the top two floors and causing a fire. As a result of the Russian attack, two people died, and six were injured. Drone debris also caused a fire on the roof of one of the National Bank of Ukraine buildings. All operational systems and services of the National Bank are functioning fully and without disruption.

·       Two hours before the New Year in 2025, at least two explosions were heard in Zaporizhzhia during an air raid alert. The attack caused a fire in the private sector in the region. Before this, the occupiers attacked the area using guided bombs.

·       On January 1, Russian forces shelled the Dnipro district of Kherson, killing a man and injuring two women. The man was a volunteer who actively contributed to the community's recovery efforts.

·       In Kherson Oblast, Russian shelling on January 1 damaged at least 22 civilian objects. As of 5:30 PM, reports confirm one fatality and six injured civilians.

·       During the New Year's night, Russian forces shelled the center of the town of Semenivka in Chernihiv Oblast with artillery, damaging stores and an infrastructure facility.

·       Between September and November 2024, 574 civilians were killed, and 3,082 were injured as a result of Russian attacks in Ukraine, according to a report from the UN Human Rights Monitoring Mission in Ukraine.

·       On January 1, 2025, Ukraine officially became a full member of the Rome Statute of the International Criminal Court (ICC).

          According to the Center for National Resistance, in the occupied territories, Russian authorities banned the mention of Saint Nicholas, caroling, and traditional Ukrainian Christmas and New Year plays (vertep) in educational institutions. Only the characters of Ded Moroz (Father Frost) and Snegurochka (Snow Maiden) are allowed to appear at events.

Relatório das perdas russas nesse primeiro dia do ano: 

Russian operational losses from 24.02.22 to 01.01.25

Personnel - almost 790,800 (+1,250);

Tanks 9,672 (+4);

Armored combat vehicles – 20,043 (+13);

Artillery systems – 21,532 (+4);

Vehicles and fuel tanks – 32,675 (+49);

Helicopters – 330 (+1);

UAV operational and tactical level – 21,131 (+50);

Source: Centre for Defence Strategies (CDS) is a Ukrainian security think tank. We operate since 2020. 

Alocução de um contrarianista a jovens internacionalistas - Paulo Roberto de Almeida

 Alocução de um contrarianista a jovens internacionalistas

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Revisão de alocução a formandos de RI, em 2005.

 

        O texto abaixo, revisto e abreviado, foi retirado de uma alocução feita na cerimônia de formatura de relações internacionais, numa faculdade de Brasília. Não se tratava, propriamente, de conselhos de um contrarianista, mas de simples recomendações pessoais para o itinerário futuro, na vida acadêmica ou em outras lides profissionais dos jovens que me tinham convidado. Quando a fiz, já tinha acumulado mais de um quarto de século nas lides da diplomacia profissional, com uma dedicação paralela às “coisas internacionais”. Por “coisas”, são compreendidas a pesquisa, geralmente solitária, o ensino, sempre voluntário e irregular, ao sabor de uma vida nômade a serviço do Brasil, e a redação e publicação de textos de caráter didático em torno das questões das relações internacionais, da história diplomática e, sobretudo, da inserção internacional do Brasil. 

        Minhas primeiras palavras foram de agradecimento pela lembrança e pelo gesto simpático, que representava um estímulo a continuar retribuindo, nos anos à frente de exercício profissional ou de dedicação acadêmica, à sociedade brasileira, produzindo de forma ainda mais intensa no campo das relações internacionais, sempre com sentido didático. 

        Os alunos começaram por me prestar homenagem, ao transcrever no convite, ainda que de forma abreviada, as dez novas regras de diplomacia que eu havia elaborado, em agosto de 2001, a partir da leitura de um velho livro do século XIX sobre quatro regras de diplomacia, para justamente ilustrar as reflexões contemporâneas de meus jovens colegas diplomatas e outros tantos candidatos à carreira [texto do trabalho “Dez Regras Modernas de Diplomacia” disponível neste link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/08/regras-modernas-e-sensatas-de.html]. Esse gesto me incitou a retomar algumas delas e a elaborar alguns poucos conselhos que um contrarianista do século XX poderia dar a jovens internacionalistas do século XXI.

        Digo “contrarianista” sem qualquer espírito opositor ou anarquista, ainda que estes sentimentos sejam igualmente legítimos em sociedades plenamente democráticas, como pretende ser a nossa. Meu espírito contrarianista deriva do fato de que eu nunca quis ou pretendi me submeter ao argumento da autoridade, mas sim aceito, com prazer e voluntariamente, a autoridade do argumento. Num cenário de diálogo socrático e de dedicação honesta à busca da verdade, como deve ser o ambiente acadêmico, desejo reformular algumas dessas regras, para melhor iluminar o que me parecem ser qualidades essenciais ao jovem internacionalista de nossos tempos. 

 

        Inicialmente, eu destacaria a última regra e, agora, a colocaria em primeiro lugar. Não se deve fazer da carreira profissional, seja no campo da diplomacia ou em outras atividades ligadas de perto ou de longe com as questões internacionais, o foco exclusivo de sua vida e, sobretudo, não se deve passar a carreira à frente da família, dos amigos e das pessoas com quem convivemos no ambiente familiar ou de trabalho.

A carreira profissional, qualquer que seja ela, é importante, mas as pessoas, sobretudo os indivíduos que nos são caros, são ainda mais importantes do que ela. Podemos, por certo, mudar de carreira, uma ou várias vezes na vida, podemos até mudar nossos relacionamentos individuais, mas os familiares e nossos amigos mais chegados estarão sempre lá para nos ajudar nas horas difíceis, para nos confortar em determinados momentos, para nos trazer alegrias em várias ocasiões.

Por isso, meus caros formandos, contrariem o carreirismo e sejam, antes de tudo, profissionais que miram nas pessoas, de fato, o centro da vida.

 

        Eu diria, em segundo lugar, que algo se ganha ao contrariar o próprio princípio da autoridade, desde que, é claro, vocês tenham absoluta certeza sobre a fundamentação da posição de vocês sobre um assunto qualquer. Regras hierárquicas e disciplina são boas de serem cumpridas na execução de tarefas que exigem uma linha de comando definida, inquestionável, em função da implementação de uma decisão maduramente refletida e alcançada graças a um processo decisório bem estruturado e solidamente bem estabelecido.

        Mas, a hierarquia e a disciplina não podem entravar a liberdade de pensamento, em especial a defesa de posições de maior valor agregado, que conseguem realizar uma otimização “paretiana” dos recursos e meios disponíveis para a tomada de ação. A contestação, pelo simples prazer de contrariar, não me parece levar a resultados ótimos, mas sim pode-se e deve-se praticar o questionamento honesto, o ceticismo sadio, a desconfiança metodológica em relação às verdades reveladas, por mais que elas tenham sido formuladas por alguma autoridade imbuída do seu poder autocrático. 

        Por isso, não tenham medo de expor e de defender com firmeza suas opiniões, se elas refletem, efetivamente, um conhecimento fundamentado do problema em pauta, e isso mesmo que uma “autoridade superior” ostente uma opinião diversa da de vocês.

 

Por esse motivo, e aqui vai minha terceira regra, contrariem o desejo, ainda que compreensível, de aposentar os livros e deixar os estudos de lado, agora que vocês têm um canudo na mão e algumas ideias na cabeça. Ao contrário, sejam opositores sistemáticos da aposentadoria precoce nos estudos, e voltem imediatamente às leituras, às bibliotecas, às livrarias, às pesquisas de internet. 

        Não parem de estudar, em nenhum momento da vida. Aliás, comecem a fazê-lo imediatamente, assim que saírem daqui. Afinal de contas, até agora, vocês fizeram, em grande medida, aquilo que os professores determinaram que vocês fizessem, com uma série de leituras chatas e outras tantas obrigações impostas. 

        Neste momento, cabe a vocês mesmos imporem a si mesmos um programa sistemático de estudos e de leituras que melhor se conformar às habilidades, gostos e orientações particulares de cada um. Sejam, portanto, contrários ao estudo dirigido e estabeleçam, vocês mesmos, um plano regular de dedicação à formação metódica da especialidade que vocês pretendem ter na vida. 

        A universidade é uma grande fonte de generalidades e mesmo de algumas banalidades repassadas ao longo dos anos, numa repetição por vezes aborrecida do saber acumulado. O que vocês devem fazer agora é construir o seu próprio saber e para isso vão precisar continuar estudando. Apenas com base num saber específico, que dê a cada um de vocês o melhor desempenho possível numa determinada vertente profissional, vocês terão sucesso na vida e no trabalho. Por isso, mãos à obra: coloquem o canudo de lado e comecem a estudar de novo. 

 

        Dessa característica de estudo constante, e totalmente dedicado à expansão contínua do saber em todos os ramos do conhecimento humano, derivam duas outras regras que eu havia inscrito em meu decálogo de quatro anos atrás: possuir o domínio total de cada assunto do qual nos vamos ocupar profissionalmente, o que significa aprofundar o conhecimento daquele tema em pesquisas paralelas e correlatas, adotando, ao mesmo tempo ou paralelamente, uma perspectiva histórica e estrutural de cada tema, situando-o no seu contexto próprio.

        Apenas com base nesse conhecimento suplementar, vocês saberão se opor, se for o caso, ao princípio primário da autoridade e ter condições de manter independência de julgamento em relação às ideias recebidas e às “verdades reveladas”. A autoridade do argumento só se sustenta com um saber superior, solidamente embasado nos dados da realidade e apoiado em pesquisas comparativas ou no conhecimento de outras experiências que podem ser relevantes para um caso porventura similar. 

        O “ser contrário” significa, em princípio, possuir um argumento dotado de autoridade superior, embasado em dados mais amplos e um domínio mais seguro da realidade. Claro, podemos ser vencidos pela força bruta, pela imposição da hierarquia ou do poder simplesmente incontestável e incontrastável. Mas aí não estamos falando de métodos socráticos de busca da verdade ou de formação de um consenso no processo decisório, e sim da vontade unilateral, o que não deveria valer no ambiente sadio da pesquisa acadêmica ou mesmo da organização burocrática racionalmente estruturada.

        A regra é esta: para vocês serem contrários ao lugar comum, ao déjà vu, ao habitual costumeiro, vocês precisarão construir um saber superior e expô-lo com clareza. E isso nos faz voltar à necessidade já referida do estudo constante, do esforço feito sob a forma da pesquisa individual e de leituras contínuas. A geração de vocês leva uma enorme vantagem em relação àquelas que a precederam: hoje em dia, com os recursos existentes on-line, praticamente 90% do estoque acumulado de conhecimento produzido pela humanidade, até aqui, está livremente disponível na internet, bastando um pouco de destreza linguística para desfrutar desse imenso saber.

 

        Vocês também podem ser contrários aos interesses político-partidários, às ideologias do momento e às conjunturas políticas de uma dada maioria governamental, mas isto não é uma regra absoluta. Digo isto porque várias carreiras, sobretudo aquelas fortemente dependentes de uma determinada estruturação hierárquica que tem no seu pináculo uma autoridade política qualquer, podem ser levadas ao fenômeno bem conhecido do “adesismo”, ou seja, aquela aderência momentânea aos senhores da hora, às ideias temporariamente dominantes, às situações de adequação oportunista às novas condições do exercício do poder, que sempre vem associado às benesses e favores distribuídos em direção daqueles que partilham, ou fingem fazê-lo, as mesmas opiniões daqueles que justamente ocupam o poder naquele dado momento. 

        Não estou excluindo, por certo, que algum partido ou agrupamento político consiga encarnar, num determinado momento da vida da Nação, os anseios ou as aspirações da maioria, conseguindo traduzir de modo prático aquilo que normalmente se chama de “vontade nacional”. Este é um fato, aliás corriqueiro nas democracias. O que estou dizendo é que vocês precisam ter absolutamente claros, para vocês e no exercício de alguma atividade profissional, quais são os grandes princípios de atuação do país a serviço do qual se colocam, isto é, quais são, se é que possível saber de verdade, os chamados “interesses nacionais permanentes”. 

 

        É com base numa compreensão desse tipo que eu formulei minha primeira regra e uma outra que dela também deriva: servir a pátria, mais do que aos governos, e afastar ideologias ou interesses político-partidários das considerações relativas à política externa do país, que precisa assumir um caráter nacional abrangente, e não meramente setorial ou corporativo.

        Para que isso se faça, é preciso, repito ainda uma vez, conhecer profundamente os interesses permanentes da nação e do povo aos quais se serve, e por isso volto ao tema do estudo contínuo.

        É preciso, da mesma forma, não aderir a modismos em matéria de “explicações definitivas” das causas das nossas mazelas e iniquidades: elas são certamente muitas e provavelmente têm causas mais complexas do que certas “racionalizações inovadoras” que pretendem deter a chave milagrosa para a solução de todos os problemas brasileiros. O ser contrário à subserviência ao poder político do momento é também uma atitude de coragem moral e de honestidade intelectual, já que a razão do poder nem sempre se coaduna com o poder da razão, mas esta é, como disse, uma regra não absoluta. 

 

        Em resumo ‑ e terminando por aqui este meu exercício de contrarianismo bem-intencionado ‑, não pretendo que minhas regras subjetivas, certamente derivadas de um espírito inquieto e ainda rebelde, mas sempre aberto à causa do conhecimento, sirvam de guia absoluto na determinação do itinerário profissional que vocês empreenderão a partir daqui. Cada um definirá com base em sua própria experiência de vida, com o apoio e os conselhos dos familiares, dos professores e dos amigos, qual o melhor curso a seguir no plano profissional ou ainda da continuação dos estudos, agora em nível de pós-graduação, o que recomendo vivamente.

        O que eu pretendi inculcar em vocês é a ideia da mente aberta, dotada de ceticismo sadio, contestadora das verdades reveladas e orientada para a busca honesta do saber e da maior eficiência possível no desempenho das atividades profissionais ou dos estudos futuros no terreno da especialização. Vocês agora vão deixar de lado uma etapa da vida e começar outra, mas devem sempre encarar os próximos desafios com toda a modéstia que requer o enfrentamento de cada nova situação de vida: deixar a suficiência de lado e buscar a excelência, em tudo e de todas as maneiras, sabendo que só a dedicação plena ao estudo continuado lhes poderá abrir o caminho para algumas rotas de sucesso profissional e pessoal.

        Eu aprendi dessa maneira: vindo de uma família modesta, como é a maioria daquelas dos que aqui se formam hoje, consegui, à custa de muito estudo e dedicação pessoal, distinguir-me na carreira profissional e nas atividades acadêmicas, a ponto de me fazer merecedor da homenagem que vocês tão gentilmente quiseram me prestar nesta data, ao me fazer patrono desta turma de relações internacionais.

        Vocês podem, em primeiro lugar, agradecer e retribuir à família e a todos aqueles que os ajudaram a conseguir o diploma que a partir de hoje passam a ostentar. Vocês devem ter, em segundo lugar, consciência de que o maior motivo de orgulho, não é necessariamente o canudo certificador do mérito alcançado, mas mais precisamente o fato de que vocês adquiram nesta escola algumas técnicas de aprendizado que devem ser internalizadas e aproveitadas em todo e qualquer momento da vida futura. Vocês aqui aprenderam tão simplesmente a aprender: comecem agora a estudar de verdade, e tenham sucesso na vida profissional e pessoal. Mãos à obra, de volta aos livros, e sejam felizes na vida.

        Meus sinceros parabéns e, por esta oportunidade que me foi dada de me dirigir a alguns dos meus, até aqui, desconhecidos leitores, meu muito obrigado a todos vocês. 

 

Paulo Roberto de Almeida

6-8 de março de 2005; revisão, 1/01/2025

Original de 2005 postado neste link: https://www.academia.edu/5882607/1403_Conselhos_de_um_contrarianista_a_jovens_internacionalistas_2005_ 


China e Índia: Emergência e Impacto Cultural - Paulo Pinto (Linkedin)

China e Índia – Emergência e Impacto Cultural


Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.

Análises sobre a emergência atual da China e Índia costumam esgotar-se apenas na perspectiva da crescente inserção internacional de suas economias, bem como a partir da cobiça quanto ao acesso de bilhões de seus potenciais consumidores à oferta de produtos e serviços estrangeiros.

Prevalece, também, a dimensão de segurança, com foco em rivalidade entre a RPC e os EUA, no contexto de uma nova “Guerra Fria”. Haveria, ademais, ênfase excessiva na crença de que a ascensão chinesa se daria nos moldes do ocorrido com “potências ocidentais”. Isto é tratar-se-ia da criação de um “novo Império” ou “potência hegemônica” (refiro-me a texto meu anterior publicado neste espaço).

Esquecido fica, portanto, que valores daquelas civilizações asiáticas poderão influenciar o ordenamento internacional vigente. Isto poderia ocorrer, tanto no relacionamento sino indiano, quanto com impactos em outras partes do mundo.

Proponho, a seguir, exercício de reflexão – reconhecidamente simplificado – sobre a evolução de valores culturais indianos e chineses que diferenciam aqueles dois países.

Nessa perspectiva, verifica-se que a mente ocidental judaico-cristã desenvolveu e favoreceu uma visão otimista da evolução da humanidade e, nesse processo, consolidou-se uma fé na capacidade do homem aperfeiçoar-se, através de um melhor planejamento, da tecnologia, da ampliação da educação e da abertura de oportunidades para todos.

Enquanto isso, o pensamento asiático hindu budista se sente à mercê de forças destrutivas: da natureza, como doenças; dos homens, como a guerra; e do passar do tempo, que, ao decorrer da longa história das nações daquela parte do mundo, tem engolido indivíduos, reinos e cidades.

No Ocidente, valorizou-se a genialidade humana para inventar, organizar e disciplinar o espaço geográfico, com o intuito de controlar as forças móveis da natureza. Assim, os indivíduos são os agentes que provocam mudanças – a natureza permanece a mesma. Esta pode ser conquistada pela análise científica e pode ser subjugada pelos avanços da humanidade.

Os pensadores europeus do Século XVIII acreditavam no “iluminismo coletivo”, isto é, na sabedoria, como um combate à escuridão do desconhecimento, tornando a sociedade perfeita, nobre e pura. Os do Século XIX valorizaram o progresso material e coletivo, a conquista das forças da natureza, a abolição da violência, da escravidão, da injustiça e a vitória sobre o sofrimento e morte prematura. O Ocidente chegou, ao Século XX, ciente de que apenas com intenso a extenso planejamento e organização pode a civilização humana ser salva[1].

No mundo ocidental, hoje, a fragilidade da vida humana não causa mais obsessão, na forma sofrida pelos antepassados, dos Séculos XV e XVI. Ao invés de atitude de aceitação, resignação e contemplação, cultiva-se uma vida de movimento constante, provocando mudanças a cada volta, melhorando e planejando as coisas, submetendo o crescimento do mundo a alterações previsíveis.

Em suma, ao invés de procurar entender a vida e o cosmo como um todo, busca-se o controle sobre detalhes concretos.

Segundo estudiosos do assunto, a essência de qualquer sistema filosófico pode ser melhor entendida na forma condensada de seus termos principais. Uma exposição elementar, portanto, deve preocupar-se com a apresentação e interpretação das palavras através das quais as principais ideias devem ser formuladas.

O pensamento indiano é muito bem adaptado a tal abordagem, pois todos os seus termos pertencem ao Sânscrito e servem há longo tempo à língua diária da poesia e romance, bem como à literatura e à medicina. Não são, portanto, termos confinados à atmosfera estranha e pouco familiar das escolas de pensamento ou doutrinas especializadas[2].

Os substantivos, que constituiriam a maior parte da terminologia filosófica, são apresentados ao lado de verbos que derivam da mesma raiz e denotam atividades ou processos que expressam o mesmo contexto. Pode-se chegar ao significado básico das palavras através do estudo de seu uso habitual na vida diária, assim entendendo tanto seus valores e variações, quanto metáforas e conotações.

Tudo isso contrasta com a situação no Ocidente contemporâneo, onde a maior parte dos termos filosóficos foram emprestados do Grego ou Latim, situando-se, assim, destacados da vida real e, portanto, sofrendo de inevitável falta de vivacidade e claridade[3].

A palavra “ideia”, por exemplo, tem significado diferente para o momento histórico vivido por Platão ou John Locke, e ainda distinto para a história moderna das “ideias” ou Psicologia. Em cada caso, um autor ou escola de pensamento, esta palavra terá seu próprio significado.

No vocabulário indiano, contudo, as palavras terão sempre a mesma interpretação e serão entendidas de forma igual, seja qual for o momento histórico. Por exemplo, a ênfase colocada no ideal supremo e final de “moksa”, só pode ser entendida, no mundo ocidental, no contexto tradicional indiano e, não, no mundo moderno industrializado.  “Moksa” é uma força inerente em cada traço, em cada aspecto e em cada disciplina da vida indiana e que molda toda a escala de valores daquela sociedade[4].

A espiritualidade asiática foi sempre intensa, a ponto de permear a arte, tornando-a, com frequência, expressão tipicamente religiosa.

Na China, durante períodos como o da Dinastia Tang (entre 618 e 907 DC) houve a construção de estátuas imensas e pagodes. Mas os chineses vivenciaram momentos em que floresceu uma arte desengajada de qualquer preocupação divina.

A Índia, de sua parte, sempre esteve inteiramente voltada para a especulação religiosa. As primeiras grandes construções indianas datam do II milênio antes de Cristo e são santuários. Em seguida, vieram as “estupas”, que são imensas construções “hemisféricas” ou cônicas, ao mesmo tempo, símbolos místicos e monumentos comemorativos.

Entre os séculos IX e XVIII D.C. a Índia se cobre de templos, enquanto a influência espiritual indiana se estende pelo Sudeste Asiático. Os imensos conjuntos de Angkor Vat, no Camboja, e os templos de Bangkok são alguns exemplos do papel espiritual desempenhado pela Índia.

A Ásia das monções, contudo, não foi berço de religião alguma – no sentido de ter fornecido um conjunto de regras, dogmas, revelações religiosas precisas, acompanhadas de imperativos. A espiritualidade asiática, portanto, não segue ordenamento prático, nos moldes aos quais estamos acostumados no Ocidente. Trata-se, portanto, antes de tudo, de um exercício de meditação, um voltar-se para o seu próprio interior, um esforço de concentração.

Uma análise superficial da espiritualidade indiana parece indicar que esta se aproximaria de formas religiosas do Ocidente. À época das invasões indo-europeias, a Índia assiste à implantação em seu território de uma tradição religiosa à qual é dado o nome de “Veda” (O Saber).

O Veda é uma revelação “vinda do alto”, mas não pode ser comparada às revelações na forma concebida pelas “religiões mediterrâneas”[5] . O “Saber” seria proveniente do “Bhrama” que é, em grande medida, a “palavra”, o “Espírito Absoluto”. O Bhrama é a “unidade”, cada alma é uma parte destacada desta unidade, que só se reencontra quando volta a se fundir no “todo”.

Essa crença foi denominada Bramanismo ou Hinduísmo, com seus “deuses” maiores ou menores, seus templos e cerimoniais. Desenvolveu-se, assim, um ritual do Bramanismo, paralelamente a um aspecto puramente espiritual, que é a espera ao retorno ao “Universal”.

No século VI antes de Cristo, uma nova concepção espiritual, o Budismo, se expandiu a partir dos Himalaia. Verifica-se, a propósito, que o Budismo não pretende, nem inovar, nem complementar, nem combater, nem substituir o Bramanismo. Desenvolve-se ao lado do Bramanismo, sem confirmá-lo ou contradizê-lo.

O Budismo foi apresentado à Índia em momento de grandes convulsões sociais, provocadas por guerras internas e invasões externas. Seria, em grande medida, uma forma de consolo a povoações rurais que não dispunham de grandes expectativas quanto a sua própria existência.

As relações estreitas entre a natureza, a vinculação profunda num mundo camponês, limitado por laços familiares, são ainda mais sensíveis no universo chinês do que no espaço indiano.

O Budismo exerceu influência sensível na China. Durante a Dinastia Tang (618 a 907), manifestou-se através da influência no desenvolvimento de esculturas. Os chineses guardaram do Budismo, acima de tudo, o desprendimento das coisas deste mundo. Mas, com frequência, seguiram sua própria via.

No VI século AC, Confúcio veio propor-lhes soluções bem distintas do Budismo. Tendo como ponto de partida, também, sua sociedade contemporânea, Confúcio chegou a solução bastante distinta daquela do Budismo. Isto porque o “momento presente” também não lhe parecia perfeito – longe disso – mas ele identificava possibilidades de transformações. Estas aconteceriam através do controle dos impulsos pessoais. Não seria necessário, como acreditam os budistas, “escapar de tudo”. Pelo contrário, caberia adaptar-se.

Confúcio, assim, apresenta uma filosofia que considera o homem dentro da natureza, que se expressa pelo culto do passado, considerado como uma Era melhor, e pela comunhão com o mundo material. Daí resulta, para seus seguidores, a busca permanente da harmonia que se manifesta através do gosto por uma escrita extraordinária. A caligrafia é bela em seus menores detalhes. A pintura de paisagens, como se refletissem o estado da alma, é também levada a extremos do bom gosto.

A pintura, ademais, é influenciada por outro aspecto do pensamento chinês: o Taoismo, que é uma doutrina mais recente do que o Confucionismo. O Taoismo é uma forma de meditação sobre a ordem da natureza, muito mais mística do que o Confucionismo, na medida em que se submete à essência do mundo para poder penetrá-lo.

Alguns pensadores concluem que a espiritualidade oriental apresenta grandezas e fraquezas, na medida em que, por um lado, é superior ao pensamento ocidental, que jamais soube dedicar a mesma humildade e busca de compreensão – a exemplo da espiritualidade oriental – às leis do mundo, aceitá-las e ir além delas (“les dépasser”)[6]. A “simpatia universal” que, no entanto, submete o pensamento asiático à passividade, dificulta a luta das pessoas daquela parte do mundo, contra as forças da natureza, as destruições provocadas por sucessivas guerras e o condicionamento de hábitos consagrados por heranças milenares.

A sociedade indiana, por exemplo, é o resultado da assimilação de centenas de influências culturais, originárias da Europa e Ásia, trazidas dos continentes europeu e asiático. A Índia incorporou, portanto, costumes e crenças das diferentes civilizações que a invadiram ou lá se estabeleceram. Como resultados hoje existem no país 17 línguas oficiais e algumas centenas de dialetos.

Mas a Índia não foi apenas “importadora” de cultura. Foi também “exportadora”. O Sânscrito, como se sabe, é uma língua originária na Índia e raiz de línguas indo-europeias, como o grego e o latim.

O Budismo nasceu na Índia, derivado do Hinduísmo, mas praticamente desapareceu de seu país de origem, espalhando-se pela Ásia e outras regiões. O Hinduísmo, no entanto, foi difundido pelo Sudeste Asiático, mas continuou a florescer, principalmente no território indiano.

Verifica-se, a propósito, que o Hinduísmo parece adaptar-se perfeitamente à sociedade indiana – há quem diga que, nesse caso, a religião influencia a sociedade e vice-versa. Isto é, a profusão de “deuses” oferece ampla escolha de devoção aos fiéis e teria ajudado no estabelecimento de sistema de castas, que sobrevive há 3.000 anos.

É possível concluir que, na medida em que os seres humanos se apropriam de maior riqueza e educação, suas diferenças culturais se tornam mais pronunciadas – não menos. Nesse processo, diferentes grupos perseguem visões distintas de bem-estar, bem como reagem de formas agressivas a ameaças perceptíveis a sua dignidade cultural.

As pessoas, agora, aparecem menos como indivíduos egoístas, voltados para a satisfação material, e mais como seres inseridos em suas respectivas sociedades.

Melhor direcionamento de foco, no que diz respeito à atual emergência da China e da Índia, deveria levar em conta, portanto, que um dos grandes desafios do século atual seria o entendimento de como as culturas evoluem, adaptam-se ou permanecem estáveis. Que tipos de influência estas alterações exercem no cenário internacional?

China e Índia – A Disputa por “Soft Power”

Reitera-se que pouca atenção tem despertado a capacidade de Índia e China no sentido de atrair e influenciar outras regiões do planeta. Isto ocorreria como resultado da divulgação de práticas, hábitos, criações e formas de raciocínio herdado ou marcado pela longa história indiana e chinesa.

Em outras palavras, há pouca reflexão sobre a “soft power” - para utilizar o termo popularizado por Joseph Nye[7] - na competição entre as duas potências emergentes na Ásia.

Esta disputa ocorre em setores como: a reivindicação de ser sede do Budismo e, portanto, o espaço cultural de definição do “perfil espiritual” da Ásia; em Medicina e cinema, indianos e chineses aparecem, também, engajados em atrair e influenciar novos e velhos amigos.

O Budismo como “Soft Power”

Na medida em que a economia se abriu para o exterior e tem crescido a taxas surpreendentes, a RPC se torna mais disposta a aceitar e utilizar como “soft power” sua antiga civilização. Da mesma forma, ocorre com a Índia.

A China, portanto, tem demonstrado empenho em resgatar sua associação histórica com o Confucionismo. Assim, em novembro de 2004, Pequim determinou a abertura de seu primeiro “Confucius Institute”, em Seul. A partir de então, Institutos semelhantes foram instalados em diferentes países, inclusive em Nova Delhi, na Universidade Jawaharlal Nehru.

Evidentemente, tais representações visam a, além de divulgar o pensamento do antigo sábio chinês, promover a língua e cultura chinesas.

Tal esforço se enquadra no discurso atual do presidente da RPC, Xi Jinping, quanto ao encorajamento a uma “nova e gloriosa civilização” chinesa, com ênfase em projeto que valorize a antiga filosofia do país e, não, em valores ocidentais. O ressurgimento de Confúcio, assim, é particularmente notável, porque adota o mais conhecido princípio daquele antigo mestre, que diz respeito a uma “sociedade harmoniosa”, como meta de governo.

Na prática, o retorno do Confucionismo coincide com a renovação do Budismo, na China.

Enquanto isso, a Índia volta a abraçar, também, esta antiga religião, reivindicando sua condição de origem do Budismo. Em jogo, entre Pequim e Nova Delhi está a disputa pelo título de ser o espaço civilizacional que, com base neste aspecto de “soft power”, definirá a “feição espiritual” da Ásia.

Nessa perspectiva, a Índia construiu, em 2006, na cidade de Luoyang, na China, um templo budista, com características indianas. A mensagem pareceu clara. Há dois mil anos, o Budismo emigrou do país de origem para o território chinês, instalando-se, inicialmente, naquela cidade.

De igual importância foi o fato de que, em 2007, Nova Delhi estabeleceu, na Universidade de Nalanda, em Cingapura, um centro de estudo do Budismo. Isto porque, enquanto a China não tem tido problemas para participar de diálogo institucional com, por exemplo, a Associação das Nações do Sudeste Asiático ou a Comunidade Asiática das Nações, a Índia tem ficado fora de tais reuniões.

O passado colonial e a condição que lhe foi imposta de exportadora de mão de obra barata para plantações no Sudeste Asiático, distanciou a Índia dos demais ex-integrantes do antigo “British Empire”, na Ásia.

Agora, os indianos buscam resgatar a herança de exportadores de cultura hindu-budista para Indonésia, Malásia, Indochina, Tailândia e Mianmar.

Cabe lembrar, ainda, que a disputa territorial, entre a China e a Índia, pelo estado indiano de Arunachal Pradesh, fica incluída na agenda da competição sino indiana pela “soft power” no continente asiático.

Isto porque, segundo consta, o sexto Dalai Lama nasceu em Tawang (atual estado indiano de Arunachal Pradesh), em 1638. Isto levaria Pequim a considerar que aquele território faria parte do “Grande Tibete” e, portanto, integraria a RPC.

Curiosamente, os nacionais indianos da região em disputa têm fisionomia e características étnicas chinesas. Por ocasião de visitas a Goa, conheci funcionários indianos de hotéis e restaurantes, naturais de Arunachal Pradesh, com aparência chinesa.

A Concorrência no Oferecimento de “Wellness”

Existe crescente interesse, no mundo inteiro, na “arte de viver bem” - “wellness”. Tal benefício, parece haver consenso, poderia ser, hoje, proporcionado seja pela Medicina Tradicional Chinesa, seja pelos tratamentos oferecidos pela prática indiana da “Ayurveda”.

Enquanto a Ayurveda indiana cresce em popularidade, no Ocidente, a Medicina Tradicional Chinesa parece consolidar-se na Ásia Oriental. Ambas as práticas refletem um tipo de “soft power” que Índia e China pretendem exportar para o resto do mundo.

A Ayurveda é um sistema de tratamento tradicional indiano, praticado há mais de 5.000 anos. Hoje é reconhecida, fora da Índia, como “medicina alternativa”, dedicada ao prolongamento da vida humana. Busca o equilíbrio entre o corpo e o meio ambiente, criando a harmonia entre a pessoa e as condições que a rodeiam.

Baseia-se na teoria de “Cinco Grandes Elementos”: a terra, a água, o fogo, o ar e o espaço. Estes influenciariam diferentes funções do corpo humano e do meio ambiente em que se vive. Assim, por exemplo, o fogo regularia a digestão e assimilação de alimentos e ideias; o espaço influenciaria a “mobilidade mental”; e a água manteria o equilíbrio do peso, coesão e estabilidade. Diferentes combinações destes elementos levariam o indivíduo a “viver melhor”, desintoxicando, fortalecendo os tecidos e os sistemas imunológicos.

A Medicina Tradicional Chinesa explica que a energia (Qi) flui através de “meridianos” no corpo humano e sobre sua superfície. Estes canais são “rios de energia” que precisam ser balanceados. Tal processo pode ser realizado com a aplicação da acupuntura, que utiliza agulhas que estimulam a tal energia, em determinado local do corpo, fortalecendo-o e proporcionando a cura natural de doenças, sem a necessidade de cirurgia.

Os seguidores desta técnica acreditam que a saúde depende do equilíbrio do corpo, entre seus próprios órgãos e funções e entre o indivíduo e seu meio ambiente. Quando o corpo estiver balanceado e em harmonia com o exterior, a energia flui naturalmente através dos “meridianos” de forma que todas as suas partes são irrigadas adequadamente.

China e Índia, oferecem, assim, propostas originais da “arte de viver bem”, aos habitantes ricos de outros países. O grande desafio que se coloca a ambos, no entanto, é o de resolver seus respectivos problemas de fome e miséria.

Bollywood versus Filmes Chineses

A China tem obtido maior sucesso na obtenção de Oscars do que a Índia. Mas, pelo menos na Ásia, é possível notar que Bollywood[8] tem muito mais fãs do que o cinema chinês.

Com sua perene simplicidade temática, ensaios musicais e danças, as películas indianas ainda não frequentam grandes audiências cinematográficas europeias ou norte-americanas. Em países do Subcontinente Indiano, Sudeste Asiático, Oriente Médio e mesmo África, o interesse por estes filmes, no entanto, é enorme.

É necessário, contudo, definir a Índia que é apresentada nos filmes produzidos em Bollywood, que não podem ser considerados como representativos do país. São um espetáculo. A riqueza dos casamentos exibidos nas películas e a alegria de suas danças não refletem a realidade da população. O que está sendo projetado no exterior é uma caricatura.

Em sua dimensão econômica, fora das telas, a Índia real conta, ainda, com centenas de milhões de pobres. A infraestrutura lamentável e o ensino deficiente, mesmo considerando os centros de excelência existentes, não facilitam a inclusão da população rural no processo de crescimento tão alardeado nas áreas urbanas.

Os trunfos principais a serem projetados, como “soft power” da Índia são o fato de estar bem equipada, com instituições democráticas, e sua capacidade de promover a convivência entre suas distintas culturas, raças, religiões, castas e línguas.

A Influência em Outras Regiões

China e Índia buscam atrair e influenciar regiões do planeta, através da divulgação de práticas, hábitos, criações e formas de raciocínio herdadas ou marcadas por suas respectivas longas histórias

Cabe lembrar, a propósito, que os registros iniciais da China com a África nos levam ao século XV, quando o legendário navegador Zheng He trouxe do Quênia uma girafa.

Por coincidência, também foi do Quênia, a partir da cidade marítima de Mombasa, que um navegador muçulmano conduziu Vasco da Gama a Calicute, em 1498, levando os portugueses a “descobrirem o caminho marítimo para as Índias”, já havia muito tempo percorrido por comerciantes indianos e africanos.

Não tratarei, neste texto, mas abordarei o tema em artigo posterior, da questão do “Cinturão e Rota das Sedas da China”, pois me parece tratar-se mais de ação de “Short Power” – isto é “tentativa de imposição de exploração econômica, com a aplicação de recursos financeiros” – do que de “Soft Power”.

Verifica-se, finalmente, que, na medida em que se consolide a emergência da China e Índia, que possuem laços de vizinhança milenares, bem como se desenvolvam cooperação mais intensa e troca de ensinamentos, sobre como administrar seus respectivos processos de crescimento exponenciais, poderá haver impacto significativo no cenário político internacional.

Isto ocorrerá, tanto pela maior inserção de ambos na economia global, quanto por suas diferentes formas de atrair e influenciar novos e velhos amigos.

Cabe lembrar que, há 70 anos, Nova Delhi e Pequim foram os promotores dos chamados Cinco Princípios de Convivência Pacífica, durante a Conferência de Bandung, Indonésia, entre 18 e 24 de abril de 1955. Entre os objetivos anunciados encontravam-se a promoção da cooperação econômica e cultural entre nações da Ásia e África, além de fortalecer a solidariedade entre estes países, alguns dos quais haviam se tornado independentes havia pouco tempo.

Caberia, agora, desejar que, com sua crescente “soft power”, China e Índia contribuam para um contexto de respeito entre culturas diversas, que resulte em melhor ordenamento na governança mundial. [9]

Notas:

[1] Girard, Louis. “Le Monde Contemporain – Histoire – Civilizations”. “Collection d’Histoire”.  Bordas 1966.

[2]Zimmer, Heinrich.  “Philosophies of India”. Editado por Joseph Campbell. Bollingen Series/Princiton 1989.

[3]Zimmer, Heinrich. “Myths and Symbols in Indian Art and Civilization”. Editado por Joseph Campbel, Prince Town University Press., 1974.

[4]Zimmer, Heinrich.  “Philosophies of India”. Editado por Joseph Campbell. Bollingen Series/Princeton. 1989.

[5] Vide “Philosophies of India”, por  Heinrich Zimmer. Editado por Joseph Campbell. Bollingen Series/Pinceton 1989.

[6] “Le Monde Contemporain” “Histoire  - Civilisations” –Collection d’Histoire Luis Girard. Bordas, 1966.

[7] Nye, Jr. Joseph S. “Soft Power: The Means to Success in World Politics”. Public Affairs, 2004. O autor descreve tal poder como “a habilidade de obter o que você quer, atraindo e persuadindo os outros a seguirem objetivos seus”.

[8] Nome genérico dado à indústria cinematográfica indiana, sem que ocupe um local delimitado, na área de Mumbai.

[9] Servi, como diplomata, no “universo de influência cultural chinesa”, entre 1982 e 2006, sucessivamente, em Pequim, China; Kuala Lumpur, Malásia; Singapura; Manila, Filipinas; e Taipé, Taiwan – com intervalos de retorno a Brasília – e fui o primeiro Cônsul-Geral em Mumbai, Índia, com jurisdição sobre Goa, entre 2006 e 2009.