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terça-feira, 26 de abril de 2016

O Estado como Fora-da-lei (1): artigo de 2007, esquema e prefacio de livro - Paulo Roberto de Almeida


Autobiografia de um fora-da-lei, 1:
uma história do Estado brasileiro

Paulo Roberto de Almeida
Introdução a um grande ensaio histórico-político,
que pode tornar-se um livro verdadeiro, sobre o Estado brasileiro,
narrado, de forma inédita, na primeira pessoa. Politicamente emocionante!
  Espaço Acadêmico (ano 7, n. 78; novembro 2007 link: http://www.espacoacademico.com.br/078/78almeida.htm).

Bom dia, caro leitor! Alô, cidadãos! Como estão, prezados contribuintes e caros amigos? Como têm passado, distintos trabalhadores e senhoras donas-de-casa? Escrevo estas linhas – ou parágrafos, que podem virar páginas e, talvez, até, um livro – porque senti que era chegado o momento de me dirigir diretamente a vocês, pessoas comuns, dispensando tantos intermediários – sociólogos, ou cientistas políticos – que, ao longo do tempo, têm tentado cobrir meu itinerário histórico, desvendar o meu passado, interpretar o meu desenvolvimento institucional, analisar o modo de funcionamento dos meus órgãos internos (oh!, perturbadores), ou até desvendar o meu futuro, como cabe a especialistas tão reputados (e, por vezes, tão enganados e tão enganosos).
Depois de tantas páginas memoráveis dedicadas ao meu modo de ser e às mais variadas formas de minha intervenção na vida de vocês, cheguei à conclusão que era a hora de eu mesmo tomar da pluma – mas, que antiquado eu sou: sentar-me à frente do computador, melhor dito – para escrever minha autobiografia, algo raro em se tratando de uma instituição pública que emana da própria sociedade, como vocês podem bem adivinhar. Mas, vocês bem que mereciam este gesto, pois, afinal de contas, são vocês que pagam as minhas contas, alimentam os meus cofres, financiam a construção de um palácio aqui, outro acolá, provêm os recursos dos quais eu tiro os salários de tantos empregados a meu serviço – sim, sim, não me enganei, a meu serviço, eu disse – me permitem, enfim, umas tantas loucuras de vez em quando (ou tantas quantas eu consigo levar adiante, sem maiores turbulências nas redondezas). Estava, de fato, devendo isso a vocês. Já estou ficando velho e gordo, atacado da gota e de alguns achaques aqui e ali, e queria dar a vocês alguma satisfação sobre o que tenho feito nestes últimos anos (nestes últimos duzentos anos, quero dizer, mas com certa ênfase no período recente, talvez os mais movimentados de minha longa trajetória de vida).
Se ouso tomar da pluma – ops, teclar estas notas, na tela à minha frente – para contar algumas coisas edificantes e outras talvez menos dignas, não o faço movido por ódios ou paixões, nem como reação a tantas bobagens que tenho lido nos livros, revistas ou jornais a meu respeito, tampouco em função de alguma urgência do momento. Afinal de contas, eu sou, aparentemente, “eterno”, e nada obsta a que uma nova biografia seja escrita sobre mim em mais cem ou duzentos anos. Apenas senti necessidade de colocar no papel – ou melhor, em bits and bytes do meu laptop – uma trajetória de vida que tem muito a ver com a vida de cada um de vocês, especialistas em destrinchar as minhas entranhas, cidadãos preocupados com os assaltos que faço regularmente em seus bolsos ou no caixa de suas empresas, ou simples curiosos, que sofrem ou se beneficiam com minhas ações ou omissões.
De fato, senti que devia a todos vocês este racconto storico eminentemente pessoal sobre a minha carreira, as minhas aventuras de vida, as minhas expectativas e os meus projetos. Tenho estado – sem trocadilho – insatisfeito com tantas análises capciosas que encontro nos livros de supostos estudiosos de minha trajetória e ações, de tantos ataques furibundos que venho constatando nas folhas liberais, assim como em face de tantas reclamações que tenho ouvido, como resultado de frustrações acumuladas por cidadãos que confessam não terem sido atendidos em esperanças e promessas que me teriam sido endereçadas por vocês mesmos, cidadãos do país.
Antes de começar, porém, a reconstituição de minha trajetória, vale uma explicação pelo título e subtítulo escolhidos para este ensaio autobiográfico. Por que “fora-da-lei”, exatamente? E por que o subtítulo não mais pessoal e sim, aparentemente, impessoal, ou, pelo menos, na terceira pessoa? A que se deve este exercício de auto-flagelação, esta decisão em prol da auto-acusação?
De fato, hesitei muito quanto à qualificação que eu deveria dar à minha própria trajetória de vida, sendo eu, supostamente, o personagem mais importante da história brasileira, aliás, ainda antes que o Brasil se conhecesse por esse nome, ou que fosse ele um Estado independente, como tal reconhecido pelas outras potências soberanas. Tendo estado – perdão pela nova redundância estilística – na origem da nação antes mesmo que ela se constituísse em Estado, eu deveria ser, presumivelmente, o personagem em princípio mais interessado no estrito cumprimento da lei, na correta observância da legalidade, no fiel atendimento das regras de vida social e das normas de organização pública que orientam, pelo menos em teoria, a vida dos cidadãos, a conduta dos agentes públicos, a atividade dos agentes econômicos privados e, a rigor, de todos aqueles que estabeleceram residência regular (ou passageira) no território colocado sob a minha jurisdição exclusiva. Por que, então, “fora-da-lei”? Sim, o que justificaria uma tal infração ao gentil tratamento de praxe que se deve estabelecer entre o detentor da soberania e súditos ou cidadãos – como você que está me lendo agora –, com essa auto-classificação de “infrator da legalidade”?
Tal se deve a uma razão muito simples (e vou ser absolutamente sincero com vocês). Eu tenho sido, a despeito de todos os preceitos constitucionais que me cercam, o mais freqüente e o mais constante violador da legalidade criada por vocês – ou seus representantes – para orientar minha conduta e as minhas ações práticas. Confesso que tenho sido um mau cumpridor desses preceitos e admito abertamente violar a lei em tantas ocasiões que já perdi a conta de todas as ilegalidades cometidas ao longo desta minha vida de, digamos, dois séculos justos. Eu sou, reconhecidamente, o maior infrator constitucional já conhecido neste país e um grande descarado quando se trata de atender às obrigações constitucionais ou infra-constitucionais que me foram historicamente atribuídas por nada menos do que – acho que já perdi a conta – cinco ou seis processos de elaboração constitucional e outros tantos remendos constitucionais, ao longo desta minha trajetória conturbada. Sim, confesso que sou um reincidente nas violações constitucionais, e mais ainda nas pequenas normas que deveriam, supostamente, guiar a vida dos meus súditos – êpa!, cidadãos – e orientar-lhes a conduta diária.
A bem da verdade, não posso reclamar dos meus conterrâneos, a maior parte formada por honestos cidadãos e modestos trabalhadores, cumpridores da lei e defensores da normalidade democrática, desejosos que sempre foram de uma vida normal, feita de segurança na vida diária, oportunidades abertas a todos para o desenvolvimento de atividades respeitadoras dos direitos de propriedade, eleitores fiéis em todos os momentos em que foram chamados às urnas, enfim, pessoas que aspiram a uma vida digna e merecedora de respeito por parte daquele mesmo que deveria atender a esses requisitos mínimos da vida em sociedade, isto é, eu mesmo. Sei disso, e é por isso mesmo que eu tive este ataque de franqueza e de sinceridade e resolvi me classificar como um “fora-da-lei”, nesta biografia tão crítica quanto desautorizada (digo isto porque não solicitei a autorização de nenhum dos meus poderes constituídos para escrevê-la, sendo ela, mais exatamente, a pura expressão de uma vontade passageira e irrefletida, um desejo repentino de auto-confissão, que provavelmente não se repetirá nos próximos cem anos). Aproveitem, pois!
Quanto ao subtítulo, que parece contradizer o título, ele se deve, tão simplesmente, a que pretendi que esta minha autobiografia fosse concebida e escrita com o maior grau de isenção possível, com tanta objetividade quanto seja admissível num panfleto crítico centrado sobre um personagem suscetível de todas as críticas, e que ainda assim se dispõe a desvendar um pouco de suas reflexões sobre sua longa trajetória de logros e frustrações. Atentos aos próximos capítulos!

Brasília, 1826, 19 outubro 2007, revisão: 27.10.2007.
 
Esquema tentativo

1. Prefácio: uma história do Estado brasileiro
       (já escrito; sob nr. 1826)
2. Uma questão de método: como o Estado pode escrever sua própria biografia?
       (considerações sobre quem fala, ou escreve, e como fala e se manifesta) (n. 1831; abaixo)
3. Um nascimento impreciso: data e local do parto, paternidade presumida...
       (digressões sobre minha trajetória colonial: um Estado fora do estado normal)
4. Minha criação pelo “método confuso”: tocata e fuga, sem qualquer partitura...
       (a fuga da família real portuguesa em 1807 e sua instalação em 1808)
5. De colônia a Reino-Unido: uma promoção merecida...
       (o que o bom príncipe D. João fez por mim, antes e depois de 1816)
6. Em face do meu próprio destino: a caminho da independência
       (saquearam o meu banco e me deixaram na penúria; então, tome...)
7. Um príncipe impulsivo: meu primeiro mandatário, de muitos maus modos...
       (o príncipe convertido em Imperador, fechando a Constituinte)
8. Uma carta liberal-escravista: meu primeiro contrato constitucional
       (aspectos bizarros e pouco recomendáveis da Constituição de 1824)
9. Esquartejando o corpo da pátria: revoltas e rebeliões adolescentes...
       (expulsão do meu imperador, revoltas da Regência, violência de toda espécie)
10. Em paz com meu novo chefe: um jovem inexperiente, mas de boas intenções
       (digressões sobre o modo de ser do bom imperador D. Pedro II)
11. Como é duro reformar e modernizar um país: as amarras conservadoras
       (tentativas de abolir o tráfico, a escravidão, trazer progresso e indústria)
12. Desafios externos e incapacidade interna: enfrentando ditadores e déficits
       (Guerras platinas, desequilíbrios orçamentários, dívida externa)
13. Deliqüescência senil?: os reumatismos de minha condição monárquica
       (problemas no enfrentamento das questões sociais e políticas)
14. Um golpe algo improvisado: o nascimento da República
       (finalmente, virei “americano”: adeus à velha Europa)
15. Artigo de imitação: minha primeira constituição “federativa”
       (a Constituição de 1891 e seus muitos equívocos conceituais)
16. Testando a minha vontade: ameaças regressistas e reações jacobinas
       (como se resolvem alguns problemas a bala...)
17. Na santa paz das oligarquias: o café-com-leite do menu republicano
       (arranjos oligárquicos e instabilidade político-econômica)
18. Controvérsias internas e externas: o consenso das elites
       (revoltas provinciais, fixação das fronteiras externas)
19. O voto no bico da pena: eleições falsas, mas representação verdadeira
       (como eleger um presidente com um mínimo de voto, e fraudando além de tudo)
20. O que devo ao café: tudo, ou quase tudo...
       (a base das minhas receitas, minha presença no mundo)
21. De repente, afundam os meus navios
       (minha primeira experiência em uma briga de grandes: a primeira guerra mundial)
22. Como eleger um presidente sem precisar fazer campanha: Epitácio na Europa
       (nossa participação na conferência de Versalhes)
23. Jovens exaltados: meus inconstantes súditos militares
       (as revoltas dos tenentes se espalham pelo país)
24. Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade
       (investimentos estrangeiros, reações xenófobas, nosso difícil desenvolvimento)
25. Meus liberais autoritários: desalojando a oligarquia, refazendo minhas fundações
       (a Revolução de 1930 e todo o resto)
26. Esses paulistas presunçosos: os guardiões da constitucionalidade
       (breve história da revolta de 1932: forçando a enfrentar os fatos)
27. Novo arranjo constitucional: desta vez, sob o signo do corporativismo
       (a elaboração constitucional de 1934)
28. Vermelhos e verdes: os meus radicais de esquerda e de direita
       (comunistas e integralistas tentam me conquistar)
29. A longa noite autoritária: me convertem em “Estado Novo”
       (o golpe de 1937, e o lado bom da não-democracia)
30. Entre o martelo e a bigorna: decidindo quem são meus verdadeiros amigos
       (minha decisão pelas nações aliadas)
31. Lutando na Europa pela democracia: e o que acontece lá em casa?
       (ideais e valores confrontados à realidade: a caminho do fim de uma etapa)
32. Luz no fim do túnel: a caminho da normalidade democrática
       (presidência provisória, eleições e um presidente militar)
33. O soneto melhor que a emenda: avaliando retrospectivamente a Carta de 1946
       (Dutra e a legalidade democrática: alguns arranhões na normalização)
34. A volta do mito: o ditador me conquista pelo voto
       (o segundo Vargas e as confusões intermináveis)
35. Um Estado de crise permanente: golpes e contra-golpes civil-militares
       (as crises de meados dos anos 1950)
36. O otimismo em pessoa: JK me encanta, mas a conta foi salgada...
       (cinqüenta anos em cinco, com despesas multiplicadas por dez)
37. De vassoura em punho, para o desconhecido: como tentaram me limpar
       (JQ e uma experiência inesquecível)
38. Meu primeiro Forrest Gump: Jango e a indecisão em pessoa
       (a grande confusão do governo populista-voluntarista)
39. Nova violência constitucional: esses militares impacientes
       (não quiseram esperar até 1965)
40. Tentando minha modernização, pelo alto: a via prussiana da mudança
       (as grandes reformas da era militar)
41. Querendo me transformar em grande potência: o fortificante da dívida externa
       (rápido crescimento, com ilegalidades a olhos vistos)
42. Do auge ao declínio do Estado militar: um retrato em tons de cinza
       (tentando um balanço honesto da era militar: tarefa impossível?)
43. Mobilização pela minha conquista: helàs, uma transição conservadora
       (como a nova República se instalou; aos trancos e barrancos e com muitos conchavos)
45. Todos os poderes ao povo (ou quase): a Constituinte congressual
       (sabores e dissabores do processo de elaboração constitucional)
46. Uma Constituição cidadã?: talvez, mas depois virou madastra...
       (análise das promessas generosas, economicamente impossíveis)
47. Acharam que eu era uma cornucópia: a descida na voragem inflacionária
       (como destruir uma economia com dois ou três congelamentos)
48. A grande fraude: como um caçador de marajás seqüestra a poupança dos incautos
       (mas pelo menos o cidadão começou a me transformar)
49. Meu segundo Forrest Gump: Itamar e a estabilização sem sacrifícios (ou quase)
       (trajetória de um bem sucedido plano de estabilização macroeconômica)
50. Na euforia da globalização, com um breve chamado à razão
       (tentando colocar as coisas em ordem, com alguns desajustes inevitáveis)
51. Remendando o que fizeram errado: a ordem econômica da introversão
       (consertando os desvios mais evidentes da Constituição de 1988)
52. Violando um velho princípio republicano: a caixa de Pandora da reeleição
       (esses políticos e suas fantásticas elocubrações)
53. Da glória ao inferno em pouco tempo: apagão cambial e energético
       (enfrentando os dragões da crise financeira e da imprevidência energética)
54. Tudo pronto para a mudança: a mais perfeita campanha de ilusionismo que conheci
       (prometendo uma coisa e se preparando para outra: a transição de 2002)
55. Contando uma bela história e atuando na penumbra: o Richelieu do Planalto
       (como comprar políticos a preço vil: a democracia violada pelo dinheiro)
56. Do carisma ao mito: como comprar o apoio do povo no cartão magnético
       (o grande curral eleitoral do Bolsa-Familia)
57. Uma tentativa de balanço: do Estado ideal ao estado a que chegamos
       (o barão de Itararé tinha razão?; como é difícil me reformar...)
58. Conclusões: uma trajetória aventurosa, cheia de riscos, sempre mais cara
       (quanto eu custo para o povo brasileiro?; será que ele me merece?)

Brasília, 27 outubro 2007.
(a ser desenvolvido progressivamente)

Autobiografia de um fora-da-lei, 2
(uma história do Estado brasileiro)

Paulo Roberto de Almeida

Uma questão de método: como o Estado pode escrever sua própria biografia?

Expostas as razões pelas quais decidi escrever minha próprias história, cabe agora responder à difícil questão de como pode uma entidade que é, por definição, impessoal, vale dizer, indefinível enquanto personalidade individual e, portanto, sem vontade própria, escrever sua biografia na primeira pessoa? Quem é você, seu fora-da-lei assumido?
Sim, afinal de contas, quem está falando, ou quem está escrevendo, exatamente? Seria sempre a mesma pessoa, ao longo do tempo, em toda e qualquer circunstância? Qual inteligência anima essa pluma, ou movimenta esse mouse a bate os dedos nesse teclado de computador? Que cérebro está atrás dos argumentos escritos e responde pela veracidade do que vou aqui expor? O Estado, isto é, eu mesmo, não foi o mesmo ao longo do tempo, não há um fio condutor que leva da mera capitania-geral e do vice-reinado da era colonial, para um reino sui generis no contexto americano, no início do século XIX, daí para um império pretensioso em seu aristocratismo mestiço e, finalmente, uma república de oligarcas e de aventureiros que foi se transformando ao longo do século XX. Em cada uma dessas etapas da minha existência, forças e ânimos diferentes estiveram atrás de minhas ações (e omissões), vontades diversas, e muitas vezes contraditórias, me empurraram para esta ou aquela aventura política ou militar, interesses concretos daqueles que ocuparam minhas sedes eventuais levaram a características muito particulares que fui assumindo no decorrer dessas fases, algumas mais tempestuosas do que outras, sem que se possa, em todos os casos, identificar o momento certo de ruptura com certas práticas e hábitos ancestrais e o começo de uma nova era de dominação.
Claro, o que permanece constante no decorrer de toda a minha existência é essa essência verdadeira de todo Estado: a concentração do poder e o exercício indisputável – algumas vezes disputado – da dominação política, ou seja, o comando sobre os homens e a administração das coisas. Tirando essa característica fundamental do meu modo de ser, tudo o mais mudou, ao longo desses anos e séculos de trajetória errante, de ações claudicantes, por vezes decisivas, em outras timoratas, em todo caso, determinantes para o destino de tanta gente e de tantos interesses. Eu sempre fui fiel a um único princípio, a uma única vontade, ou seja, a mim mesmo, buscando preservar a lógica do poder absoluto, que é o monopólio do uso da força e a eliminação de todo e qualquer concorrente no exercício daquela capacidade de agir que os cientistas políticos chamam de nomes aliás coincidentes: Macht, power, puissance. Não admito competição quando se trata da minha própria vontade!
Por isso mesmo eu sou único, ainda que diversas personalidades se tenham sucedido no comando de minhas ações. Mas todos aqueles que se sentaram na minha cadeira de comando, estiveram a meu serviço exclusivo e encarnaram minha vontade pessoal, mesmo sem o saber ou sequer perceber. Muitos pensaram, sobretudo aqueles com vocação caudilhesca ou ditatorial, que se guiavam por sua própria vontade, quando na verdade estavam cumprindo meus desígnios permanentes, que são o de sempre acumular poder e o de aumentar cada vez mais meu domínio sobre os homens e as coisas. Alguns me serviram fielmente, outros pensaram que estavam devolvendo o “poder ao povo”, quando nada mais faziam do que confirmar minha determinação em exercer solitariamente toda e qualquer decisão relevante na vida da nação. O país se coloca aos meus pés: este é princípio diretor que orienta todas as minhas ações.
Isto não quer dizer que eu tenha sido sempre arbitrário e prepotente no decorrer de minha história multissecular, longe disso. Na maior parte das vezes, eu agi com o consentimento e a concordância da maior parte dos meus súditos, ou cidadãos, conforme o caso. Raras vezes me vi obrigado a me afastar de meu próprio livro-guia para impor minha vontade unilateral ao povo miúdo ou aos poderosos que me sempre me cercaram. Normalmente todos eles me obedecem, por costume ou porque são sensatos, não lhes importando muito saber de onde vem a minha força e o poder de minha clave, apenas interessando-lhes ter certeza de que ela poderia se abater sobre suas cabeças caso ousassem infringir as normas fixadas nas tábuas da lei.
E, para tocar no ponto certo, quem impunha a sua lei sobre os pergaminhos e papéis que condensavam a vontade superior que eu representava ao longo do tempo? Bem, isso variou muito no decorrer dos séculos pois, ainda que a minha palavra fosse unívoca e singular, os comandos foram sendo articulados pelas diferentes figuras que, na sucessão dos reis postos, de sucessores impostos, de monarcas de ocasião e de tribunos cooptados pelas oligarquias, ocuparam os meus palácios pela razão ou pela força. Essas leis, em todo caso, foram sempre sendo interpretadas à minha própria maneira, segundo meus desejos circunstanciais, foram sendo modificadas sempre quando isso me convinha, foram sendo dobradas à minha vontade ou descartadas como inúteis e substituídas por novas leis, sempre melhores, claro, do meu ponto de vista.
Foi assim que eu fui acumulando, sem sequer enrubescer uma única vez, constituições várias e milhares de normas, centenas de alvarás-régios, dezenas de milhares de leis, incontáveis decretos, medidas provisórias, portarias, circulares, instruções, avisos e tudo o que foi possível humanamente (e até de forma desumana) inventar como injunções aos súditos e cidadãos (à falta de poder me dirigir às coisas inanimadas). Confesso que eu mesmo me perdi, inúmeras vezes, no meio dessa barafunda de regras, nessa selva de leis, sem saber ao certo qual a que se devia aplicar a cada caso específico. Mas, isso não importa muito, pois o que vem com o carimbo do Estado e a chancela da autoridade merece ser cumprido, sob as penas da lei, que sou eu mesmo quem faço (ainda que alguns juízes inventem de interpretá-la).
Sendo assim, nada obsta a que eu escreva minha própria história, nas minhas próprias palavras, com o que hão de concordar (obrigatoriamente) os mais sensatos. Nada impede que eu tenha escolhido para ser meu escriba particular – e temporário – um mero empregado do Estado, um servidor público temporariamente disponível para estas digressões fora do comum, posto que raramente me é dado o lazer de eu mesmo descrever minha trajetória política (e econômica). No mais das vezes, minha história e carreira política têm sido escritas por cientistas sociais ou sábios da academia, ocasionalmente até um ou outro psicanalista ou filósofo improvisado. Eles falam muita bobagem a meu respeito, e até algumas inverdades.
Esta é, portanto, a minha autobiografia autorizada, a única que me foi dada escrever até este momento, ao que eu saiba, pelo menos. Desconheço, na verdade, se em outras encarnações de minha múltipla personalidade, antecessores tomaram eles mesmos da pluma – aqui no sentido literal – para escrever minha história pregressa, ou se delegaram a outros essa tarefa. Não tenho registro de exemplos precedentes nos meus arquivos implacáveis, algo confusos, é verdade, e, no mais das vezes, impenetráveis. Quero, em todo caso, deixar constância de minha honestidade proverbial na reconstituição dos meus atos e fatos, o que aliás vem expresso no subtítulo desta autobiografia: eu escrevi que se trata de “uma” história do Estado brasileiro, e não “da” história desse Estado. Esta é a minha história, quem quiser que conte outra. Nunca pretendi retirar o sustento de tantos cronistas voluntários da minha existência, nem competir deslealmente com tantos intérpretes da academia. O presente rábula é de ocasião, mas ele é meu, ele sou eu.
Esta é, portanto, a minha versão da minha história, a única por mim autorizada. Outras existirão, que não receberam a minha chancela ou até à minha revelia, quando não deformando totalmente as minhas ações e os meus dizeres. Não me importa! Sou democrata, se isto não causar arrepios (ou calafrios) ao mais respeitável dos filósofos políticos. Minha vontade é a lei, mas eu deixo que a interpretem à vontade, à condição que ela seja cumprida. Tem sido assim nos últimos quatro ou cinco séculos e não vejo por que isso tenha de mudar agora.
Não temam os historiadores se eu não revelar as fontes documentais dos muitos atos e fatos que eu aqui relatar: não tenho tempo, agora, para ir remexer no pó dos arquivos e dali retirar as “provas irrefutáveis” do que vou contar, em linguagem livre e por vezes desabusada. Vou ser sincero, tanto quanto me permitem a idade e o alcance da memória e não tenho por que esconder as coisas mais escandalosas que andaram dizendo ao meu respeito. Aprendi, em outros tempos, com um intérprete genial, Niccolò Machiavelli, que não devemos nos envergonhar de exercer a única coisa que nos é dada como essência da nossa própria existência: o poder total, em todas as suas formas e manifestações. Dele faço questão e é por isso mesmo que eu decretei ao meu escriba: senta-te e escreve a minha história verdadeira.
É a que eu passo agora a relatar...

Brasília, 2 de novembro de 2007

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Estado brasileiro: como os nazifascistas dos anos 1930, como osgangsters mafiosos de Chicago

Nos anos 1930, não havia praticamente diferenças entre os gangsters nazistas instalados em Berlim, e em toda a Alemanha, e os mafiosos de Al Capone, em Chicago. Ambos grupos de criminosos, uns politicos, outros comuns, praticavam os mesmos crimes. Al Capone havia comprado juízes, policiais e talvez até um ou dois senadores em Washington. O fato de Hitler estar no comando de um estado e Al Capone à frente de uma organização criminosa, não os distinguia fundamentalmente. Hitler dispunha de um poder letal muitas vezes maior e assim destruiu a Alemanha e milhões de vidas inocentes. Mas na essência, ele era igual a Al Capone: um criminoso impiedoso.
Parece que o Brasil está se aproximando do padrão: quando o crime organizado toma conta do Estado, podemos esperar o pior. 
Paulo Roberto de Almeida 
A coisa realmente é de uma graça sem fim. O Labogen, o tal laboratório-fachada de Alberto Youssef, que está em nome de laranjas, importava joias italianas, vinhos, instrumentos musicais etc. É o que apontam documentos revelados pela Polícia Federal. Atenção! Os documentos apontam a importação de insumos para a fabricação de remédios. Que mimo! A empresa servia para remeter dinheiro ilegalmente para o exterior e para operar uma sofisticada forma de contrabando. Os “clientes” de Youssef compravam suas “mercadorias finas”, repassavam para ele dinheiro em reais, ele adquiria os produtos no exterior, falsificava a importação de remédios e pronto! Tudo chega aqui sem imposto.
Até aí, vá lá. Coisa típica da bandidagem. Ocorre que esse dito “laboratório” havia fechado uma parceria com a Laboratório da Marinha e com a gigante EMS para a produção de remédio. Sabe-se que essa biboca não tinha condições de fabricar coisa nenhuma. Como é que o dois outros laboratórios, um privado e outro público, fizeram o acordo?
Sim, um ex-assessor de Alexandre Padilha, que ele trata por “Marcão”, foi contratado para dirigir um suposto laboratório que servia à remessa de recursos para o exterior, contrabando e, provavelmente, lavagem de dinheiro. O deputado André Vargas (PR) disse a Youssef que “Marcão” era uma indicação de Padilha. Agora nega. Mais do que isso: o então ministro serviu de testemunha do acordo entre as três empresas. Como é que um grupo criminoso atua dentro do poder com esse desassombro?
A parceria já firmada era de R$ 31 milhões, mas poderia chegar a R$ 150 milhões. E o cliente era o Ministério da Saúde.
Estamos diante de uma evidência: o crime organizado já se infiltrou no Estado brasileiro e opera dentro do poder.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Energia eletrica: o governo joga sujo e age ilegalmente, totalmente contra a lei - Editorial Estadao

A estatização da CCEE

25 de abril de 2014 | 2h 06
Editorial O Estado de S.Paulo
Com certeza vão muito além dos formalmente alegados "motivos pessoais" as razões da demissão de três dos cinco conselheiros da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) no dia seguinte à aprovação, por esse órgão colegiado, da tomada de um empréstimo de R$ 11,2 bilhões para socorrer as distribuidoras. Não é mero acaso o fato de os três conselheiros demissionários serem representantes do setor privado. Os que permanecem no cargo, entre eles o presidente da CCEE, foram indicados pelo governo.
As finanças das distribuidoras foram abaladas pela desastrosa política energética do governo Dilma e agravadas pela falta de chuvas nas principais regiões produtoras. Para evitar uma crise ainda mais grave no setor, já afetado pela baixa capacidade de geração das usinas hidrelétricas, o governo poderia repassar paulatinamente para as tarifas o custo adicional em que incorreram as empresas ou utilizar recursos do Tesouro. A primeira alternativa, porém, seria prejudicial às pretensões eleitorais da presidente; a segunda oneraria os contribuintes e afetaria ainda mais a frágil política fiscal, marcada por mágicas contábeis e números de baixa credibilidade. Acabaria, também, afetando os planos eleitorais de Dilma.
Sem fazer o que deveria ter feito para tentar atenuar os efeitos nocivos de sua política energética, o governo decidiu montar uma operação de socorro financeiro às distribuidoras, endividando fortemente a CCEE. Trata-se de utilização de um órgão colegiado em finalidade não prevista na legislação que o criou nem em seus estatutos originais: uma operação financeira de grande vulto para a qual, por sua própria função, não tem como oferecer garantias - fato que deve ter sido levado na devida conta pelos conselheiros que se demitiram.
Ironicamente, quem propôs a criação da CCEE foi a então ministra de Minas e Energia Dilma Rousseff - que assina, solitariamente, a exposição de motivos ao então presidente Lula para a edição de medida provisória (MP) instituindo mudanças na comercialização de energia elétrica. Assinada em dezembro de 2003, com o número 144, a MP foi aprovada com alterações pelo Congresso e se tornou a Lei n.º 10.848, de março de 2004.
O texto assinado pela então ministra de Minas e Energia é claro. A CCEE é pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, e entre suas finalidades estão a administração, o registro e a liquidação dos contratos de compra e venda de energia entre geradores e distribuidoras. Não há na MP nem no texto da lei (que, na parte relativa à CCEE, sofreu pouquíssimas mudanças em relação à MP) nenhuma referência a seu papel de tomador de empréstimos ou de emprestador de dinheiro para as empresas que dela fazem parte.
Ao anunciar que, por meio de uma estranha operação de engenharia financeira, a CCEE tomaria empréstimo de R$ 11,2 bilhões para socorrer as distribuidoras - que receberão R$ 4 bilhões do Tesouro, pois estão comprando energia das termoelétricas a um valor maior do que, por imposição do governo, podem cobrar dos consumidores -, as autoridades do setor elétrico e da área econômica imaginaram ter fechado o pacote de socorro para o setor.
Com isso, o plano alardeado pelo governo Dilma de redução de tarifas, além de ter desorganizado o setor, resultará em custos bilionários, que alguns especialistas estimam em R$ 50 bilhões. Por mero interesse eleitoral do governo, esses custos pouco afetarão as contas de luz nos próximos meses, mas implicarão aumentos de tarifas e gastos adicionais do Tesouro nos próximos anos.
A crise política na CCEE é um custo adicional da política energética de Dilma. Estatutariamente, o órgão tem um conselheiro indicado pelo Ministério de Minas e Energia, e que é seu presidente natural; os demais conselheiros são indicados pelas empresas geradoras, pelas distribuidoras, pelas comercializadoras e pelos agentes em conjunto. Permaneceram no cargo o presidente e um conselheiro que já ocupou a presidência em dois mandatos (o que é permitido por lei) - ou seja, também um representante do governo.

sábado, 29 de março de 2014

Brasil: um pais em que ate o passado e' incerto, mas onde o Estado e' oprincipal fora da lei

S&P estima que bancos podem perder R$ 12 bi com planos econômicos

Os números da agência encontram-se na menor faixa das estimativas do mercado, que vão de 8,4 bilhões de reais a 341 bilhões de reais

Veja.com, 28/03/2014
Fachada da Standard & Poor's, em Nova Iorque. A agência de risco vê chances de novo rebaixamento da nota de crédito dos Estados Unidos - 06/08/2011
Fachada da Standard & Poor's, em Nova Iorque. A agência de risco vê chances de novo rebaixamento da nota de crédito dos Estados Unidos - 06/08/2011 (Stan Honda/AFP)
A Standard & Pooor's estima que os bancos brasileiros terão de desembolsar um total de 12 bilhões de reais para ressarcir correntistas que protestam no Supremo Tribunal Federal (STF) contra perdas na caderneta de poupança durante os planos econômicos das décadas de 1980 e 1990.
Os números da agência, que no início da semana rebaixou os ratings do Brasil para o mais baixo grau de investimento, "BBB-", encontram-se na menor faixa das estimativas do mercado, que vão de 8,4 bilhões de reais a 341 bilhões de reais.
"Nós assumimos que cerca de 50% disso deve recair sobre os bancos estatais", afirmou Sebastian Briozzo, analista da S&P para o Brasil. No futuro, os bancos privados poderiam processar o governo para tentar recuperar o prejuízo, acrescentou ele.
O novo rating do Brasil, com perspectiva estável, já incorpora o potencial impacto do julgamento do STF sobre as finanças do governo, afirmou Briozzo. Nesta semana, a S&P cortou notas de crédito de treze instituições financeiras brasileiras e deixou 27 grupos em observação negativa.
As treze instituições que tiveram o rating em moeda estrangeira reduzido foram Caixa Econômica Federal, Itaú Unibanco, BNDES, Bradesco, Banco do Brasil, Santander Brasil, Itaú BBA, HSBC Brasil, Banco Citibank, Banco do Nordeste, SulAmérica, SulAmérica Companhia Nacional de Seguro e Allianz.

quarta-feira, 19 de março de 2014

O Estado como principal fora-da-lei: irresponsabilidade tem preco - Editorial Estadao

Irresponsabilidade tem preço
17 de março de 2014 | 2h 05
Editorial O Estado de S.Paulo

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que obriga a União a indenizar pesadamente a extinta companhia Varig, em razão das perdas decorrentes do congelamento das tarifas aéreas entre 1985 e 1992, dentro do Plano Cruzado, restabelece o princípio de que contratos são firmados para serem cumpridos e de que os direitos devem ser preservados seja qual for a "boa intenção" que os ameace.
De acordo com cálculos da União, o ressarcimento à Varig para compensar os prejuízos causados pelo Cruzado chega a R$ 3 bilhões. Os advogados da companhia alegam que o valor é superior a R$ 6 bilhões. A conta final ainda está para ser fechada. A Advocacia-Geral da União (AGU) vai esperar a publicação do acórdão para verificar quais são as possibilidades de recurso, mas, ao que tudo indica, elas são meramente formais.
Por 5 votos a 2, o STF entendeu que o tabelamento de preços promovido pelo Cruzado foi o responsável direto pelo colapso da Varig, conforme avaliação de tribunais inferiores. Os ministros que votaram pela indenização entenderam que a responsabilidade civil do poder público está clara, pois, graças aos planos econômicos, houve quebra do equilíbrio econômico-financeiro da relação contratual - isto é, o Estado, ao impedir o reajuste das passagens, interferiu decisivamente na capacidade do fornecedor de entregar o serviço público contratado. Em seu artigo 37, inciso XXI, a Constituição manda que esse equilíbrio entre a prestação do serviço e o pagamento por ele respeite o previsto no contrato e seja preservado durante toda a sua duração.
A AGU alegou que o governo exerceu "legitimamente uma de suas funções típicas, de regular o serviço público em prol de toda a coletividade". No entanto, ainda que revestido de legalidade, um ato de governo como o congelamento de preços implica consequências econômicas que deveriam ser assumidas pela administração, na forma de compensação às concessionárias afetadas. Em sua defesa, a Varig alegou justamente que seu patrimônio se esvaiu em razão do tabelamento das passagens aéreas e que tinha, portanto, de ser ressarcida. Outras empresas aéreas entraram na Justiça com argumento semelhante - em 1998, a Transbrasil foi indenizada em cerca de R$ 1,3 bilhão.
Não é o caso de entrar no mérito dos argumentos sobre um eventual exagero do valor da indenização à Varig, ou mesmo, como lembraram os ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes em seus votos favoráveis à União, sobre o fato de que a Varig detinha o monopólio dos voos para o exterior, cujas tarifas não eram controladas pelo governo - razão pela qual, segundo esse raciocínio, a empresa teria falido por causa de má gestão, e não dos efeitos dos planos econômicos. A questão central, que não se pode perder de vista, é que havia normas e direitos em contratos de concessão pública que foram atropelados pelas autoridades em nome da estabilização da economia.
Considerando-se que cerca de 1.000 ex-funcionários da Varig já morreram sem receber o que lhes era de direito, em razão da longa tramitação do processo, é possível ter a dimensão do problema. Ao menos 10 mil ex-empregados aguardam o pagamento da indenização à Varig para cobrar sua parte.
Não é a primeira vez, e certamente não será a última, que governantes movidos a "boas intenções" causam prejuízos a empresas, contribuintes e aos próprios cofres públicos - como, aliás, provam abundantemente as atuais agruras do setor elétrico. Planos econômicos mirabolantes e medidas administrativas executadas sem o devido amparo jurídico - o que denota desapreço pelas leis - muitas vezes viraram o País de cabeça para baixo, deixando em seu caminho um rastro de cidadãos prejudicados. Cedo ou tarde, essas aventuras são questionadas nos tribunais, quase sempre com ganho de causa para os lesados, restando ao poder público a procrastinação - como acontece com o vergonhoso caso dos precatórios, em que os credores do Estado literalmente morrem na fila à espera da indenização. 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O Estado no Brasil: sempre o principal fora-da-lei - Financial Times

Brazilian Banks Could Owe More Than $140 Billion 
Financial Times, February 18, 2014

A new report by Brazilian banks suggests a legal battle over the consequences of economic plans launched nearly three decades ago could cost them more than $140 billion, more than double their previous estimate. 
Consumer advocates have said that amount is exaggerated and is a way for banks to pressure Supreme Court justices to get a favorable rule for financial institutions. 
Savers across the country claim they weren't paid enough interest on their savings by banks as Brazil navigated its way through a series of economic plans designed to stabilize prices between 1986 and 1991. As the government sought to cut down on inflation, savers claim the interest on savings accounts didn't keep up with rising prices. 
The new report by the Brazilian Federation of Banks, or Febraban, which was seen by The Wall Street Journal, indicates the costs could be anywhere between 23 billion Brazilian reais ($9.6 billion) and, in a worst-case scenario, 341 billion reais. The report, prepared by São Paulo-based consulting firm LCA, estimates the banking system as a whole has set aside just 8.3 billion reais to cover potential losses. 
Government officials have warned that a ruling against the banks in line with the worst-case scenario could damage the financial system and harm economic growth. Representatives of the savings account holders, such as consumer-rights organization Idec, have said the estimates are inflated. 
The dispute is one of the most high-profile examples of how the complexity and the delays in the Brazilian legal system can hamstring business and finance. Analysts have said these types of cases harm confidence, stop companies from investing and make the economy less efficient and dynamic. 

It is also another test for the 11 justices of the Supreme Court, who have just emerged from one of the largest corruption trials in the country's history. They convicted 25 people for involvement in a scheme that bribed members of Congress in exchange for their votes on government-backed legislation during the administration of former President Luiz Inácio Lula da Silva. 
There is a two-step process for the holders of savings accounts. First, the Supreme Court must decide whether the economic plans in the 1980s and 1990s were constitutional. If the court finds they weren't, hundreds of thousands of Brazilians with savings accounts would be able to proceed with lawsuits in lower courts seeking compensation from the country's largest financial institutions. 
As so often happens in Brazil, the legal case has dragged on for nearly two decades in lower courts and has been on the Supreme Court's docket since 2010. Experts have said the cases could continue for many more years before banks have to pay out any money. 
It all began in February 1986, when the government froze everything from beef prices to rents to salaries and managed to bring down annual inflation to 76% from around 500%, albeit temporarily. Prices spiraled out of control again the following year. Six years and four economic plans later, inflation in 1993 hit 2,500%. 
Finance Minister Guido Mantega and central bank governor Alexandre Tombini have both been to the court to express their concerns about the consequences of a decision against the banks. Critics have said this is simply to pressure the court, and the justices have said they won't be swayed. 
"There is no telling what the liabilities from this judgment will be," said Justice Marco Aurélio Mello in an interview. "The judiciary isn't engaged in any government policy. If acts were committed against the constitution, the Supreme Court has to rule." 
Febraban said if the worst-case scenario materializes, banks would have to curtail spending to be able to build up cash piles with which to pay savers. The banks warn a reduction in credit could further damage an already weakened economy. Brazil is entering its fourth year of below-average growth, and the economy may even have contracted in the second half of 2013. The banks hope that threat could be enough to prevent the Supreme Court from ruling against them 
Febraban declined to comment on the figures in the new report. The banks were following government rules and aren't to blame for the problems, said Febraban Chairman Murilo Portugal. 
"Banks didn't profit from changes in the saving accounts," Mr. Portugal said in an interview. 
Analysts with investment bank Credit Suisse estimated the losses to Brazilian banks would be in the range of 8 billion Brazilian reais to 26 billion reais based on a report produced by São Paulo law firm Madrona Hong Mazzuco Sociedade de Advogados. Credit Suisse declined to comment for this article. 
A decision for the savers could be a burden for the government at a time when it is trying to cut back after years of spending to prop up the weak economy. Government-owned savings bank Caixa Economica Federal faces a bill for some 49 billion reais, according to the latest Febraban report. A CEF official who asked not to be named said the number could be much less, as the bank has already paid some customers. 
"Government-owned banks will be the hardest hit [by the lawsuits] and the government will have to inject resources in these banks," said Carlos Kawall, chief economist at Banco Safra. "It will have an impact on government finances." Banco Safra isn't involved in the suit. 
The consumer-advocacy group Idec argues that the overall cost would be much lower. Plaintiffs have died since the cases were first brought, and lower courts have narrowed the number of people with legitimate claims, said the group's director Marilena Lazzarini. 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Mais algumas para a serie "O Estado como principal fora-da-lei" - LuizFelipe Ponde

Estou fazendo uma "Auto-biografia (não-autorizada) de um Fora-da-Lei: uma história do Estado brasileiro", contando a história completa, na primeira pessoa, desse contraventor contumaz, geralmente contra a própria Constituição e contra as leis de modo geral.
Quem tiver mais histórias como estas relatadas por um jornalista não convencional (ou seja, não amante do Estado), pode me mandar.
Paulo Roberto de Almeida

Moral da história

Luiz Felipe Pondé
Folha de S.Paulo, 09/12/2013

Ouvir o texto
Hoje vou contar uns casos para você. Aproximam-se o Natal e o Ano-Novo, e sempre pensamos o que poderia ser diferente no Brasil. Eu, diferentemente daqueles que creem em modas como "consciência política" (para mim isso é uma coisa tão real quanto carma), espero que um dia o Brasil se livre de sua inhaca de ser um país no qual quem dá emprego é visto como bandido. Porque, ao contrário do que diz a moçada da "justiça social" (carma...), quem dá emprego é quem faz verdadeira justiça social.
Imaginem uma jovem empresária cheia de vida e fé no seu negócio. Isso aconteceu alguns anos atrás, hoje ela se transformou numa cética com relação ao valor da atividade do pequeno e médio empresário brasileiro, porque acha que só ingênuo e mal informado dá emprego no Brasil.
Um dia sua loja de produtos finos foi assaltada em plena luz do dia. Ela e sua sócia tiveram suas vidas ameaçadas. Vários talões de cheques da empresa roubados do cofre. Não tinha muito dinheiro em "cash", por sorte.
Na sequência, se inicia a via crúcis para cancelar os talões e fazer o BO. Horas em delegacias com funcionários que complicavam as coisas com clara intenção de, quem sabe, garantir um "extra".
Alguns dias depois, a dona de um pequeno restaurante fora de São Paulo liga para elas dizendo que um grupo grande de homens havia passado um cheque de sua empresa como pagamento de uma festa que eles tinham dado no restaurante dela. Nossa jovem empresária, prontamente, informa à mulher que a loja tinha sido assaltada, que esses talões estavam cancelados e que tinha a documentação necessária para comprovar o relato, e, portanto, sentia muito, mas o cheque não tinha qualquer valor.
Claro que a dona do pequeno restaurante não quis saber e "pôs elas no pau". Foram obrigadas a depositar em juízo. Quando da audiência, após apresentar toda a documentação, o juiz decidiu que sim, elas deveriam pagar o cheque.
Quando questionado em sua decisão (já que elas tinham sido vítimas de um assalto!), o juiz as ameaçou dizendo que, caso não aceitassem a decisão, o processo se alongaria e sairia mais caro para elas. Ao ser indagado acerca da injustiça que ele cometia ao obrigá-las a pagar por um gasto que não fizeram, o juiz soltou a pérola de costume: "As senhoras são ricas, podem pagar por isso".
Eis o juiz fazendo caridade com a grana alheia. Comunista gosta de distribuir o dinheiro dos outros. No Brasil, muitos juízes acham que devem fazer (in)justiça social com as próprias mãos.
Moral da história: as empresárias foram roubadas duas vezes, uma pelos ladrões, outra pelo Estado.

Outro caso. Funcionário rouba o patrão. Ele demite o funcionário por justa causa. Abre processo na Justiça comum contra o funcionário. O juiz do trabalho decide que o patrão deve pagar "todos os direitos trabalhistas" do funcionário sob alegação de que uma coisa é roubar, outra é ser demitido. Risadas? Claro, o juiz do trabalho argumentou que as duas Justiças "não se comunicam" e que os direitos trabalhistas são inquestionáveis.
A questão é: afinal, roubar não seria causa suficiente para você demitir alguém? O problema é que cá nestas terras demitir é crime. O Brasil é mesmo o fim da picada.
Moral da história: o empresário foi roubado duas vezes, uma pelo funcionário ladrão, outra pelo Estado.

Mais um. Jovem empresário de uma cidade em outro Estado faz uma reforma na fachada de sua loja. Fica muito bonita. Dias depois, roubam quase tudo dessa fachada.
No Brasil, tudo é roubável. A fachada fica destruída. Passados poucos dias, aparece aquele cara chamado "fiscal da prefeitura". O "amigo" avisa ao empresário que vai lhe passar uma bela multa, a não ser que ele seja razoável. O jovem empresário, munido da fé comum daqueles que creem que escândalos com fiscais é coisa rara, argumenta e apresenta documentação provando a destruição criminosa e o roubo. Não adianta, o "representante do bem público", leia-se, o fiscal, lhe apresenta uma multa enorme.
Moral da história: o jovem empresário foi roubado duas vezes, uma pelo ladrão, outra pelo Estado.
ponde.folha@uol.com.br
luiz felipe pondé
Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".