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quinta-feira, 11 de julho de 2019

Novo Dicionario do Itamaraty - Jamil Chade (UOL)

Novo dicionário do Itamaraty

Brasil tira de textos gênero e termos de consenso por 25 anos ao usar visão conservadora com base em religião

Jamil Chade Colaboração para o UOL, em Genebra, 10/07/2019

Não são raras as ocasiões em que diplomatas entram madrugada adentro negociando um texto de um acordo internacional. No centro da mesa, está o choque de interesses nacionais. Mas, no papel, aquela visão de mundo precisa ser traduzida em palavras. E nem sempre encontrar um consenso sobre o uso de palavras e termos na diplomacia é um trabalho fácil.
A realidade é que, em política externa, as palavras têm um enorme peso. Em 2002, num discurso diante dos novos formandos do Instituto Rio Branco, o então chanceler Celso Lafer já confirmava a relação entre a palavra e a atuação diplomática. "O poder da diplomacia é, em larga medida, o poder da palavra", disse. A turma que estava se formando ganhou o nome do filólogo Antonio Houaiss.
Consciente do peso das palavras para redesenhar uma visão de mundo, a nova administração do Itamaraty sob governo de Jair Bolsonaro (PSL) já imprimiu seu próprio vocabulário nos últimos seis meses e distribuiu orientações aos postos do Brasil pelo mundo sobre o que dizer. E, acima de tudo, o que não dizer.
Pelas embaixadas do Brasil espalhadas em diferentes continentes, o novo "dicionário" da diplomacia brasileira abandona palavras usadas por décadas, introduz novos termos, resgata formulações do passado e, assim, traduz em um novo léxico uma visão de mundo muito particular do chanceler Ernesto Araújo, dos discípulos do escritor Olavo de Carvalho e de grupos evangélicos mais conservadores.
Uma visão que tenta reverter um suposto "marxismo cultural", que, na visão do chanceler, teria passado a também influenciar as entidades internacionais e a diplomacia.
Parte do movimento em busca das novas palavras é informal, com diplomatas tentando se adaptar à nova ideologia de seus chefes. Mas outra parte da criação desse novo léxico é consciente e estrategicamente pensada.
Não demorou para que embaixadores começassem a receber, em telegramas, instruções precisas sobre as palavras que deveriam sumir.
Fábio MachadoFábio Machado

Palavra "gênero" incomoda o Brasil

No início de julho, o Brasil surpreendeu a muitas delegações na ONU ao exigir que o termo "gênero" fosse abolido dos textos de resoluções de diferentes assuntos. Pelo novo dicionário do Itamaraty, o termo deve ser substituído pela frase "igualdade entre homens e mulheres". A meta é simples: reivindicar que o que vale para o Brasil é o sexo biológico, e não sua construção social.
Um exemplo prático: a ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, participou de um debate sobre igualdade de gênero em Nova York. Em seu discurso, preferiu a formulação "igualdade entre homens e mulheres".
Num texto que serve como base para a candidatura do Brasil a mais um mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU, por exemplo, o Itamaraty não faz qualquer referência à palavra "gênero" ao explicar o que será sua luta ao promover o direito das mulheres.
Segundo o texto, o Brasil tomará "como premissa o texto constitucional brasileiro que estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações".
O Brasil tenta explicar a mudança. "O governo tem buscado esclarecer seu entendimento sobre expressões e termos que considera ambíguos", apontou a chancelaria ao UOL em nota. "O entendimento de que 'gênero' é sinônimo de sexo masculino ou feminino baseia-se na igualdade entre mulheres e homens, conforme estabelecido pela Constituição Federal, a qual não cita o termo 'gênero'."

O Itamaraty também afirma que o governo continua comprometido com o fortalecimento dos direitos humanos das mulheres e a eliminação da violência, além defender os direitos homossexuais. "Nos foros internacionais em que atua, o Brasil tem igualmente defendido os direitos de pessoas LGBTI+. O país integra as principais iniciativas internacionais em defesa dos direitos de pessoas LGBTI+ na AGNU [Assembleia Geral das Nações Unidas], CDH [Comissão de Direitos Humanos] e OEA [Organização dos Estados Americanos], entre outros foros", disse.
Inconformados, diversos países ocidentais lembraram que, hoje, existem mais de 200 documentos oficiais, tratados e leis que citam explicitamente o termo "gênero". Um abandono da palavra significaria um retrocesso de 25 anos nos debates.

Veto a "direitos sexuais"

Na mesma linha, o Brasil passou a vetar o uso do termo "direitos sexuais e reprodutivos", já que a interpretação seria de que a frase abriria uma brecha para o reconhecimento do aborto. Há uma semana, no Conselho Econômico e Social da ONU, o Brasil se absteve em votações de resoluções que apresentavam tais palavras.
Ao se explicar, o governo indicou ao UOL que a "posição brasileira tem como base o princípio da inviolabilidade da vida, sempre de acordo com a legislação brasileira". "Portanto, o governo não favorece referências em documentos internacionais que possam imprimir conotação positiva ao aborto", disse a chancelaria, reforçando que o aborto é ilegal no país, não sendo passível de punição em três casos (risco de vida da mãe, estupro e anencefalia).
Fábio MachadoFábio Machado

Feminismo? Só se acompanhado por grupos religiosos

Entre delegações estrangeiras, surpreendeu ainda uma manobra feita pela diplomacia brasileira na ONU para tentar tirar de textos oficiais referências a "grupos feministas". Para que tal termo fosse mantido em um dos projetos de resolução, o Itamaraty exigiu que outro grupo também fosse reconhecido como tendo contribuído para a situação das mulheres: os grupos religiosos.
Numa das reuniões para debater um projeto de resolução da ONU, o Brasil ainda fez questão de que se retirasse do texto uma afirmação de que barreiras estabelecidas pelas religiões poderiam ser barreiras à defesa das mulheres. O ponto é que a religião jamais será um obstáculo.
A defesa da fé, porém, se choca com uma realidade já descrita em informes da ONU em que meninas pelo mundo acabam tendo seus direitos minados por conta da interpretação de preceitos religiosos ou de tradições locais. Ou mesmo de suas manipulações.
A manobra do Brasil foi duramente criticada nos bastidores da ONU, com delegações acusando o governo de estar "chantageando" os demais países.
Entre diferentes delegações europeias, fazer referências a grupos religiosos é considerado como um risco, já que esses termos em resoluções poderiam ser usados por países islâmicos como uma forma de limitar os direitos de mulheres.
Segundo os europeus, o Brasil sabe da resistência que existe pela inclusão do termo "grupo religioso" e interpretaram o gesto como uma forma de bloquear as referências a "grupos feministas" em resoluções da ONU.

Mais "soberania", menos "global"

Não foram só as questões relacionadas a mulher ou sexo que passaram a ser alvos do novo "dicionário" diplomático brasileiro.
Muitos dentro do Itamaraty apontam que o início da transformação no vocabulário da chancelaria se deu quando, de forma surpreendente, o Itamaraty renomeou seus departamentos. Um deles ganhou o nome de Secretaria de Assuntos de Soberania Nacional, o que agrupa as divisões que estavam antes sob a Subsecretaria de Política Multilateral.
Sob o termo "soberania" agora estão temas como direitos humanos e outros aspectos sociais. Entre parte dos diplomatas, a mudança foi interpretada como um sinal de que, nos fóruns multilaterais, o foco do Brasil será o da defesa do interesse nacional e da soberania. E não dos desafios globais.
A mudança não ficou apenas na placa da porta do gabinete dentro do palácio do Itamaraty. Aos poucos, essa mudança foi se transformando em um novo comportamento do governo em reuniões.
Uma das consequências foi a decisão de se evitar a palavra "global" em textos oficiais, em resoluções e em discursos em nome do Brasil.
Sua eliminação dependeria do contexto. Numa das resoluções sob debate na ONU, o termo "desafios globais" seria trocado por "desafios em comum".
A ideia é que não existem realidades globais, mas apenas desafios que seriam comuns a todos. Na prática, o Brasil mantém seu espaço soberano e evita aderir a princípios e padrões universais.

Questionando o "globalismo"

Tampouco o Itamaraty gosta da ideia de que os discursos de seus diplomatas tragam o termo "sistema internacional". Sempre que possível, os representantes nacionais terão de dar um enfoque no papel dos Estados soberanos. Portanto, "sistema internacional" se transformaria em "sistema de nações" ou simplesmente "Estados-membros".
A ofensiva tem um motivo claro e que, neste caso, não tem relação com a religião. No Itamaraty, uma das dimensões da política externa tem sido o questionamento ao que chamam de "globalismo". O conceito se refere supostamente a um projeto político de um governo global.
Na visão do governo brasileiro, tal proposta é uma afronta à soberania e às culturas nacionais.
Há poucas semanas, a chancelaria chegou a promover um seminário para debater essa vertente de pensamento. Ernesto Araújo, chanceler e discípulo de Olavo de Carvalho, também mantém um blog "contra o globalismo".
A vertente da diplomacia também mudou. O termo tão badalado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva --"a cooperação Sul-Sul"-- também é visto com certa suspeita na atual gestão.
Por anos, tal conceito demonstrava uma certa postura de resistência de parte dos países emergentes em relação ao poder e influência dos países ricos. Hoje, a preferência é por termos como "cooperação entre nações".

Brasil fora de exercícios diplomáticos

Em alguns outros casos, há um temor por parte da sociedade civil de que haja uma resistência por parte de alguns postos da diplomacia brasileira em fazer referências à "Agenda 2030", uma série de metas que os governos assumiram para os próximos dez anos no âmbito social e ambiental.
O governo afirma que "o Brasil não deixou de empregar os termos Agenda 2030 e desenvolvimento sustentável, tampouco se dissociou do documento".
"No nível do governo federal, a institucionalidade de acompanhamento e implementação da Agenda 2030 tem passado por revisão, de forma a aprimorar as políticas de desenvolvimento sustentável no Brasil", explicou o Itamaraty, indicando que país participará do Foro Político de Alto Nível deste ano, na sede das Nações Unidas, em Nova York.
Mas, num gesto pouco comum na diplomacia, o governo brasileiro se retirou da revisão de suas políticas públicas no setor social e ambiental que ocorreria justamente durante o Foro Político em Nova York, nesta semana.
Um dos argumentos usados pelo Planalto para explicar o gesto a interlocutores é que a Presidência de Jair Bolsonaro não iria participar de um exercício diplomático com base em resultados de governos anteriores.
Na ONU, porém, esses resultados não são considerados como dados ou políticas de um governo, e sim de Estado. Além disso, a sabatina não avalia apenas o que foi feito. Mas também os programas que estão sendo estabelecidos para reduzir pobreza, doenças e situações de violações de direitos pelos próximos dez anos.
A Revisão Voluntária Nacional na Assembleia Geral da ONU tem como objetivo avaliar e monitorar o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030 por parte de um Estado. Entre os assuntos que seriam examinados estão educação, meio ambiente, saúde, acesso a terras, fome e outros aspectos sociais.
Numa nota, o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 e a Rede ODS Brasil, grupo de ONGs com foco no acompanhamento os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, repudiaram a atitude do governo e cobram responsabilidade.
"Externamos nossa preocupação com o afastamento, cada vez maior, do compromisso que o Estado brasileiro assumiu em 2015, junto com outros 192 países-membros da ONU, de implementar um modelo de desenvolvimento voltado à prosperidade, com respeito às pessoas e ao planeta, orientado pela paz e viabilizado através de parcerias multissetoriais inclusivas, que resultem em serviços acessíveis e de qualidade para todos", disseram os grupos.
Nos últimos meses, vários incidentes marcaram a relação entre o Brasil e a ONU, inclusive o cancelamento de eventos de meio ambiente. "Tal desistência é mais uma prova do rechaço às instituições multilaterais como a ONU", alertaram.
O Itamaraty explicou sua decisão, dizendo que a apresentação dos relatórios é voluntária. "É, portanto, de livre escolha dos países a decisão de apresentar um RNV [relatório], bem como o ano de apresentação, seu conteúdo e formato. Encoraja-se que, até 2030, os países apresentem ao menos dois RNVs", explicou.

Liberdade para alguns

Mas nem todo o léxico do Itamaraty hoje busca desafazer anos de progressos na ampliação de direitos. No caso específico da Venezuela, os discursos do Brasil na ONU passaram a falar da necessidade de uma ação para "libertar" o povo venezuelano de uma ditadura.
Tal termo não vale para a Arábia Saudita e seu príncipe Mohamed Bin Salman, com quem Eduardo Bolsonaro esteve fazendo selfies, além de ser acusado de envolvimento na morte do jornalista Jamal Khashoggi e de conduzir uma repressão violenta em seu país.
Os mesmos sauditas que são um dos poucos que apoiam a agenda ultraconservadora e o novo dicionário da nova diplomacia brasileira.

Opinião: última mudança tão dramática aconteceu pós-1964

Ex-ministro e embaixador Rubens Ricúpero escreve artigo

Em diplomacia, a precisão e o sentido das palavras são fundamentais. Basta lembrar a importância que teve na época de Jânio Quadros e de San Tiago Dantas a expressão "política externa independente", na qual o adjetivo "independente" contrastava com a política externa anterior do "alinhamento automático".
Outras palavras que até hoje resumem um pensamento complexo foram as da célebre expressão "congelamento do poder mundial", inventada pelo diplomata e ministro de João Goulart [1961-64] Araújo Castro para definir a estrutura de poder imposta pelas superpotências.
Ou, em sentido positivo ou negativo, a utilização de lemas breves com a intenção de resumir o espírito de uma política, tal como o "pragmatismo responsável" de Geisel-Silveira ou a "política externa ativa e altiva" de Lula-Celso Amorim.
Nos dias atuais, quem não tiver sensibilidade para utilizar expressões como "desenvolvimento sustentável" ou "igualdade de gêneros" escolhe voluntariamente a automarginalização, a situação de pária em relação à esmagadora maioria da humanidade.
Creio que a última vez em que ocorreu uma mudança tão dramática de linguagem na diplomacia brasileira foi justamente logo depois do golpe militar de 1964.
De uma política externa independente, que recusava a lógica do automatismo do alinhamento da Guerra Fria e valorizava a soberania e o interesse nacional, passou-se subitamente ao uso de palavras e expressões como "soberania limitada", "fronteiras ideológicas", "força interamericana de paz" (para as intervenções) e a famigerada expressão de Juracy Magalhães "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil".
Até hoje, os adeptos desse tipo de política tentam explicar o sentido dessa infeliz expressão.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

"O que ocorre atualmente no Brasil?", perguntam na ONU - Jamil Chade

Jamil Chade sobre diplomacia brasileira em Genebra: foi um profundo constrangimento

O jornalista Jamil Chade, que há 20 anos percorre os corredores da ONU e de outras entidades internacionais, em um relato contundente afirmou que o que viu nesta quinta-feira (27) nas salas de reunião das Nações Unidas, em Genebra, é diferente de tudo o que havia visto em duas décadas. "O que presenciei foi um profundo constrangimento"

41 Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra
247 - O jornalista Jamil Chade, que há 20 anos percorre os corredores da ONU e de outras entidades internacionais, em um relato contundente afirmou que o que viu nesta quinta-feira (27) nas salas de reunião das Nações Unidas, em Genebra, é diferente de tudo o que havia visto em duas décadas. "O que presenciei foi um profundo constrangimento", escreveu no Uol.
Crítico dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, Chade conta que nos tempos petistas havia uma "coerência mínima" em relação à tradição da diplomacia nacional, que respeitava a lógica que remontava ao DNA da diplomacia de Rio Branco. "A soberania seria defendida por meio do fortalecimento da paz, pelo diálogo e da defesa irrestrita do sistema multilateral. E não por sua destruição", escreveu.
Chade diz que hoje o Brasil abriu mão dessa tradição e levou à política externa valores ultra-conservadores do grupo no poder, passando a colocar em prática uma diplomacia "ideológica-religiosa" que, segundo o jornalista, "passou a minar o consenso até mesmo dentro do Ocidente".
Jamil conta que nos últimos dias, os diplomatas brasileiros receberam instruções de Brasília para vetar nos textos e resoluções da ONU qualquer uso da palavra "gênero", para atacar questões específicas relacionadas à religião e também o conceito de direitos reprodutivos, incluindo aí "qualquer referência nos textos que eventualmente pudesse dar brecha a uma suposta análise positiva do aborto". Em tempo: nenhuma resolução defendia o aborto, "isso estava apenas na forma pela qual o governo brasileiro as interpretava".
Com isso em vista, "enquanto os diplomatas brasileiros pediam a palavra e começavam a listar os vetos sobre os trechos das resoluções, o que se via na sala era uma mistura de espanto, ironias e incompreensão por parte das delegações estrangeiras", contou o jornalista.
Chade citou um representante do Uruguai, que não disfarçava o susto, e dois da UE: um ria e outro suspirava diante do que escutava. Os delegados trocavam impressões sobre como reagir ao Brasil por mensagens de telefone, conta Chade, enquanto os diplomatas "colocavam as placas com o nome de seus países para que pudessem intervir, contra as propostas brasileiras".
Entre as ongs, "os comentários beiravam a revolta".
Nem mesmo Chile e Israel, dois novos aliados de Bolsonaro, "toparam a guinada brasileira ao obscurantismo e fizeram questão de pedir a palavra para dizer que não aceitavam o que o Brasil sugeria". 
Para o jornalista, um diplomata europeu comentou que o regime de Duterte afirma que os brasileiros "estão com eles em uma resolução para impedir que os massacres nas Filipinas sejam investigados".
Quando achou que já tivesse visto de tudo, Chade contou que enquanto deixava a sede da ONU, uma relatora especial da entidade o segurou pelo braço e perguntou: o que está ocorrendo no Brasil?

quarta-feira, 26 de junho de 2019

República Islâmica do Brasil? Pode ser... - Jamil Chade

Brasil se abstém em voto sobre saúde sexual e reprodutiva na ONU

Jamil Chade
UOL notícias, 26/06/2019
O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, com o secretário de Estado americano Mike Pompeo em Washington (ERIC BARADAT/AFP)
Novo posicionamento do Brasil sobre temas sexuais, reprodutivos e de gênero cria choque com velhos aliados e, ironicamente, deixa o país mais próximo de governos islâmicos.
 GENEBRA – O governo de Jair Bolsonaro se absteve nesta quarta-feira na votação de trechos de uma resolução da ONU que falava da necessidade de garantir "saúde sexual e reprodutiva" a pessoas afetadas por crises humanitárias. A iniciativa por tentar derrubar tais referências foi do governo de Donald Trump, sem sucesso.
A resolução debatida no Conselho Econômico e Social da ONU se referia a um fortalecimento da coordenação dos trabalhos humanitários internacionais. O UOL apurou que a Casa Branca fez uma pressão importante para obter o apoio do Brasil e, pelo menos, evitar que o Itamaraty apoiasse a proposta original.
O voto ocorreu no mesmo dia em que o jornal Folha de S. Paulo também revelou que diplomatas brasileiros receberam nas últimas semanas instruções do Itamaraty para que, em negociações em foros multilaterais, reiterem "o entendimento do governo brasileiro de que a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino".
O debate vem em meio a uma ofensiva do atual governo para desfazer algumas das posições tradicionalmente tomadas pelo Brasil nos últimos 18 anos. Uma das principais delas se refere ao termo gênero, considerado dentro de parte do governo como uma "construção social".
Mas a transformação da posição do Brasil nos organismos internacionais vai além. Se por alguns meses um debate claro foi travado dentro do governo brasileiro sobre como se comportar em votos nas entidades, a consolidação da posição mais conservadora passou a vigorar nas últimas semanas. E foi amplamente notada por governos estrangeiros e ongs.
Um dos exemplos ficou claro na votação desta quarta-feira. Num dos trechos da resolução, o texto falava da necessidade de garantir acesso a pessoa vítimas de crises humanitárias para serviços de "saúde sexual e saúde reprodutiva".
Por insistência do governo americano, porém, um texto alternativo foi apresentado, pedindo apenas que "apoio de saúde para salvar vidas" fosse garantido. O temor dos americanos era de que a frase original daria espaço para políticas pró-aborto.
O novo texto ainda alerta que o aborto não faz parte do direito internacional, ainda que se reconheça que existam países com leis domésticas neste sentido.
"A ONU não pode promover o aborto e nem novos direitos reprodutivos e sexuais", explicou a delegação americana, ao sugerir a emenda ao texto original.
Num segundo trecho da mesma resolução, outra vez um veto a uma referecia à necessidade de que as organizações humanitárias da ONU garantam serviços básicos para populações afetadas, entre eles serviços para assegurar "saúde sexual e saúde reprodutiva".
Em seu lugar, entram referências como "saúde materna, assim como planejamento familiar voluntário e outras opções para evitar o abordo".
Votaram pela ideia americana apenas dois países. Outros nove optaram por se abster, entre eles Rússia, Egito, Paquistão, Bielorrúsia e Quênia, além do Brasil.
Mas votaram contra a proposta americana 30 países diferentes, entre eles Uruguai, Venezuela, Coreia, Romênia, Paraguai, Filipinas, Mali, Malta, Mexico, Marrocos, Holanda, Noruega, India, Irlanda, Japão e Luxemburgo.
Explicação
Ao explicar o voto de abstenção, o governo brasileiro indicou na ONU que estava de acordo com a posição do governo americano de que os conceitos no artigo não eram alvos do direito internacional e que não tinham seu escopo definido. "Nossa preferência, portanto, seria por eliminar essas expressões", disse a diplomata.
Mas, ao mesmo tempo, apoiar o texto americano acabaria ferindo as leis domésticas do país. A proposta também seria contrária às políticas públicas de acesso à saúde no Brasil. "Portanto, vamos os abster", disse.
A Romênia, em nome da UE, criticou a iniciativa dos EUA. Num discurso, o bloco indicou que "lamenta profundamente" a emenda americana e diz que ela rompia um tradicional consenso sobre essa resolução. Canadá, Austrália, Reino Unido e Nova Zelândia também insistiram na necessidade de que direitos reprodutivos e sexuais sejam garantidos.
Com a derrota do projeto americano, o Brasil acabou também se abstendo ao ser questionado se aceitaria manter o parágrafo original, que falava explicitamente de direitos reprodutivos e sexuais. Uma vez mais, a posição do Brasil foi derrotada.
Na sala, ao ver o martelo bater para aprovar a resolução final sem voto, muitos aplaudiram. Mas a representante brasileira na sala não seguiu o aplauso geral.
Após a votação, o Brasil voltou a pedir para explicar sua posição. Apesar de se aliar ao consenso final da resolução geral sobre a questão humanitária, o governo de Bolsonaro indicou que se "desassocia" dos parágrafos referentes a saúde sexual e reprodutiva.
Surpresa 
O caso da votação deixou os europeus e outros países surpreendidos com a posição brasileira. Mas o caso não é isolado. Há poucos dias, delegados de um país membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU pediram a cooperação do Brasil para fazer uma declaração conjunta sobre temas sociais num dos seminários na sede das Nações Unidas.
Os diplomatas prepararam um texto e submeteram aos diplomatas brasileiros para sua consideração. Mas quando o texto voltou, os negociadores estrangeiros levaram um susto. Ao abrirem o arquivo num email, os termos "igualdade de gênero" tinham sido cortados pelo Brasil.
Os diplomatas estrangeiros, que pediram para não ser identificados, se recusaram a aceitar as sugestões de alteração propostas pelo Brasil e decidiram ir adiante com a declaração ignorando a postura do Brasil.
Mas, para os governos de outros países, o caso escancarou a guinada tomada pelo governo de Jair Bolsonaro nos bastidores da diplomacia internacional. Hoje, como parte dos resultados da posição brasileira, a América Latina já não tem uma posição comum sobre temas de igualdade e mesmo sobre saúde reprodutiva.
No lugar de "igualdade de gênero", todos os discursos e resoluções apoiadas pelo Brasil devem agora mudar o termo para "igualdade entre homens e mulheres". No fundo, trata-se de uma orientação sobre determinações biológicas, o que não tem sido apoiado por outros governos ocidentais.
Recentemente, em Nova Iorque, equipes do ministério de Direitos Humanos fizeram discurso em debates, mas sem mencionar o termo "igualdade de gênero". O novo formato: "igualdade entre homens e mulheres".
Na Organização Mundial da Saúde, em maio, o Brasil já também se alinhou ao grupo de países mais conservadores, e muitos deles islâmicos, ao falar de direitos reprodutivos.
Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, se reúne nesta semana para tratar de crimes e violações
Teste
Mas um outro grande teste da nova posição brasileira vai ocorrer nas próximas semanas. No Conselho de Direitos Humanos da ONU, duas resoluções foram propostas e que citam amplamente temas relacionados a gênero.
O Canadá tabulou um texto sobre violência contra as mulheres, enquanto o México lidera uma resolução para combater a discriminação contra a mulher. O problema: os dois textos estão repletos de menções consideradas como indesejadas pelo governo brasileiro.
No texto canadense, por exemplo, existem várias referências à "igualdade de gênero". Há ainda trechos que abrem brechas para o aborto. "Direitos Humanos incluem o direito de ter controle e decidir livremente e de forma responsável sobre assuntos relacionados com sexualidade, à saúde sexual e reprodutiva livre de coerção, violência, e integridade do corpo e autonomia", diz o rascunho do texto, obtido pelo UOL.
Num outro trecho, mais uma polêmica. O texto cita a necessidade de defender "direitos sexuais". Mas, para o Brasil, existem apenas "direitos reprodutivos".
Consultados pelo UOL, diplomatas de países europeus lamentaram a guinada brasileira. O temor é de que, pelo peso do país, a nova posição comece a influenciar outros países menores a votar da mesma forma, minando uma tendência dos últimos 20 anos de ampliar direitos, e não reduzi-los.
Falando na condição de anonimato, diplomatas ocidentais ainda alertaram como a nova posição do Brasil pode, no fundo, dar um apoio decisivo para o grupo de países islâmicos.
Por anos, esses países tentaram encontrar mais apoio para frear uma agenda mais progressista no que se refere aos direitos sexuais e da situação da mulher. Mas não tinham votos suficientes.
Agora, sem uma voz ativa do Brasil neste sentido, o temor é de que um silêncio do Itamaraty deixe o espaço aberto para que os islâmicos acabem prevalecendo com sua visão e que, em alguns pontos, haja uma "irônica coincidência de posições".
No caso da resolução mexicana, diplomatas estrangeiros confirmaram que, por enquanto, o Brasil não se pronunciou. Mas o país latino-americano confirmou que, na única menção ao termo "gênero" no texto, governos como o do Egito, Bahrein e Rússia já solicitaram sua eliminação da resolução como condição para que ela seja aprovada por unanimidade.
Visões Diferentes
O UOL esteve nos debates sobre cada um dos artigos da resolução e presenciou um racha profundo entre diferentes visões de mundo.
Num trecho contestado pelo Paquistão, a diplomata do país com maioria muçulmana explicou que, em sua cultura, os homens sempre deixam as mulheres entrar primeiro em um ônibus. "Não quero perder isso", disse.
Mas ela foi rebatida por um delegado mexicano, contrário à ideia de que tais medidas signifiquem que existe uma igualdade entre homens e mulheres na sociedade. Para o latino-americano, tal gesto pode ser um sinal ou de que os homens consideram as mulheres como sendo mais frágeis ou simplesmente fazem isso para poder olhar de forma maliciosa para as mulheres subindo as escadas do veículo.
Num outro trecho do debate, os governos da Arábia Saudita, Paquistão, Egito e Irã pediam que o Canadá retirasse de sua resolução sobre a violência contra a mulher uma referência à necessidade de se ter uma educação sexual compreensiva.
O Bahrein também se pronunciou. "Não vemos motivo para colocar isso numa resolução de violência contra mulher", disse.
Em resposta, o governo da Argentina saiu ao apoio da educação sexual como forma de frear a violência contra a mulher. "Muitos não sabem nem o que é sexo consensual", disse a diplomata de Buenos Aires durante o encontro.
Reações
A posição do Brasil também é alvo de preocupação de ongs e ativistas. "Se antes o Brasil era visto como um negociador sério, cujas posições tinham peso nos debates em esferas como a ONU e OEA, ver nossos diplomatas defendendo posições atrasadas como vincular gênero ao sexo biológico reduzirá demasiadamente a relevância internacional de nossa diplomacia", disse Camila Asano, coordenadora de programas da Conectas.
"Estaremos com países párias que usam espaços em prol dos direitos humanos para miná-los? A ministra Damares Alves anunciou no início do ano que o Brasil é candidato à reeleição ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. Uma postura como essa do Itamaraty vai na contramão do que se é esperando de um país com tais aspirações", completou Camila Asano.
Gustavo Coutinho, advogado e secretário de Política Sobre Drogas da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), também critica a posição brasileira.
"A posição de entender gênero como sexo biológico vai contra a Constituição Federal e ao entendimento do Supremo Tribunal Federal na ADI 4275", disse. "O STF já reconheceu o direito à autodeterminação de gênero, desconstruindo um paradigma biologizante e patologizante", declarou.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Cem dias que mudaram a posicao do Brasil no mundo - entrevista com Rubens Ricupero (Jamil Chade)

Depois da enorme entrevista concedida à Unisinos (vejam mais abaixo, ou neste link:   https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/04/rubens-ricupero-entrevista-para.html), o embaixador Rubens Ricupero concede mais uma grande entrevista ao excelente jornalista que é Jamil Chade. Todas as frases ressaltadas integram sequencialmente o teor da entrevista.
Como no caso da sua palestra na Casa das Garças e no Cebri, em 25 de fevereiro (que coloquei neste mesmo blog, neste link:   https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/02/rubens-ricupero-palestra-sobre-politica.html), esta entrevista aborda todas as questões relevantes pertinentes tanto à diplomacia quanto à política externa do Brasil.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de abril de 2019

100 dias que mudaram a posição do Brasil no mundo...
Jamil Chade
10/04/2019 04h00
Em entrevista ao blog, o ex-ministro Rubens Ricupero faz uma avaliação completa da nova diplomacia do País e alerta: uma "política externa de destruição" pode levar o Brasil a uma situação de pária internacional.
GENEBRA – "É triste ter de admitir que o Brasil tem hoje um presidente que não é apresentável em quase nenhuma capital, talvez nem mesmo nessas que visitou". O alerta é de Rubens Ricupero, um dos embaixadores mais respeitados do Brasil no exterior e referência da excelência da diplomacia brasileira nos órgãos internacionais.
O embaixador foi ministro do Meio Ambiente e Ministro da Fazenda, ocupou o cargo de embaixador do Brasil nos EUA e foi o secretário-geral da Conferência da ONU para o Desenvolvimento e Comércio.
Em entrevista ao blog, o diplomata faz uma ampla análise dos cem primeiros dias do governo. Mas não esconde a insatisfação e a preocupação com os rumos da política externa do governo Bolsonaro.
"A situação do Brasil hoje em dia, em termos de prestígio diplomático, aproxima-se do seu ponto mais baixo", disse. "Não vai demorar para colhermos as consequências quando tivermos de nos candidatar a algum posto em organismos internacionais ou quando o país começar a ser criticado por causa de violações de direitos humanos e meio ambiente. Vamos descobrir nessa hora que estamos praticamente sozinhos e ninguém virá em nosso auxílio", alertou.
Para ele, "o que estamos vendo é só o começo". Questionado se existia o risco de o Brasil se transformar em uma espécie de pária internacional, ele não afastou tal possibilidade. "Estaremos em marcha batida nessa direção se continuarmos na linha de levar às últimas consequências a atitude deste governo de enfraquecimento e erosão progressiva dos direitos humanos, do meio ambiente, da proteção dos povos indígenas", disse.
"Hoje em dia, o que caracteriza um governo admirado, merecedor de prestígio internacional, é seu comportamento nos domínios que integram o conjunto de aspirações da humanidade: direitos humanos, meio ambiente, promoção de igualdade entre mulheres e homens, tolerância e respeito pelas minorias, combate à desigualdade social e racial. Cada sociedade será julgada em última instância pela maneira como trata seus membros mais frágeis e vulneráveis", disse.
Ricúpero ainda qualifica o chanceler Ernesto Araújo de "uma figura menor que, de repente, se viu alçado a essa posição, graças a ligações que tem com Eduardo Bolsonaro, com o ideário esdrúxulo e excêntrico do presidente". "Cabe a ele muita responsabilidade na desmoralização e perda de poder do Itamaraty", disse.
O embaixador tampouco poupa a aproximação do Brasil ao EUA. "Bolsonaro e o chanceler Araújo atribuem a Trump um papel de defensor dos valores cristãos que nem o próprio presidente americano se atribui a si mesmo. É preciso ser cego pela ideologia ou ter muita ingenuidade para crer que um homem sem valores morais ou princípios ético como Trump possa ser o defensor de valores que viola a cada momento", disse.
Eis os principais trechos da entrevista, feita em colaboração com Yara Solenthaler:
Como o sr. avalia os primeiros cem dias da política externa brasileira sob o governo de Bolsonaro?
Ricupero – A política externa é inseparável do conjunto da obra, da política interna e da política econômica, social e cultural. Tudo faz uma unidade. Eu não acredito na possibilidade de isolar um setor e dizer: olha esse setor se salva e o resto é uma banda podre. Na verdade os governos são uma unidade. Por isso que eu acho que quando se avalia a política externa, é bom nunca perder de vista o que está acontecendo no resto. Esse início de governo, sem dúvidas nenhuma, é um dos piores de que se tem memória em toda história da república, talvez o pior em termos de confusões, de escolhas inadequadas, de dificuldade de articulação.
Tanto assim, que eu vejo sintomas já de deterioração do poder que são graves. Ao meu ver, tanto aquela decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o inquérito e a justiça eleitoral, e mais recentemente essa manifestação, que eles mesmos promoveram, de desagravo ao Supremo de um lado, como de um outro lado a súbita aprovação na Câmara e no Senado daquela emenda sobre o Orçamento, são sinais claros de que os dois outros grandes poderes, o Judiciário e o Legislativo, sentiram que o centro, quer dizer o poder, está se esvaindo. E isso é grave porque esse tipo de fenômeno pode acontecer quando um governo já está muito desgastado, quando passam anos de percalços, mas que eu saiba nunca aconteceu na história num governo que mal completou três meses. Então é um sinal muito grave porque este tipo de coisa está no ar. Você capta no ar. Eu acho, pessoalmente, de difícil reversão.
Por quê?
Não são fenômenos isolados. Eles têm que ser tomados em conjunto com outros fenômenos, como a queda muito brusca da popularidade dele em alguns setores, por exemplo da população que ganha até cinco salários mínimos, que foi no final decisivo na eleição, ele chegou a cair 18%. Então eu acho que isso, e sobretudo o quadro de fundo de uma economia que não mostra sinais de reação, ao contrário do que se esperava desde o ano passado, que ela ia começar a mostrar um vigor crescente neste ano, isso não está sucedendo.
O primeiro trimestre foi muito ruim, e inclusive o primeiro trimestre já manifesta os primeiros sinais de deterioração na única área que era mais saudável da economia brasileira que era a área externa.
As exportações estão caindo e o comércio internacional também está crescendo muito menos do que se imaginava. A própria OMC previu só 2,6% de expansão este ano. Então eu acho que se você tomar tudo isso em conjunto, é um quadro complicado. E não se pode abstrair a política externa desse quadro.
Mas o sr. considera que a diplomacia brasileira está agindo para corrigir essa queda internacional do comércio?
Eu acho que a política externa agrava o quadro do comércio exterior porque ela tem as prioridades erradas, ela antagoniza os países que deveriam ser prioritários em matéria de exportação, então ela tanto afeta no sentido de crescente deterioração do quadro, como ela também é influenciada por todos esses fatores: perda de apoio interno e o crescente sentimento de que o governo não está dando certo.
Em termos de política externa, qual a marca que o sr. considera como sendo a principal neste início de governo?
Me impressionou muito que na viagem a Washington, naquele jantar na embaixada, quando o presidente disse uma frase muito impressionante, que aliás se coaduna com tudo o que ele tem feito antes e depois de eleito. Ele disse: "o Brasil não é um terreno livre onde nós podemos construir alguma coisa em benefício do povo brasileiro. O Brasil é um terreno em que nós precisamos desconstruir muita coisa." Eu vejo nessa frase um grande poder explicativo do que ele representa.
Ele não tem ideias, não tem projetos. E ele vê o papel dele mais como um papel de destruir o que outros, na opinião dele, erroneamente fizeram. Então você vê, isso se aplica a tudo e em particularmente na política externa.
Eu acho que a política externa do Bolsonaro poderia ter até como epígrafe essa frase, porque é uma política externa em que não há nenhum discurso construtivo. Se você procurar, por exemplo os outros governos, em geral o discurso de posse do presidente, que era no Congresso, já tinha um capítulo grande sobre a política externa. Ele fez uns discursos inexpressivos. Na mensagem ao Congresso, só há uma apresentação inicial dele de algumas páginas, e nessa apresentação aparece a frase que "o Brasil há décadas vêm sofrendo o efeito da destruição dos valores da civilização judaica-cristã". Ele usa essa expressão "décadas e décadas", porque inclui nisso o Fernando Henrique Cardoso, não é só o PT, é tudo que se fez antes, a social-democracia. Esse tipo de coisa, ao meu ver, explica muito a política externa, porque é uma política externa de desconstrução, de destruição.
De que forma?
É uma política externa de ruptura com o que vinha se fazendo antes, porque, apesar das diferenças que havia, compreensíveis, entre Lula e Fernando Henrique, a política externa brasileira era, no fundo, sempre a busca de autonomia. Busca de autonomia por participação, o PT de uma maneira mais ideológica, mas todos os governos não queriam mais voltar àqueles períodos do passado em que o Brasil se via como um caudatário, um aliado dos Estados Unidos. Um aliado menor, secundário, sem importância. Agora existe, de fato, uma ruptura, surge claramente um novo paradigma. Esse novo paradigma aparece com muita clareza em dois aspectos: nas ações e nas omissões. Tanto naquilo que o novo governo fez, como naquilo que nem mencionou ou então naqueles projetos que anunciou e depois não levou avante.
Em cem dias, o que foi feito em diplomacia e o que deixou de ser feito?
Começo por aquilo que Bolsonaro anunciou e depois não fez. Em primeiro lugar a notícia surpreendente, de que o Brasil ia oferecer bases militares aos Estados Unidos, logo depois do encontro do Bolsonaro com John Bolton. Isso é um absurdo total. Tanto assim que os militares reagiram e a ideia morreu. Nunca mais se falou nisso. Base militar, em duzentos anos de história, o Brasil só concedeu na Segunda Guerra Mundial, como aliado na guerra contra a Alemanha nazista. Nunca mais, nem antes, nem depois. Então já é um absurdo, sinalizando uma coisa muito grave.
A segunda ação anunciada foi que nós íamos sair do Acordo de Paris sobre o clima. Baseado em razões falsas, que o Brasil não podia cumprir as metas quando, naquele mesmo momento, em dezembro do ano passado, o ministro do meio-ambiente do Temer estava anunciando que o Brasil já tinha se antecipado, já tinha cumprido as metas com a redução do desmatamento. Aí Bolsonaro voltou atrás e disse que não ia sair por enquanto. Você sabe que esse "por enquanto" é ambíguo porque, no momento atual, pelas regras do Acordo do Clima, nenhum país pode notificar que vai sair três anos depois do acordo entrar em vigor e esses três anos só se cumprem no dia 4 de novembro deste ano. Então não sei se ele de fato vai sair ou não.
E o terceiro anúncio era o da transferência da embaixada para Jerusalém, que o governo anunciou e depois voltou atrás. Encontrou-se finalmente um meio termo que não agradou nem a uns nem a outros.
Ou seja, retificações ocorreram já nesses cem dias?
Em três meses o governo já retificou certas coisas. Por exemplo, o presidente decidiu ir à China. O chanceler Ernesto Araújo continuou falando, em entrevistas e aulas, que a China é uma ameaça. Continua naquela linha que a extrema direita americana segue. Mas o presidente já disse que iria à China, portanto já é uma retificação.
Uma outra retificação, essa ainda mais recente, desses últimos dias, é o anúncio de que se está preparando uma visita do presidente a um país árabe, é mais um sinal. Essas coisas todas mostram que a resistência e a crítica estão tendo um certo resultado. Não que eu acredite que eles sejam sensíveis a crítica dos de fora, mas são sensíveis aos militares e ao agronegócio. Quando os militares e o agronegócio se movimentam, aí é diferente, porque fazem parte do mesmo sistema de forças que apoia o governo.
Como estão reagindo os exportadores brasileiros do setor agrícola?
O agronegócio está alarmado. Até agora tem procurado mais canalizar a inquietação diretamente falando com pessoas do governo. Mas quando se conversa com os líderes do agronegócio, vê-se que estão alarmados porque estão vendo que esse governo em pouco tempo hostilizou verbalmente todos os grandes mercados. China, países árabes e Irã, que hoje importa do Brasil em carnes tanto quanto a União Europeia inteira, 7% da importação de carnes. Nós no ano passado, só de milho, vendemos um bilhão de dólares para o Irã. É um mercado importantíssimo.
Nesses cem dias, porém, Bolsonaro fez viagens importantes.
O que há de comum entre Estados Unidos, Chile e Israel? Aparentemente nada, a não ser o caráter de direita, ou de extrema direita, dos três governos. Podem se encontrar pistas nesse sentido no discurso de posse do Araújo. Há também nesse discurso muita bobagem, o que ele diz em tupi, em grego, tolices desse tipo. Nas poucas coisas que são mais pertinentes, há lá um parágrafo em que ele fala dos países que o governo admira. Esses países são significativos porque é uma lista curiosíssima. Inclui os Estados Unidos de Trump, Israel de Benjamin Netanyahu, a chamada "nova" Itália do Matteo Salvini, a Hungria de Viktor Orban e a Polônia. É uma salada russa, sem nada em comum, aparentemente, algo meio absurdo.
Esses cinco governos representam no mundo de hoje a tendência das denominadas democracias antiliberais ou iliberais, fenômeno que vem sendo muito estudado nos Estados Unidos. Democracia porque esses governos chegaram ao poder não por golpe militar, mas por eleição, embora tenham uma orientação antiliberal, sobretudo em política. São todos xenófobos, hostis à ideia da igualdade de gênero, avessos às modernas tendências de tolerância em relação a diferenças sexuais, são governos hostis às políticas de defesa do meio-ambiente. O que eles têm em comum, em resumo, é essa ideologia iliberal e de extrema direita.
O sr. considera que existiram omissões importantes nesse início do governo em relação à política externa?
Sim. Ele não fala da Argentina, nem do Mercosul. Queira ou não, por mais dificuldades que surjam, a Argentina será sempre o vizinho principal do Brasil. Por causa da recessão da Argentina, as exportações brasileiras de automóveis e manufaturas em geral despencaram em quase 40%. Não cita o Mercosul como prioridade, nem o México, o outro grande país latino-americano. Não cita a Aliança do Pacífico. Não cita a UE, a não ser indiretamente para criticar o que diz ser um vazio cultural, países que perderam as crenças. Além disso, Bolsonaro tem criticado explicitamente a França, na entrevista à Fox News, por exemplo, hostilizando um dos principais líderes europeus, e um presidente (Macron) que exerce uma influência muito grande, internacional, gratuitamente. Sem os franceses terem feito nada contra o Brasil ou o presidente. Uma coisa assim gratuita, absurda.
Por enquanto, pouco tem se falado de uma estratégia para a Ásia.
Claro. Esse é um enorme absurdo. O jornal Financial Times, baseado até em dados da UNCTAD, mostrou recentemente que em 2020 começa o século asiático. Será o primeiro ano em que as economias asiáticas vão ser maiores que o resto do mundo somado. Metade dos consumidores do mundo, 4 bilhões de consumidores, estão na Ásia. A Ásia tem 21 das 30 cidades maiores do mundo.
Para um país como o nosso, que não tem inimigos, que não tem problemas – ao contrário dos Estados Unidos com seus problemas com a China e com a Rússia, com o Irã -, a prioridade para nós deve ser o crescimento econômico. Os mercados prioritários tinham que ser os da Ásia, não só a China, mas também a Índia, o Japão, a Coreia do Sul, os demais asiáticos. Este governo omite por completo a Ásia. A Ásia não existe. Na véspera de entrarmos no século asiático, se você ler os documentos oficiais, a Ásia brilha pela ausência. A omissão é até mais eloquente do que as escolhas.
Como o sr. avaliou o resultado das viagens internacionais?
As escolhas dos primeiros países a serem visitados impressionam, porque o critério evidente foi o da ideologia, o de serem todos, sem exceção, de direita. O porta-voz da presidência, Rêgo Barros, escreveu um artigo dizendo que o governo Bolsonaro definiu como prioridade na agenda externa reforçar a relação com os países que, por suas potencialidades, podem contribuir para a melhoria das condições de vida do povo brasileiro. No entanto, quando se olha a lista dos três países visitados, pode de saída, eliminar pelo critério das potencialidades o Chile e Israel, países de mercados modestos. Além do mais, com o Chile já dispomos de acordo que estabeleceu o livre-comércio em praticamente a totalidade dos produtos. O que faltava foi assinado pelo governo Temer, não faltava nada no caso do Chile. E o Chile tem um potencial limitado, é um país de 20 milhões de habitantes. Israel, nem preciso falar, é um país pequeno, sem expressão comercial, com um potencial concentrado na tecnologia, mas sem nada de especial em outros aspectos econômicos.
Mas a situação não seria diferente com os americanos?
No lado político e ideológico da visita a Washington, o primeiro aspecto que ressalta da visita é que parece até uma peregrinação religiosa às fontes da doutrina de extrema direita, porque o primeiro ato da viagem foi justamente o jantar em homenagem ao Olavo de Carvalho. Os participantes do jantar representavam a visão mais extremada da direita americana e no caso de Olavo, da brasileira. Foi o primeiro ato, um ato simbólico. O segundo gesto simbólico, feito quase às escondidas, foi a visita de Bolsonaro à sede da CIA. Servi nos Estados Unidos muitos anos como conselheiro, nos anos 70 e depois fui embaixador nos anos 90.
Nunca vi na minha experiência nenhum dignitário estrangeiro, seja chefe de estado, seja primeiro ministro, que tenha visitado a sede da CIA. A sede da CIA é a da agência de espionagem e de operações clandestinas, inclusive assassinatos.
É a mesma coisa que ir a Moscou e visitar a KGB, ou ir a Berlim na época de Hitler e pedir para incluir no programa uma visita a Gestapo. É uma coisa inimaginável. Não conheço ninguém, nenhum estadista, que pensasse em uma coisa dessas, o que se deve fazer é visitar o Congresso americano, a Corte Suprema, o Banco Mundial, jamais a CIA.
E quanto aos pontos positivos dessa viagem?
Houve o acordo sobre o uso da base espacial, que é um acordo positivo que se justifica pelo interesse recíproco. Mas esse acordo não representa nenhum favor ao Brasil, não é nenhuma concessão a nós.
Um aspecto muito negativo do qual o governo se vangloriou foi a concessão por Trump ao Brasil da categoria de um dos 17 aliados principais dos Estados Unidos fora da OTAN. Procura-se minimizar o significado da decisão, afirmando que a categoria apenas permite acesso a tecnologias militares, mas trata-se de questão muito mais séria em termos de implicações para a política externa de autonomia que o Brasil vinha seguindo até agora. Um país considerado aliado dos Estados Unidos deve se alinhar às prioridades da agenda americana de segurança. E essas prioridades não correspondem ao interesse brasileiro.
Qual é a agenda de segurança internacional dos Estados Unidos que poderia ser problemática para o Brasil?
O primeiro ponto dessa agenda, no momento, é a contenção da China. Tentar, por todos os meios, impedir que a China se torne a primeira superpotência tecnológica. E, ao mesmo tempo, impedir que a China se torne a principal potência econômica, estratégica, militar, que passe a dominar, por exemplo, o Mar do sul da China. Agora por que o Brasil teria que considerar isso uma ameaça a nós? O Brasil nada tem em jogo nessas questões de rivalidade pela supremacia entre os dois gigantes mundiais. Para nós, a China representa boa parte do nosso superávit comercial. Quando um país deixa de lado a autonomia e se torna aliado dos Estados Unidos, significa que esse país vai ter de acompanhar, inclusive nos foros internacionais, a posição americana em relação à China. Ou é isso ou não é aliado. Na nossa posição anterior, conservávamos a liberdade em cada momento para decidir por nós mesmos, sem hostilizar países que constituem o maior potencial de expansão para nossas exportações.
Existem outros riscos para o Brasil ao se aliar aos americanos?
O segundo ponto da agenda americano é o antagonismo a Rússia, por causa da Ucrânia, por causa da Síria. Mais uma vez não vejo porque o Brasil tem que comprar essa briga.
O terceiro é o Irã, grande mercado para o Brasil, como já vimos anteriormente. O Irã tornou-se uma grande potência regional no Oriente Médio, no lado oposto dos aliados americanos na região, Israel e a Arábia Saudita. Nós, contudo, nada temos a ver com essa disputa, que se dá por motivos completamente estranhos aos interesses nacionais brasileiros.
A ideia de ser aliado americano é vendida por aqui como se fosse uma espécie de grande elogio. Esquece-se que foi exatamente isso que os americanos concederam à Argentina, na época das chamadas "relações carnais e abjetas", na época do presidente Carlos Menem. Que diferença fez isso em termos de prestígio da Argentina? Nenhum. Ao contrário, foi motivo justificado de deboche.
Agora, do ponto de vista econômico e comercial, não haveria algum tipo de ganho?
O que se teve nesta viagem foram concessões unilaterais brasileiras. Para começar, o Brasil resolveu ressuscitar uma velha ideia de dar aos Estados Unidos uma cota de trigo. É uma cota anual permanente de 750 mil toneladas, isenta da tarifa de 10%. Essa concessão foi dada de mão beijada, sem nenhuma contrapartida.
Não houve nenhuma consulta à Argentina, com a qual temos um acordo de compra de trigo, aos parceiros do Mercosul, nem aos produtores do Paraná e do Rio Grande do Sul. A única pessoa que tentou levantar a ideia de que era necessário uma contrapartida americana foi a ministra da Agricultura. E, aliás, por causa disso mesmo, recebeu um elogio de Trump, porque ele admira quem sabe negociar. Os americanos desprezam os que são subservientes, os que bajulam. Fora de concessões unilaterais brasileiras, no campo do comércio, não houve mais nada.
Ademais, nós nos comprometemos a abrir o mercado à importação de carne suína americana de acordo com os critérios sanitários deles. Em troca, a única coisa que o lado americano prometeu foi uma visita em junho de uma missão que vai inspecionar os frigoríficos, para verificar se o governo dos EUA se dispõe a abrir a possibilidade de venda de carne bovina in natura do Brasil, prometida no governo Temer e suspensa em seguida.
Não houve nem acenos durante a visita à possibilidade de negociar com o Brasil algo de concreto em matéria de comércio, como seria a redução ou eliminação das barreiras não tarifárias. Tanto quantitativas como é o caso das cotas em açúcar e etanol, como as barreiras fito-sanitárias. Poderia haver um aceno a isso. Mas não houve nada.
O governo, porém, insistiu em comemorar o apoio dos EUA para a adesão do Brasil à OCDE. Isso não é positivo?
A propaganda em torno da adesão à OCDE não passa de uma história para enganar os ingênuos.
Em troca de uma simples promessa de apoio num processo de adesão que dura em geral mais de três anos e depende também dos demais países membros da Organização, o Brasil abriu mão de benefício concreto e tangível, o do tratamento especial e diferenciado na OMC concedido a todos países em desenvolvimento e que se traduz em vantagens de prazos maiores de transição para implementar acordos comerciais, a possibilidade de exportar a mercados de nações desenvolvidas com redução de tarifas, de negociar acordos comerciais em condições mais vantajosas.
Ninguém abre mão disso. Nem a China, nem a Coreia do Sul, o México, o Chile, todos países admitidos à OCDE sem exigência de renunciar ao estatuto especial. Outro país que jamais cogitou renunciar ao estatuto é a Índia, que compete com o Brasil exportando açúcar subsidiado e reivindica proteção especial em manter o mercado fechado a exportações agrícolas com esse argumento. O Brasil abrir mão do tratamento especial é um absurdo. Não tenho nada contra a que o Brasil participe da OCDE. Mas é preciso evitar acreditar no exagero de que esse ingresso é uma espécie de panaceia, que vai permitir aumentar a atração de investimentos, que garante a adoção de políticas econômicas de boa qualidade. Isso pode suceder ou não e depende acima de tudo do esforço interno, não da entrada para a OCDE.
A prova é que a qualidade de integrante desde sempre da OCDE não evitou que a Grécia se convertesse até pouco tempo atrás no exemplo acabado do país falido. O México é membro da OCDE há mais de dez anos e nem por isso conseguiu atrair mais investimentos que o Brasil ou crescer mais que nós. Precisamos também lembrar que a adesão tem de ser aprovada por todos os demais integrantes, inclusive pela França, país-sede da Organização e que o governo Bolsonaro vem ofendendo gratuitamente. Com a tendência no Brasil de retrocesso, em meio ambiente, em direitos humanos, em proteção aos direitos dos indígenas, na apologia de regimes de ditadura militar, o Brasil corre o risco de ser vetado pela França, ou outro país qualquer. Trocamos, portanto, uma coisa concreta, um benefício econômico tangível por um pouco de vento, por um ar vazio.
Além do mais, toda a visita foi marcada por uma atitude de bajulação e subserviência.
Para um megalômano como Trump, essa atitude acaricia o ego, mas lhe desperta ao mesmo tempo menosprezo, não o respeito que ele revela pelos que se mostram firmes na defesa de seus respectivos interesses, como é o caso da China ou da Rússia. Se mudar o governo nos Estados Unidos, vamos ficar pendurados na brocha, porque Bolsonaro até se comprometeu publicamente numa previsão de que Trump vai ganhar a eleição.
O sr. considera que houve algum resultado concreto da visita ao Chile?
Fundou-se o Prosul, algo sem maior importância, expressão da mania de cada governo de querer dar um carimbo de nome diferente ao que já existia, no caso a Unisul. Em relação à repercussão da visita de Bolsonaro ao Chile, ele não só foi repudiado pelos presidentes da Câmara e do Senado chilenos, que se recusaram comparecer ao banquete oficial em protesto pelos elogios de Bolsonaro a Pinochet e à ditadura militar. O próprio presidente Piñera teve publicamente que tomar distância das declarações de Bolsonaro em apologia a Pinochet. Criou embaraços ao próprio governo chileno. É triste ter de admitir que o Brasil tem hoje um presidente que não é apresentável em quase nenhuma capital, talvez nem mesmo nessas que visitou.
Diante dessa avaliação que o sr. faz, não corremos o risco de estarmos construindo inimigos?
A visão do governo brasileiro atual distorce a realidade do Brasil e do mundo. Nessa visão fantasista e conspiratória de uma suposta ofensiva sinistra contra a "civilização judaico-cristã", Bolsonaro e o chanceler Araújo atribuem a Trump um papel de defensor dos valores cristãos que nem o próprio presidente americano se atribui a si mesmo. É preciso ser cego pela ideologia ou ter muita ingenuidade para crer que um homem sem valores morais ou princípios ético como Trump possa ser o defensor de valores que viola a cada momento. Aliás, pode-se dizer em favor de Trump que ele mesmo nunca se apresenta como defensor da civilização cristã, mas sim, como afirma claramente, que defende acima de tudo o princípio do "America first". Nós, em lugar de seguirmos o conselho de Trump de defendermos os interesses brasileiros, nos alinhamos automaticamente contra os adversários não nossos, mas do governo americano: China, Rússia, Irã, palestinos, muçulmanos em geral, aos quais antagonizamos sem motivo.
O prejuízo que podemos sofrer por isso não é apenas o de retaliações, como a decisão do governo do Egito de suspender a visita do ministro de indústria e comércio do governo Temer, logo depois das declarações de Bolsonaro sobre a mudança da embaixada. Ou a decisão da Arábia Saudita de descredenciar alguns frigoríficos brasileiros da lista de exportadores de carne de frango. É claro que isso também se deve ao fato de que a Arábia Saudita quer estimular a produção de frangos no próprio reino. Mas na hora de escolher qual o país que vai retirar do seu mercado, ela vai escolher quem? Um país que é amigo dos árabes ou aquele que hostiliza a crença dos árabes e muçulmanos sobre o caráter sagrado de Jerusalém?
Estamos fechando para nossas exportações o potencial comercial de boa parte do mundo e da parte mais dinâmica, ao invés de abrir. E além, dos mercados, também sacrificamos a boa vontade, a simpatia política. Na ONU, no Conselho dos Direitos Humanos de Genebra, voltamos a votar como votávamos no auge do governo militar, isolados na companhia de governos párias, como eram então a África do Sul do Apartheid, o Portugal salazarista, Israel e Estados Unidos.
Até que ponto essas ações podem ter um impacto para o prestígio do país no exterior?
A situação do Brasil hoje em dia, em termos de prestígio diplomático, aproxima-se do seu ponto mais baixo. Não vai demorar para colhermos as consequências quando tivermos de nos candidatar a algum posto em organismos internacionais ou quando o país começar a ser criticado por causa de violações de direitos humanos e meio ambiente. Vamos descobrir nessa hora que estamos praticamente sozinhos e ninguém virá em nosso auxílio.
O que estamos vendo é só o começo. Ao contrário da maioria que se agarra no autoengano de que a votação da eventual reforma da previdência justifica tolerar o intolerável neste governo, não tenho nenhuma ilusão sobre o desastre que se aproxima. Depois da eleição, muita gente achava que as coisas iam logo voltar ao normal, que ia se desfazer aquele espírito de confronto, de discórdia, de polêmica. E ia aparecer o lado melhor do Bolsonaro. Como Cora Rónai escreveu dias atrás, o problema é que não existe o lado melhor do governo Bolsonaro, só existe o lado pior. Em direitos humanos, em meio ambiente, na questão das terras indígenas, na violenta rejeição da promoção da igualdade de gêneros, em todas as causas que encarnam o avanço da consciência moral da humanidade, o governo é realmente de uma grande coerência no retrocesso e no extremismo de direita. De minha parte, receio que em algum momento haja novamente uma explosão de algum setor social como foi o movimento de protestos de 2013 ou a greve dos caminhoneiros. A economia devagar, quase parando, a desesperança de mais de 13 milhões de desempregados criam clima propício para algum desafio que virá de onde menos se espera. Nesse momento é que o presidente e seu entorno serão testados. Pelo que se viu até agora, receio que não vão se sair bem dessa prova.
Como o sr. avalia o comportamento do governo na crise da Venezuela?
Foi um tema que ajudou Ernesto Araújo a compensar o choque de escândalo provocado pelo absurdo discurso de posse. Esse efeito da crise venezuelana se deve a seu caráter de um caso extremo de catástrofe humanitária que obriga quase o mundo inteiro a agir para colocar um fim ao sofrimento do povo daquele país. Nessa questão, acho que alguns dos críticos à política externa, como meu colega, Celso Amorim e outras pessoas pisam em falso quando tentam defender ou minimizar a responsabilidade do regime de Maduro.
Não há dúvida de que Maduro é um ditador, de que ele fraudou o processo democrático, não há dúvida de que, pela incompetência levada ao extremo, levou a Venezuela a uma situação de calamidade humanitária.
Mas a Venezuela não é um exemplo de uma crise que mereceria uma solução regional, e não importada dos EUA?
A crítica que se pode fazer ao governo atual do Brasil não é quanto à essência do julgamento que devemos fazer sobre a ditadura venezuelana. Desse ponto de vista, penso que todos temos que ter a honestidade de dizer que Maduro deve deixar o governo. É preciso restabelecer condições para uma eleição democrática com governo de transição, organizada sob fiscalização das Nações Unidas. O Brasil teria tido todas as condições para liderar um movimento genuinamente organizado na América Latina para isso.
E não seguir meramente a diretriz do governo Trump, que somente se interessou pelo destino da Venezuela movido por interesses eleitorais e pressionado pelos cubanos exilados na Florida como senador Marco Rubio. Que o Brasil coincida nesse esforço com os Estados Unidos é perfeito, não tenho nada contra isso. Agora, o Brasil deveria ter liderado este movimento, como um movimento autenticamente latino americano, pressionando por uma saída por meio das Nações Unidas. O que o Brasil fez de equivocado, não foi ter participado da pressão, mas de ter seguido de maneira automática a liderança americana nesta matéria.
Reconhecer Juan Guaidó foi uma decisão acertada?
Não sou favorável ao reconhecimento de Juan Guaidó como presidente, o que me parece uma obra de ficção política, de tomar o desejo por realidade. Uma coisa é querer remover a ditadura, outra coisa é o instituto de reconhecimento . O reconhecimento diplomático tem como primeira condição o controle efetivo do território. Deve-se lidar com o governo que existe e não com o governo que gostaríamos que existisse.
Pode-se até imaginar que um líder corajoso como Guaidó teria condições para ser o presidente da transição. Daí, porém, a supor que ele possui alguma parcela de poder efetivo é uma fantasia. Tanto assim que está ameaçado de ser preso, não é verdade? A essência do poder, como se dizia no Brasil antigamente, é a capacidade de mandar prender e mandar soltar. Ora, o Guaidó pode a qualquer hora ser preso, suspenderam a imunidade dele.
Os americanos e Araújo acharam que, ao reconhecer Guaidó, Maduro iria cair em 24 horas. Repetiram o erro ao julgar que a entrega forçada de alimentos e remédios levaria os militares a retirarem o apoio ao governo. Cometeram um erro de juízo ao esquecer que o Maduro não é um ditador latino-americano tradicional, clássico, como era Stroessner, como era Somoza na Nicarágua. Porque Maduro é um velho quadro bolchevista que preferiu ser treinado em Cuba do que estudar engenharia quando jovem. Os cubanos podem ter todos os defeitos do mundo, mas são experts em sobrevivência. Faz 60 anos que estão aí, sobrevivendo. Kennedy morreu, Fidel Castro morreu e eles estão aí. Sobreviveram a tudo. O bolchevista não é um tipo de pessoa que larga o poder no grito, ele larga o poder quando muda a correlação de forças.
Quem é que define hoje a política externa brasileira?
Uma das dificuldades que a gente tem é de identificar onde está o processo decisório de política externa. Não está no Itamaraty. Creio que o principal do processo decisório está nas mãos de Eduardo Bolsonaro, do próprio presidente e seu assessor (Filipe Martins), e, em relativo contrapeso, os militares, o vice general Mourão, que tentam moderar as posições mais extremas sobre a China, a Venezuela, a base militar aos EUA, Jerusalém etc.
O que esse grupo se esforça em fazer é reduzir o prejuízo, efetuar algum controle de danos. O poder menor no processo decisório se situa no Itamaraty.
Pela primeira vez em décadas, se ve um chanceler que é alvo de piadas. Até que ponto isso reflete essa força reduzida do Itamaraty?
É isso mesmo, a maneira mais eficaz de destruir o adversário é rindo dele. Pelo ridículo. Não conheço o Araújo, nunca o vi, pelo que me consta, ele nunca foi considerado do time A ou do time B do Itamaraty. É uma figura menor que, de repente, se viu alçado a essa posição, graças a ligações que tem com Eduardo Bolsonaro, com o ideário esdrúxulo e excêntrico do presidente. Cabe a ele muita responsabilidade na desmoralização e perda de poder do Itamaraty.
Durante o período de transição, foi feita uma reforma açodada, mal pensada do Itamaraty com participação de gente de fora. Subverteram a hierarquia e nomearam como subsecretários gente que pode até ter valor, mas carece de experiência, da prática de chefia de missões no exterior. Nessa profissão, a experiência faz uma diferença grande. A experiência efetiva de chefia no exterior é o que permite adquirir em geral a capacidade de lidar com crises delicadas. Em razão de todos esses erros, infelizmente o Itamaraty se diminuiu e perdeu muito espaço.
Existe o risco de o Brasil caminhar na direção de ser um estado pária?
Estaremos em marcha batida nessa direção se continuarmos na linha de levar às últimas consequências a atitude deste governo de enfraquecimento e erosão progressiva dos direitos humanos, do meio ambiente, da proteção dos povos indígenas. Em algum momento haverá um massacre, um desses episódios lamentáveis que tivemos no passado e passaremos então a ser vistos como párias em relação aos avanços da consciência moral da humanidade.
Hoje em dia, o que caracteriza um governo admirado, merecedor de prestígio internacional, é seu comportamento nos domínios que integram o conjunto de aspirações da humanidade: direitos humanos, meio ambiente, promoção de igualdade entre mulheres e homens, tolerância e respeito pelas minorias, combate à desigualdade social e racial. Cada sociedade será julgada em última instância pela maneira como trata seus membros mais frágeis e vulneráveis. Foi a percepção de que agia para melhorar a sorte dos pobres que valeu a Lula o grande prestígio de que desfrutava internacionalmente. Em contraste, este governo transmite a ideia de que é insensível à luta contra a desigualdade, a pobreza extrema, a miséria. A supressão do Ministério do Trabalho, por exemplo, é um gesto de simbolismo poderoso. Apesar de todos os defeitos desse ministério, dos abusos que nele ocorreram, ele simbolizava o esforço de corrigir pelo poder do Estado a desigualdade estrutural entre capital e trabalho. Debilitar os sindicatos, suprimir o ministério do Trabalho é criar um vácuo perigoso de ausência de mediadores, de instâncias intermediárias em momentos de aguda crise social.
A não ser que se consiga deter em tempo o franco retrocesso do Brasil em relação à essas questões, corremos o sério risco de sermos percebidos como são hoje vistos alguns dos governos que Bolsonaro e Araújo admiram, expressão do populismo e do obscurantismo de extrema direita.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL