Para quem queria realismo, eis aí: o prato está quase cheio
Você duvida? Voltamos a conversar daqui a dois anos
A essa altura já é possível ver que Trump não está brincando, nem blefando, que ele não está apenas ameaçando como técnica de negociação para depois voltar atrás levando vantagem. As pollyannas acham que, passado o atual período em que Trump tem que dar satisfação aos seus eleitores mais radicalizados, as coisas vão voltar ao normal. Não vão. Trump deu uma guinada autoritária e está levando (quase) o mundo todo junto.
Muitas pessoas, porém, ainda não entenderam que Trump não é isolacionista. É o contrário. Ele é intervencionista. Nenhum presidente americano tentou interferir em outras partes do mundo em tão pouco tempo.
Mas essas pessoas, em geral, são negacionistas. Negam realidades que possam lhes causar desconforto emocional. Diante das investidas de um autocrata, repetem sempre as mesmas avaliações furadas: "É pura retórica". "É só bravata". "É apenas tática de negociação". "Logo, logo, vai voltar atrás".
A dura realidade deve ser encarada como é. As democracias liberais devem se preparar para viver num mundo onde os EUA não são mais aliados, mas inimigos. Para todos os efeitos práticos os EUA sob domínio MAGA devem ser considerados como fazendo parte, objetivamente, do eixo autocrático. As democracias liberais devem se armar (inclusive com armas nucleares), conquistar autonomia energética (inclusive com usinas nucleares) e investir em tecnologia de ponta - em inteligência artificial, biologia sintética e infraestrutura de comunicação (inclusive por satélite). Para tudo isso, devem configurar ambientes de pesquisa e inovação capazes de atrair cérebros de todas as partes do mundo.
O cenário global mudou. Infelizmente. O tratado de não proliferação de armas nucleares (de 1970) faz parte de um mundo que não existe mais. As armas nucleares estão nas mãos, majoritariamente, de ditaduras como Rússia, China, Índia, Paquistão, Coreia do Norte (e, provavelmente, em pouco tempo, Irã). Do lado das democracias tinhamos apenas EUA, França, Grã-Bretanha e Israel. Agora, com os EUA não podendo mais cumprir o papel de defesa do mundo livre, esse tratado dá vantagem ao eixo autocrático contra as democracias. Não faz mais sentido que Coreia do Sul, Taiwan e Japão não tenham armas nucleares para dissuadir invasões da Coreia do Norte e da China. Se a OTAN, sabotada pelos EUA, não vai defender a Ucrânia, a Moldávia, a Romênia, a Georgia, a Lituânia, a Letônia, a Estônia, a Finlândia, a Suécia e a Polônia, então esses países precisam ter como se defender da Rússia.
“Ah! Mas isso vai reeditar a corrida armamentista”. Pois é. Não foram as democracias liberais que provocaram essa situação. Quem deve ser responsabilizado por tal regressão são os EUA e o eixo autocrático, agora objetivamente alinhados.
As cerca de trinta democracias liberais que restaram devem também consolidar uma coalizão em defesa do mundo livre, apoiar a integridade da União Europeia e defender a Ucrânia - que jamais deve se ajoelhar, haja o que houver, pois não é a Europa que está protegendo a Ucrânia e sim o contrário.
Como escrevi há mais de seis meses,
“União Europeia, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá, Barbados, Costa Rica, Suriname, Chile, Uruguai, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia, sem abandonar a ONU atual, têm que liderar agora uma espécie de "Organização das Nações Democráticas Unidas", atraindo dezenas de países em transição democratizante (que ainda podem ser chamados de democracias, conquanto defeituosas ou apenas eleitorais) para essa articulação.
Isso deve ser feito antes que esses países sejam capturados pelo eixo autocrático (como já está acontecendo com os regimes eleitorais parasitados por populismos, a saber: México, Colômbia, Honduras, Bolívia, Brasil, África do Sul e, talvez, Indonésia).
Na pauta deve estar o fortalecimento da União Europeia, o apoio político, financeiro e militar à Ucrânia, o apoio às sanções a Putin, o apoio à democracia israelense (não ao governo Netanyahu), a condenação do terrorismo do Hamas, Hezbollah e IRGC (Guarda Revolucionária Iraniana), o repúdio ao antissemismo (ainda que disfarçado de antissionismo), a defesa de Taiwan contra a invasão da ditadura chinesa e, sobretudo, a auto-defesa (das democracias liberais) contra as investidas do eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã, provavelmente Turquia, Hungria, Síria e outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, talvez Bharat, Cuba, Venezuela e Nicarágua).”
Enquanto isso, antes que seja muito tarde, núcleos de resistência ao projeto autocratizante de Trump devem se formar em todos os lugares e setores dos EUA.
Aos que acham que estou exagerando, digo apenas o seguinte. Voltamos a conversar daqui a dois anos.
Isso é o mais puro realismo, embora saibamos que todo realismo político é autocrático. Por isso costumo dizer que quando um realista pronuncia a palavra ‘democracia’ é bom se esconder da polícia. E quando fala a palavra ‘paz’ é melhor correr logo para um abrigo antiaéreo. Mas para quem queria realismo, eis aí. O prato está quase cheio.