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sexta-feira, 3 de julho de 2020

Rejeição da ciência na crise tem origem em doutrina tradicionalista, diz autor - Beatriz Bulla

Rejeição da ciência na crise tem origem em doutrina tradicionalista, diz autor
Especialista em extrema direita diz que crise atual faz movimento - que atua nos bastidores e coloca a espiritualidade e religiosidade no centro do debate político - ganhar mais influência
Entrevista com
Benjamin Teitelbaum, autor de 'War for Eternity - Inside Bannon's Far-Right Circle of Global Power Brokers'
Beatriz Bulla / Correspondente, O Estado de S.Paulo
02 de julho de 2020 | 11h58
Desdenhar da ciência na atual pandemia é um traço comum de governos que têm, nos bastidores, pessoas ligadas a uma filosofia conhecida como tradicionalismo. É o que defende o pesquisador Benjamin Teitelbaum, autor do livro "War for Eternity - Inside Bannon's Far-Right Circle of Global Power Brokers” (em tradução livre: Guerra pela eternidade - dentro do círculo dos poderosos de direita radical de Bannon).
Teitelbaum é especialista extrema direita e professor de relações internacionais da Universidade do Colorado. Durante quase dois anos, ele acompanhou reuniões de Steve Bannon, ex-assessor do presidente americano Donald Trump, e nome considerado responsável por bandeiras que ganharam apoio em outros países como a crítica à imigração e a defesa do nacionalismo.
No livro, o americano traça a forma de ação informal de Bannon e as relações com nomes como o conselheiro de Vladimir Putin Aleksandr Dugin e o ideólogo do governo BolsonaroOlavo de Carvalho, unidos pela doutrina do tradicionalismo. Em entrevista ao Estado, Teitelbaum explica por que o tradicionalismo vê na crise atual a oportunidade para ganhar ainda mais influência. Tradicionalistas, segundo ele, atuam sempre nos bastidores e, entre outras características, colocam a espiritualidade e religiosidade no centro do debate político e social.
A crise atual pode tornar os 'tradicionalistas' mais influentes?
Há figuras no governo brasileiro que rejeitam a expertise profissional e científica. Bolsonaro, Ernesto Araújo, Olavo de Carvalho e toda essa ala do governo. As pessoas não percebem que isso pode vir das referências da ideologia tradicionalista. Há um tipo de incentivo religioso para desacreditar os conselhos de cientistas e profissionais que têm mérito oficialmente reconhecido. Isso esteve neste governo brasileiro o tempo todo.
Eles não gostam de universidades, do establishment político, da imprensa, desacreditam qualquer um que tenha credenciais oficiais. Outro aspecto visto é que pessoas como Ernesto Araújo explicitamente conectam o vírus à China e ao comunismo, de um lado, e à globalização, do outro, pelo fato de haver essa disseminação enorme do vírus pelo mundo e sua superação de fronteiras.
Há tradicionalistas que esperam que isso possa reforçar fronteiras, esse sentimento nacionalista. Há esse potencial. Não é que os tradicionalistas tentem fazer disso um caso de sucesso, é como se sentissem que não precisam fazer nada e poderão sair dessa crise com mais valor no nacionalismo. Mas, da perspectiva deles, a crise também é traiçoeira, porque há o argumento de que isto é algo que saiu da China, que tenta fazer uma espécie de um só governo mundial. 
Claramente Ernesto leu René Guénon (francês, considerado um dos precursores da doutrina tradicionalista ao lado do italiano Julius Evola) e Dugin. Olavo também. Acho que é relevante o fato de que essas pessoas, com um fervor suplementar, estão dispensando conhecimento científico. Todos os governos populistas de direita pelo mundo tiveram reações variadas sobre a pandemia. Muitos têm líderes anti-establishment. Mas há uma intensidade maior com essa dimensão espiritual, de uma forma que acho que é importante que brasileiros entendam.
O Brasil está em posição diferente de outros países na crise atual?
Com Trump (EUA), você vê Anthony Fauci e a força-tarefa (de combate ao coronavírus) conseguindo conduzir um pouco a situação. Quando você olha internacionalmente vê Rússia, Brasil, EUA e Índia neste cenário. Em termos de países que rejeitaram medidas protetivas contra o vírus, temos visto dois tipos diferentes de ideologia de direita. Uma, com os liberais pró-mercado e capitalistas, que que querem priorizar a economia.
O Brasil tem isso no ministro da Economia. Do outro lado, você tem os populistas de direita com conspirações, que podem ou ir para a direção do alarmismo e defender o isolamento do país ou acusar uma suposta conspiração produzida pelo establishment. No Brasil, há esta última opção. Há no Brasil o capitalista de mercado livre e também a atitude desdenhosa, conspiratória, juntos em um só governo. Isso é bem incomum, vejo o Brasil como um caso único. 
O fato de os tradicionalistas rejeitarem a ciência, em um momento em que só a ciência consegue nos guiar, não pode gerar forte reação contra governos que seguem essa linha?
Pode haver uma repreensão poderosa, realmente. Em várias partes do mundo, a rejeição da ciência e da experiência é motivada e alimentada por alguns ideólogos de governos que acham que o conhecimento científico é uma piada completa, isso pode provocar um desprezo em relação a esses governos em alguns países e aos influenciadores ideológicos que vivem neles. Absolutamente.
O que será determinante na reação à crise? O que pode enfraquecer essa doutrina ou fortalecê-la nos próximos meses? 
Se a média das pessoas relacionar o fechamento de fronteiras com um grande ganho em termos de saúde, isso pode produzir o ressurgimento do tradicionalismo. Será um passo em direção à segurança, a uma sociedade mais fechada, essencialmente em um momento em que as pessoas têm medo e também sentem que o mundo exterior é uma ameaça para elas.
Do outro lado, os governos inspirados por tradicionalistas podem ignorar todas as indicações ou conselhos de especialistas médicos e colocar em risco suas populações. O complicado aqui é que o tradicionalismo atua nos bastidores, não é conhecido pelas pessoas comuns. Não é como se houvesse um partido político tradicionalista tentando ganhar votos. É bom ter isso em mente. Mas, para responder à sua pergunta, acredito que será uma questão de ter as fronteiras mostradas como proteção versus a responsabilização pela morte e destruição como causa da rejeição à ciência.
Decisões de fechamento de fronteiras estão sendo tomadas no mundo todo. Em um governo com tendências nacionalistas e avesso à imigração, como o de Trump, é possível dizer se medidas de suspensão de entrada de estrangeiros são influência tradicionalista ou parte da conjuntura mundial?
Eu não acho que seja ou um ou outro. Ambos são verdadeiros. Vamos pegar o papel do tradicionalismo no governo Trump. Havia alguém com uma energia fanática, Steve Bannon, que via algo que já existia em Trump. Trump não é um tradicionalista, ele não iria ler nenhum desses livros. Mas Trump é nacionalista, instintivamente gosta de fronteiras, controle e ordem, enquanto Bannon tinha uma devoção espiritual mais religiosa a essas ideias e estava extremamente empenhado em vincular Trump a elas, fazer Trump se mostrar como alguém que apoiava fronteiras rígidas. 
Controlar as fronteiras faz sentido da perspectiva de quando você está pensando na pandemia, mas também pode se tornar um mecanismo para motivações ideológicas que já estavam presentes. Aleksandr Dugin acredita que o que está acontecendo é uma punição divina pelo globalismo e que nossa única esperança é parar com a ideia de que haja uma única comunidade mundial. Esse é a nova lógica que está emergindo deles.
Há reportagens recentes sobre a reaproximação de Bannon com integrantes da Casa Branca. Ele está se reaproximando de Trump no período eleitoral?
Sou cético sobre essas reportagens, porque seria muito difícil politicamente para Trump trazer Bannon formalmente de volta ao seu entorno. O que não duvido, no entanto, é que pessoas que trabalham na Casa Branca e provavelmente uma massa crítica de pessoas estejam consultando Bannon. E, na verdade, isso vem acontecendo há um bom tempo, mas só recentemente recebeu atenção da mídia.
O círculo de pessoas que o consultam é extremamente grande. O poder formal dele pode não estar mudando tanto, mas o poder informal já existia e pode crescer. Mark Meadows, chefe de gabinete da Casa Branca, é próximo dele e isso não é segredo.
O real poder de influência de Bannon é questionado, com muitas de suas iniciativas sem sucesso na Europa. Ele é superestimado?
Há quem diga que ele é superestimado e quem pense que ele é um mestre secreto por trás de fantoches. Não é que a verdade esteja entre essas duas avaliações, mas sim que esteja nas duas extremidades ao mesmo tempo. Ele tem muitos projetos que fracassam, mas, ao mesmo tempo, tem momentos e canais que realmente funcionam e projetos que são bem-sucedidos.
O segredo dele é que tem tantos projetos em andamento, tantas iniciativas, que você pode olhar para sua carreira e ver todo o fracasso e não entender que um em cada 20 projetos do Bannon se torna incrivelmente influente. A Europa pode ter sido um fracasso para ele, assim como outros projetos. E, no entanto, ele provavelmente vai continuar por ali e seguir em frente. É muito revelador para mim que as pessoas estão há três anos dizendo que ele é irrelevante e ele continua aí, agindo.
Olavo de Carvalho já criticou seu livro e disse que não pode ser enquadrado no tradicionalismo.
Ele não quer ser associado a nada além de si mesmo. Ele é certamente um híbrido, um tipo de tradicionalista muito complicado. Vejo muito em seu pensamento inspirado por essa escola. Isso não significa que ele não o modificou, mas quase todo mundo que se identifica com o tradicionalismo o modifica de alguma maneira, portanto esse é o padrão e não exceção.
No caso dele, é presente a rejeição dos especialistas, a vontade de ver a leitura do mundo como sendo definida por, digamos, líderes espirituais, líderes militares. É esse arcabouço conceitual que deriva do tradicionalismo, a crença de que o que realmente importa na política e na sociedade é cultivar e semear uma espécie de espiritualidade. Há também referências explícitas a René Guénon e, no passado, Olavo teve uma passagem por uma tariqa e há documentos sugerindo que ele se converteu ao Islã. Isso tudo está descrito no livro.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

O patrimonialismo estatal e os novos bárbaros - Paulo Roberto de Almeida

Meu artigo sobre o novo patrimonialismo estatal no Brasil, desta vez sob o comando dos novos bárbaros, visando inclusive o Itamaraty, que precisa ser preservado de sua sanha destruidora; no Estado da Arte, O Estado de S. Paulo (19/06/2020; link: https://t.co/0pf41nF0sr).


O patrimonialismo estatal e os novos bárbaros

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: discussão de um fenômeno permanente; finalidade: debate público]
O Estado da Arte, O Estado de S. Paulo (19/06/2020; link: https://t.co/0pf41nF0sr?amp=1).


O patrimonialismo, nosso velho conhecido, tem, evidentemente, um longo passado na história do Brasil. Provavelmente, ele terá também um brilhante futuro pelos anos à frente. É o que se constata, em todo caso, por meio das medidas governamentais do “novo Brasil” dos bolsolavistas, que desde já estão identificados à segunda parte do título deste artigo. Eles são os novos bárbaros, pois estão deliberadamente empenhados na destruição de muito do que existe atualmente no Brasil, no plano institucional, segundo se pode julgar pelas palavras e ações do próprio presidente, que é quem comanda, de fato, esses novos bárbaros.
Como devidamente estudado nas obras magistrais do maior sociólogo do século XX, Max Weber, o patrimonialismo é inerente às sociedades tradicionais, e esteve representado em todas as épocas e em quaisquer circunstâncias nas formações políticas que não puderam ainda passar a formas mais elaboradas de organização social e estatal, aquelas compreendidas no universo institucional do que ele chamou de administração racional-legal. Aliás, se por acaso Weber, falecido há exatos cem anos, desembarcasse no Brasil do século XXI – mas isso sempre foi válido para qualquer outra época – teria de refazer sua tipologia das formas de dominação política, embaralhando os seus tipos-ideais, uma vez que conseguimos, por aqui, misturar formas tradicionais, carismáticas e racionais-legais de administração política, todas elas coexistindo ao mesmo tempo e justapostas, como numa colcha de retalhos.
O patrimonialismo, que desembarcou aqui junto com Tomé de Souza, em 1549, mas que já existia no Portugal medieval – como ensinou Raymundo Faoro –, atravessou todas as épocas e todos os regimes políticos, superpondo-se desde os tempos dos “homens de bem”, dominando as administrações locais, passando pelos donatários, governadores-gerais, pelos vice-reis, coexistindo com a corte transplantada, o Reino Unido e sob os dois reinados do Império. A República trouxe poucas mudanças a esse patrimonialismo oligárquico, típico dos regimes tradicionais, mas alguma mudança ocorreu, não se sabe bem se para melhor. 
Mário de Andrade, poeta modernista que se frustrou com o pequeno impacto que teve sobre a sociedade a Semana de Arte Moderna, quase cem anos atrás, traduziu um pouco desse espírito pessimista no seu Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, cujas páginas já trazem diversos exemplos de patrimonialismo – ou seja, a mistura do público e do privado – nas ações de alguns personagens. Entre 1922 (a Semana) e 1928 (Macunaíma) ele perpetrou um poema – “O poeta come amendoim” – no qual algumas estrofes revelam como o Brasil avançava, mas preservando traços de continuidade, em meio a poucos avanços; disse ele: “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. O fato é que a fatalidade da dominação artificialmente carismática da “era Vargas” introduziu algumas mudanças cosméticas no mandonismo local – uma vez que não se fez nenhuma reforma agrária, a despeito da “revolução burguesa” –, preservando o patrimonialismo no famoso tripé do “coronelismo, enxada e voto” de que falava Vitor Nunes Leal, dez anos antes que Raymundo Faoro dissecasse a continuidade do fenômeno no seu clássico “Os Donos do Poder”. Ele sempre recusou o caráter weberiano de sua obra, mas o fato é que o chamado “estamento burocrático”, base do patrimonialismo brasileiro moderno, continuou sendo preservado mesmo na nova modernização conduzida pelo regime militar poucos anos depois.
Pouco antes que Vitor Nunes Leal consagrasse seu estudo às formas tradicionais de patrimonialismo, de base essencialmente rural, um episódio ao final do Estado Novo revelou uma das novas faces da modernização desse fenômeno: seu caráter “estatal”, ou pelo menos abrigado nos interstícios do Estado burocrático construído na era Vargas e simbolizado, em grande medida, pelo DASP, o Departamento Administrativo do Serviço Público, suposto terminar com o pistolão e o apadrinhamento e disciplinar o ingresso no serviço público. Pois foi entre outubro de 1945, quando ditador foi derrubado pelas Forças Armadas, e janeiro de 1946, quando tomou posse o presidente eleito em dezembro, no primeiro escrutínio desde 1930, que o chefe interino do Estado, José Linhares, presidente da Suprema Corte, facilitou o ingresso em cargos públicos, sem qualquer concurso, de membros de sua extensa família e de inúmeros outros oportunistas, ensejando então o famoso slogan, “os Linhares são milhares”, ou seja, um exemplo típico do novo patrimonialismo de feição estatal. 
A modernização então operada sob a ditadura dos generais foi de fato impressionante, praticamente completando o processo de industrialização substitutiva e, finalmente, levando a cabo a transformação da agricultura, que tinha continuado atrasada mesmo depois que Monteiro Lobato alertava para o perigo das saúvas nos tempos de Mario de Andrade. A Embrapa e a própria capitalização do campo contornaram a necessidade de uma “reforma agrária”, nos moldes pregados por militantes da esquerda e intelectuais como Caio Prado Jr. Mas o patrimonialismo continuou impávido, embora tenha mudado de mecanismos e de ferramentas de atuação, deixando as formas tradicionais de dominação típicas do “Brasil essencialmente agrícola” para assumir as novas vestes do coronelismo eletrônico das redes de rádio e televisão do Brasil moderno: essas mudanças podem ser seguidas nos mapas eleitorais e no deslocamento dos apoios em função das novas políticas de assistencialismo estatal. 
A própria transposição da capital federal para o interior criou ou reforçou essas novas formas, desta vez com a ampliação desmesurada do Estado dirigista e intervencionista, com suas múltiplas corporações públicas, confirmando a “ditadura” do estamento burocrático de que falava Faoro ainda na República de 1946. Tanto a tecnocracia do regime militar quanto a Nova República, consolidada sob a Constituição de 1988 representaram, antes de mais nada, a ascensão irresistível do funcionalismo público, o novo patrimonialismo estatal, com seus novos “senhores feudais” e seus novos “mandarins da República”. A nata da magistratura, por exemplo, é o mais próximo que temos da aristocracia do Antigo Regime, criando para si mesma, aliás, privilégios, prebendas e penduricalhos salariais de que nunca gozou a antiga aristocracia da espada e menos ainda a nobreza de títulos. 
Durante algum tempo, por sinal, a “República Sindical” criada pelos companheiros que ocuparam o poder entre 2003 e 2016, aperfeiçoou ainda mais o velho patrimonialismo dos antigos donos do poder, mas o fizeram à sua maneira, como revelado pelas investigações sobre a gigantesca máquina de corrupção criada e alimentada pelos novos donos do poder, o que permitiria falar de um “patrimonialismo gangsterista”, dadas as técnicas criminosas desvendadas por ocasião do processo do Mensalão; elas foram, depois, expostas amplamente no bojo da Operação Lava Jato, que se ocupou basicamente do chamado Petrolão, mas ainda há muito a ser revelado, pois as operações de “compra e venda” se estenderam a vários outros âmbitos políticos e do funcionalismo público. Aparentemente, o patrimonialismo voltou a formas mais “tradicionais” depois do impeachment e da substituição dos donos do poder.
Independentemente das diferentes formas de patrimonialismo que o Brasil conheceu ao longo da história, sempre se pode dizer que ele permanece impérvio à modernização das instituições, como já constatado por diversos especialistas, entre eles mestre Antônio Paim, um dos grandes analistas do patrimonialismo. Este parece extrair novas forças da extrema fragmentação partidária experimentada no sistema político-eleitoral brasileiro nas últimas décadas, o que multiplica, justamente, as operações de apropriação privada dos bens públicos (o que constitui, como se sabe, o cerne do patrimonialismo de todas as épocas). Tal dispersão da representação cidadã – com muitos partidos criados unicamente para fruir, de forma bem patrimonialista, dos recursos públicos, num processo quase similar ao da multiplicação de igrejas evangélicas, aqui recolhendo dízimos privados – favoreceu inclusive a rejeição da política tradicional, o que abriu espaço à ascensão de novos tipos de populismo, como o que se assiste atualmente no Brasil, apenas com o sinal aparentemente contrário ao populismo de esquerda que vicejou durante três lustros neste século. 
A despeito dos anúncios grandiosos de rejeição da “velha política” e de correção das velhas distorções do sistema político anterior, não existe nenhuma indicação de que as velhas práticas do patrimonialismo – tradicional, ou novo, inclusive gangsterista, não importa – tenham sido aposentadas. Ele se insinua, inclusive, na organização mais weberiana, mais racional-legal, que se poderia conceber no Estado brasileiro desde praticamente dois séculos: o ministério das Relações Exteriores, no qual o recrutamento por concurso e a reserva de mercado para os próprios profissionais da carreira são proverbiais (embora nem sempre tenha sido assim: antes de 1946, muitos diplomatas podiam entrar “pela janela”). Foi anunciado, há pouco, que o governo da “nova política” pensa abrir o Itamaraty a colaboradores recrutados de fora, ou seja, “assessores” que não seriam servidores concursados, mas escolhidos a dedo. Isto nada mais é do que patrimonialismo puro, ou seja, apropriação da coisa pública pelos donos (supõe-se que temporários) do poder, o que nos remete, finalmente, à caracterização dos “novos bárbaros” feita na segunda parte do título deste artigo. 
Na análise weberiana das antigas formas de dominação política, ele destacou o papel da República romana, e da figura do cidadão, protegido por leis, como uma das bases da evolução política na Europa medieval e moderna, que desembocaria finalmente no Estado pós-absolutista. Ora, o Império romano foi submergido por tribos bárbaras, cujos membros tinham no patrimonialismo uma das características do usufruto dos bens públicos e sua transmissão hereditária, sem qualquer controle por algum corpo representativo de “cidadãos”, uma entidade desconhecida nessas formações. O Estado brasileiro atual parece ter sido posto sob o controle dos “novos bárbaros” que emergiram na política sem qualquer estrutura partidária ou institucional, baseados apenas nos instintos primitivos daquele que pretende apresentar-se como “líder carismático”, mas que nada mais representa do que uma espécie de contrafação do conceito weberiano original. 
O Itamaraty, que se orgulhava de ser a mais “weberiana” das corporações de Estado, parece estar prestes a ser submergido por esses “novos bárbaros”, que podem deformar o caráter “racional-legal” de seus métodos burocráticos de trabalho. Se Weber estivesse vivo, talvez usasse o conceito de Entzauberung – isto é, desencanto – para sinalizar o sentimento dos diplomatas do corpo profissional do Itamaraty em face do estupro que parece estar sendo preparado pelos bolsolavistas contra a outrora respeitada instituição formuladora da essência da política externa nacional, uma realidade agora praticamente desfigurada. A História não os absolverá desse novo crime institucional.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de junho de 2020

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Francisco Doratioto:?Guerra do Paraguai, 150 anos depois (OESP)

‘Guerra do Paraguai mostra que politização não é boa para Exército’, diz historiador


Francisco Doratioto lembra, 150 anos após a Guerra do Paraguai, como divisões políticas afetaram a condução do conflito

Marcelo Godoy
O Estado de S. Paulo, 3 de maio de 2020

Poucas obras recentes na historiografia brasileira tiveram o impacto que Maldita Guerra teve quando foi lançada há 19 anos. Escrita pelo historiador e professor da UnB Francisco Doratioto, de 63 anos, ela consolidou a visão de que a Guerra do Paraguai, o maior conflito da história da América do Sul, foi fruto de um processo regional, rompendo com a visão que o vinculava à ação do imperialismo inglês. O livro será relançado com novos documentos pela Companhia das Letras em razão dos 150 anos do fim da guerra. Com base no período, Doratioto diz que a profissionalização e o distanciamento da política são fundamentais para o Exército e a para a defesa nacional. Eis a sua entrevista.

Como o conflito se projeta com suas consequências na região do Rio da Prata 150 anos depois? A guerra faz parte da identidade nacional dos países. Em alguns deles com mais intensidade do que outros. No Paraguai, derrotado e com mais perdas humanas e de território, a guerra está entranhada desde o nascimento de cada cidadão. Solano López é um herói nacional. No Brasil é algo inconsciente. Não se fala em Guerra do Paraguai, mas nomes como Humaitá e Itororó estão presentes em todas as partes do País como praças e ruas. Faz parte de nossa identidade. Na Argentina e no Uruguai também. O fundador da República Argentina, em 1862, é Bartolomé Mitre, que vai ser o comandante aliado na Guerra do Paraguai. Nas províncias argetninas que sofreram, como Corrientes, a invasão paraguaia, o sentimento da presença do dia a dia da guerra ainda está lá em mausoléus e cemitérios. Há as mulheres correntinas que foram levadas à força para o Paraguai e são consideradas heroínas. E, no Uruguai, cuja guerra civil foi o estopim da guerra, a guerra do Paraguai está sempre presente. Uma vez o historiador paraguaio Manuel Peña Villamil me disse um coisa interessante: ‘A guerra devia ser vista como primeiro momento da integração, pois foi a primeira causa comum vivenciada pelos quatro países’. Os processos de independência deles foram todos diferentes. E a guerra foi o primeiro evento comum e trágico dos quatro.


O custo da guerra teve alguma influência na escolha da diplomacia para a resolução posterior dos problemas entre os países? 

Não creio. Na minha interpretação da guerra, todos nós hoje no mundo acadêmico que trabalhamos o tema, é raríssimo quem não diga que a guerra não é fruto de um processo histórico regional. E isso está vinculado ao fato de não existirem estados nacionais definidos na região do Rio da Prata. Até Guerra do Paraguai tínhamos tentativas de Estado. Buenos Aires tentava se impor ao interior em 1862 e o Uruguai era uma criação da diplomacia britânica, que antes da guerra tinha 200 mil habitantes. Ele não era um país consolidado com identidade nacional. O Paraguai tinha uma população pequena submetida ao absolutismo de uma família; o Estado era uma propriedade privada. Formalmente era um Estado, mas as estruturas eram muito precárias. Os dois Estados que foram centralizados precocemente na América Latina foram o Império do Brasil, na década de 1840, e o Chile também na década de 40. Não é à toa que esses dois países quando se envolvem em guerras saem vitoriosos; o Chile, na guerra do Pacífico, apesar da desvantagem numérica. Eles tinham Estados mais organizados, com serviço diplomático para defender seus interesses. Nessa visão, a Guerra do Paraguai era o fim de um processo, com o confronto de caudilhos que tinham suas milícias e com o Império, que se organizara contra uma facção argentina, em 1852, contra Rosas. Depois vai ser privilegiada a diplomacia, porque até a Guerra do Paraguai, o Rio da Prata era um espaço vital economicamente para a elite de Buenos Aires, que era agroexportadora. O espaço geoeconômico era vital para os criadores de gado. Mas o final da Guerra do Paraguai coincide com a segunda revolução industrial, com a criação do navio frigorífico, que permite exportar carne fresca, e a compra de cereais. De repente, vão ter início os milagres econômicos argentino e uruguaio. Como consequência, o espaço do Rio Prata, apesar de ainda importante, deixa de ser vital. E o Império brasileiro está em crise política e econômica, em razão dos gastos com a guerra. O Rio da Prata não vale mais uma guerra. E a diplomacia se torna o instrumento. Por fim, uma guerra implicaria na perturbação da agroexportação argentina, o que não interessava às suas elites.

A mentira muitas vezes tem um papel na história. Na Guerra do Paraguai existe a do falso acordo entre Brasil e Argentina para dividir o Uruguai, que se transforma em um dos dentes da engrenagem que leva ao conflito. Qual o seu peso para a eclosão da guerra? 

Eu tenho dúvidas sobre o papel do fator aleatório, do acidente na história. Pois há coisas que parecem acidentes, mas quando você vai ao arquivo, à micro-história, você percebe que tem uma lógica. E o historiador é por definição alguém que busca a lógica dos acontecimentos. Mas há momentos em que há o fator aleatório. Um exemplo: Tancredo Neves pega uma septicemia e morre, mudando a história recente do país. Na Guerra do Paraguai, tomo como exemplo a Batalha do Riachuelo, pois a derrota paraguaia inviabilizou a vitória de Solano López, impedindo o acesso à Buenos Aires. O ataque podia ter sido bem sucedido. A ideia era a flotilha paraguaia chegar aonde estavam fundeados os navios brasileiros ao amanhecer, quando os navios a vapor não estariam com fornalhas acesas e não poderia se movimentar. Só que a pá de um dos navios da flotilha paraguaia teve um problema e atrasou a partida. Ela chegou duas horas depois do planejado e aí já estavam acesas as fornalhas e a frota brasileiro conseguiu reagir. Se não fosse esse atraso o resultados seria outro. E por que não deixaram para o dia seguinte? Aí tem a lógica. Solano López punia qualquer chefe militar que não seguisse uma ordem dele. Preferiu-se então atacar mesmo com o bom senso dizendo que as condições seriam outras. No desencadear da guerra em si não vejo fator aleatório, mas muitos fatores racionais explicados. No caso da mentira, não havia plano de se dividir o Uruguai, mas o fato concreto é que Solano López acreditou nisso e eu não sei se o governo uruguaio não acreditava. Brasil e Argentina nunca haviam agido em acordo antes no Rio da Prata. Seria razoável se pensar que pretendiam dividir o Uruguai. O fato concreto é a convicção de Solano López de que aquilo era verdade e que teria um desdobramento: o ataque ao Paraguai. Solano López já tinha interesse de participar dos negócios do Rio da Prata. Enfim, não é a mentira ou informação duvidosa que leva ele à guerra, mas ela é um pretexto, uma justificativa.

Os principais atores tinham consciência para onde se dirigiam nos momentos que antecedem a guerra? 

Eu acho quer ninguém acreditava na guerra. Do lado brasileiro e argentino como pensar em um país como Paraguai, com 400 mil habitantes, isolado dentro do continente e sem armamento moderno, fosse atacar o Brasil, que tinha 9 milhões de habitantes, um comércio externo muito maior que o Paraguai e tinha marinha de guerra e a Argentina, que tinha uma população de 2 milhões de habitantes e com saída para o mar? Não era razoável supor que haveria esse ataque. Nem a elite brasileira - nem a argentina - acreditava a guerra. Os blancos uruguaios tinham esperança no socorro militar paraguaio, mas Solano López fica adiando. Ele tinha 70 mil homens em armas e um serviço de espionagem, mas talvez não acreditava que fosse ter usar essa força efetivamente. E, quando ele dá o ultimato em agosto de 1864 ao governo brasileiro, ele acredita que aquilo ia resolver. López não acreditava muito que o Brasil fosse intervir no Uruguai.

Qual o peso da pressão dos fazendeiros gaúchos no Uruguai e da subsequente intervenção brasileira naquele país para a decisão de Solano López iniciar o conflito? 

É muito importante. Têm as circunstâncias da época. De 1844 a 1862, o poder no Rio era controlado pelo Partido Conservador e foi ele que montou a política externa do Brasil para o Rio da Prata, que vigorou até recentemente, até o processo de integração Brasil-Argentina. E seu objetivo era conter Buenos Aires. As elites do Império temiam que essa república grande e forte no sul acabasse desintegrando o Brasil. O objetivo delas era ainda garantir a livre navegação do Rio Paraná e o acesso à Mato Grosso. Essa elite do Partido Conservador tinha uma visão de Brasil, não estava submetida às elites econômicas, ela ia além disso. O Visconde do Rio Branco, pai do Barão do Rio Branco, era um sujeito da maçonaria, um político profissional, um quadro weberiano no sentido da burocracia do Estado. O Partido Conservador defendia os grandes fazendeiros? Sim, porque todo mundo os defendia. Era uma realidade da época. Mas não era um instrumento dócil. Não era, numa visão marxista clássica, uma corrente que retransmitia os interesses dos senhores de escravos. Também fazia isso, mas não só isso. Ele cai em 1862 e sobe ao governo o Partido Liberal, que, por sua vez, vai incorporar dissidentes do Partido Conservador. O Partido Liberal assume e logo tem de enfrentar a Questão Christie, que foi uma desmoralização, com os navios britânicos na Guanabara ameaçando bombardear o Rio e, sob a mira dos canhões ingleses, o Brasil pagou a indenização exigida pela Inglaterra. Depois houve uma quebra de bancos no Rio. Havia um governo frágil, precisando melhorar sua popularidade e sem política externa definida. E aí vem os fazendeiros do Rio Grande do Sul, que tinham propriedades no Uruguai e tinham tomado um lado na guerra civil, o dos colorados, pois o governo uruguaio, que era blanco, tinha proibido a escravidão e proibido a exportação de gado em pé para o Rio Grande do Sul, pois o charque gaúcho era feito com gado uruguaio. O governo liberal de então não tinha condições de resistir à pressão da elite gaúcha. Assim, o papel dos fazendeiros é grande, pois leva o Rio de Janeiro a se envolver em uma assunto que interessava a Buenos Aires, mas não ao Brasil.

Sartre aborda em Questão de Método o papel do indivíduo na história. Como podemos classificar o papel de Solano López na história da Guerra? É possível dizer que a guerra não existiria sem a figura de López? 

É um tema altamente complexo e qualquer resposta seria defensável . Se você me perguntasse há 20, 30 anos atrás eu diria que não, que o homem não faz a história. Hoje temos dois pensadores diferentes: Marx diz que os homens fazem a história, mas não como gostariam e Ortega y Gasset que diz que o homem é ele mesmo e seu contexto. Um guerra é sempre fruto de um contexto. Um homem nunca a faz sozinho. Mas aí tem de pensar o contexto do que era o Paraguai. Sempre tinha vivido ditaduras e não tinha uma elite que se exprimisse em Parlamento. E o estado funcionava quase como uma propriedade pessoal de Solano López e de sua família. Durante a guerra, o maior fornecedor de gado ao exército paraguaio eram as fazendas da família López. As outras não conseguiam fornecer porque os homens foram todos convocados no começo da guerra, menos a família López. E a ideia de que um homem podia mandar e fazer o que queria era a realidade de López. O processo decisório era nenhum. A guerra é fruto do contexto, mas também é fruto da postura do governante. Sem ele aquele processo histórico não adquiriria a forma que adquiriu e, principalmente, a continuidade da guerra em si. A única explicação é a relação de Solano López com o poder. Ele sabe que vai perder, que não tem saída e sacrifica um país inteiro, uma população inteira. Pode-se falar em uma liderança carismática? Esse é um ponto polêmico. Há autores paraguaios, que se dividem entre lopistas e antilopistas, que vão dizer que ele era um tirano e eu concordo. Em alguns momentos, ele parecia carismático, mas não se sabe até onde ele era carismático ou era o terror que infundia e levava as pessoas a segui-lo. O fato concreto é que, como os paraguaios não tinham jornal e acesso á informação comum, eles acreditavam piamente que lutavam pela independência do país e que Brasil e Argentina iam anexá-lo. Durante a guerra, os soldados paraguaios foram muito corajosos.

Como muda a imagem dos chefes militares brasileiros depois da guerra do Paraguai? No caso dos chefes militares brasileiros, desde sempre eles foram apresentados como pessoas dignas de admiração. Não que não houvesse críticas, mas a maior parte das críticas em relação a Tamandaré ou a Caxias se davam em razão da política partidária. Caxias era senador do Partido Conservador e Osório era de uma facção liberal do Rio Grande do Sul que era detestada pela outra, a do (visconde de) Porto Alegre e do (almirante) Tamandaré. O que há de mudança é sobre a figura do herói máximo da guerra. No século 19 e no começo do 20 não havia a figura do patrono do Exército brasileiro. O maior herói era Osório e não o Caxias. Osório era verdadeiramente popular, inclusive na Argentina e no Uruguai. O que houve foi essa alteração. Osório tinha vindo de baixo para cima, ficava com a soldadesca, contava piada e Caxias era uma figura aristocrática, distante do soldado comum, disciplinador. Essa é a grande alteração que vejo. Mas não vejo surgir nenhum vilão nem um vilão se tornar herói. Todos eram respeitados como chefes militares.

No livro o senhor descreve a morte de Solano López e diz que ele não foi apenas lanceado, mas também recebeu um tiro de fuzil. E que os soldados brasileiros em Cerro Corá perderam o controle e o combate se transformou em degola. O que leva a esse comportamento na Guerra do Paraguai? 

Ele foi lanceado, mas a causa da morte vai ser o tiro. Depois que eu publiquei o livro, pesquisando para uma biografia do Osório, fiz contato com um tetraneto do general, professor de história da Universidade de Pelotas, Mário Osório Magalhães. Ele era parecidíssimo com o Osório e me cedeu os originais que tinha do senador Homem de Mello que, em 1869, foi ao Paraguai. Ele esteve com o cabo Chico Diabo, que lanceou o Solano López. Ele o descreve como uma pessoa extremamente simples, primária, que não articulava pensamento e que falava que a grande arma da guerra era a lança, que ela vencia canhões. A ordem do imperador era não matar Solano López. O objetivo era tirá-lo do Paraguai. Se você pegar o Chico Diabo, ele teve dificuldade de receber prêmio e não ganhou nenhuma condecoração e nenhum reconhecimento do império. Isso prova que não se queria matar Solano Lopez. E o tiro foi dado à revelia do general (José Antônio Correia da) Câmara. Um soldado veio e deu o tiro. Essa violência toda em Cerro Corá – não chega nem ser uma batalha propriamente dita, visto a diferença de forças entre um lado e outro - tem a ver e é fruto dos cinco anos de guerra, as condições em que o conflito foi travado. As violências foram de parte a parte também, dos dois lados. Há ‘n’ descrições de soldados aliados feridos sendo mortos em Curupaiti. Foi algo muito violento e, no final de 1969, teve uma enorme fome na tropa, faltou comida na tropa aliada. As descrições, como a do diário do conde D’Eu, mostram que a fome da tropa é inacreditável. Teve muita deserção. Não tem controle mais para se manter a ordem. O sujeito (Solano Lopez) que durante cinco anos foi apresentado como cruel e desumano está na sua frente e aí a soldadesca perdeu o controle. Em outros momentos também perdeu, como em Peribebuí e no saque de Assunção. Cerro Corá não foi o único momento.

Como a falta de unidade de comando e as lutas entre conservadores e liberais paralisaram as forças brasileiras no começo da guerra e qual o papel do imperador para contornar essas divisões? 

A Constituição permitia que os oficiais fossem filiados a partidos políticos e tivessem mandatos. Caxias era senador. O problema é que na frente de batalha o comandante de um partido privilegiava filiados à sua agremiação. E depois havia as acusações. A imprensa liberal atacava os chefes militares conservadores e vice-versa. Isso dificultou o processo decisório na frente de batalha. O caso maior foi Curupaiti e o período entre 19865 e 1866, em que não havia um comandante em chefe das forças brasileiras. Existiam três oficiais generais da mesma patente, dois do partido liberal que eram primos, o visconde de Porto Alegre e o Tamandaré e havia Polidoro Jordão, que era do partido conservador. Tinha uma imobilidade no processo decisório que, em parte não era o fator principal, mas que agravava as dificuldades de se montar uma estratégica frente a algo que não se conhecia bem, que era o complexo defensivo paraguaio de Humaitá. Esse processo apareceu ainda na invasão paraguaia do Rio Grande do Sul até Uruguaiana, porque não interessava a setores do partido liberal gaúcho fortalecer outro setor que estava no poder. O imperador teve de ir até Uruguaiana para pôr ordem naquilo. E é dali a única foto que temos dele vestindo uniforme militar. A intervenção dele também foi vital depois da derrota de Curupaiti, quando ele retira o Tamandaré, que foi afastado por ordem do imperador e teve de voltar ao Rio. E manda Caxias, que consegue unificar o comando para enfrentar o inimigo. O terceiro momento acontece a partir do segundo semestre de 1868, quando o Brasil só continua na guerra porque o imperador ameaça abdicar do trono se fosse diferente. Isso está comprovado por documentação de diplomatas estrangeiros que contavam o que estava acontecendo. Pois se dependesse das lideranças políticas, inclusive do partido conservador, o Brasil sairia do conflito. Em 1868, o próprio Caxias escreve: ‘Vamos parar essa guerra, não temos mais nada a ganhar, o inimigo está destruído e partir de agora, se continuarmos, não sabemos quanto vai custar em vida e em dinheiro para o Brasil'. E a ordem do imperador foi uma só. A guerra vai até o fim. São três intervenções vitais. A primeira para derrotar a invasão do Rio Grande do Sul, que não se estava conseguindo. A segundo para evitar a débâcle do exército aliado após a derrota de Curupaiti e, depois, a finalização da guerra. Apanhar Solano López só foi possível pela posição intransigente de d. Pedro II, que encontra, por sua vez, uma posição intransigente do lado oposto, que é Solano López, que diz que a guerra tem de ir até o fim e, quem não concordava, ele mandava matar.

A queda do gabinete liberal de Zacarias de Góes ocorre após o conflito com o Duque de Caxias. Sua ação teria servido de exemplo para os militares nos anos subsequentes? Como figuras como Caxias ajudam a moldar o comportamentos dos militares no Império e na República? 

No Segundo Reinado não há intervenções militares na política. A única que houve claramente é o golpe de Estado de 1889, que foi feito por uma uma minoria, vinculado a uma minoria civil e à revelia – apesar de o Deodoro estar à frente – da oficialidade mais antiga. É um pessoal que adquire espírito de corpo na guerra – capitães e majores – que vão dar o golpe. Essa questão de junho de 1868 é bem debatida. Não é que o Caxias impôs a queda do gabinete. O gabinete queria sair de um lado e o imperador, por sua vez, queria tirar o gabinete, queria fazer um rodízio para conseguir resultados concretos na guerra. As cartas do Visconde de Rio Branco para o Barão de Cotegipe, expoentes do Partido Conservador, mostram que eles não queriam o poder em 1868, pois a guerra é um abacaxi e o partido só iria se desgastar. Caxias tampouco queria derrubar o gabinete, mas está exaurido e não acredita mais na guerra. Depois ele que tomou a fortaleza de Humaitá, Solano López deixou de ser uma ameaça. A guerra não tem mais sentido e só prossegue porque o imperador ordena. Caxias era um chefe militar obediente à hierarquia. E isso é uma coisa interessante, porque a imagem que foi construída dele durante todo o século 20 e, principalmente depois de 1964, é do Caxias militar e durão, disciplinador, mas se esqueceu totalmente que o Caxias era obediente à Constituição, subordinado ao Poder Civil. Ele era um chefe militar que não intervinha no processo político. Ele intervinha como político, porque a Constituição permitia ele fosse senador. Em 1868, Caxias estava sendo atacado constantemente no Rio pela imprensa ligada ao gabinete. Sentiu-se boicotado e injustiçado. Ele estava havia dois anos na frente de batalha em meio a péssimas condições e queria ir embora. Caxias não introduz a intervenção dos militares no processo político interno. Na verdade, o gabinete se autoderrubou. Depois, o que vai acontecer é que, com a guerra, passa a haver um espírito de corpo entre os militares que não havia. Os soldados do pré-guerra eram desqualificados. Não havia um exército coeso, com hierarquia. Iso vai ser construído na guerra e vai continuar depois. O Exército adquire uma identidade que não tinha e esse espírito de corpo vai ser fundamental para ele se tornar uma instituição armada moderna.

Caxias e Osório eram militares e ao mesmo tempo políticos. O primeiro Conservador e o segundo do Liberal. Depois, na República, assistimos à ascensão e à queda do que Oliveiros Ferreira chamou de 'partido fardado'. Hoje há uma volta de militares à política. A presença de militares na política contribui para o fim do Império e se manteve na República. Por quê? Se você pegar a República Velha, de Prudente de Moraes e do Campos Salles até o tenentismo, temos duas décadas em que a presença militar é normal. Mesmo entre 1945 até 1963, so uma parte dos militares estava envolvido no processo político; a maior parte da tropa e da oficialidade estava cuidando de sua carreira, dos afazeres profissionais. Creio que assim como não existe só o lado militar na figura do Caxias, o processo político do século 20 não teve só intervenção militar. Agora, de fato, tivemos duas décadas de regime militar a partir de 1964 e isso nos impacta por motivos óbvios.

Quais as lições que a guerra do Paraguai deixa para os militares ainda hoje? 

O que se viu em 1864 - e acho que é uma lição - é que você precisa ter Forças Armadas preparadas profissionalmente porque. mesmo em situações aparentemente tranquilas. você não sabe qual é o futuro. Se em 1862 alguém dissesse que o Paraguai ia atacar o Brasil e ficaríamos cinco anos em uma guerra, seria ridicularizado. No entanto, isso aconteceu. Quando acontece tem a dificuldade de defender o Rio Grande do Sul por causa da atividade política dos oficiais, dos comandos politizados e partidarizados, e sa dificuldade no teatro de operações. Você precisa ter Forças Armadas preparadas para exercer a soberania. Precisa ter um núcleo militar profissional, treinado, bem armado para exercitar a defesa do País. A outra liação é que cada vez que os militares se envolveram em assuntos políticos, independente das intenções, por melhores que ela possam ser, eles tiveram menos tempo para se preparar profissionalmente para uma emergência. A politização das Forças Armadas não é boa para as Forças Armadas por um lado – não é à toa que o Castelo Branco fez as reformas que fez – e por outro lado não é boa para o País, pois você perde um instrumento eficaz de defesa, vide o caso das Malvinas (guerra em 1982 em que a Inglaterra derrotou a Argentina), o que aconteceu com a Argentina. Não fosse a politização, as disputas internas, a história seria outra.

Professor, o senhor acredita que ainda existam aspectos que precisem ser melhor iluminados sobre o conflito com o Paraguai. O que pode ainda desafiar os historiadores?

Existe uma enormidade. Você sabe que quase todo mundo decidiu ser historiador porque era péssimo em matemática. Eu conheci o Oliveiros Ferreira na (Ciências) Sociais da USP, que eu fiz história e depois ciências sociais. Lá nas Sociais tinha estatística 1 e 2 que eram matérias obrigatórias. Era um horror. Passei sempre raspando. São poucos os historiadores que dominam estatísticas instrumental e matemática. Não sabemos exatamente, só temos números aproximados de quantos soldados foram enviados para a guerra, de quantos morreram e como morreram. È preciso estudar as perdas da população paraguaia e argentina. Há ainda os dados sobre os gastos com a guerra - fiz um cálculo a grosso modo que dava mais de 600 toneladas de ouro pelos padrões de época. Também há o cotidiano do soldado - o que nós temos, normalmente, é dado pelo relato de oficiais, porque o soldado era analfabeto; fora que o ato de escrever era penoso, era com pluma e tinha de carregar um estojo grande com tinta e tinha de ter papel. Enfim, com novas metodologias e novas teorias talvez se consiga avançar. A Justiça militar na guerra não foi estudada. Não temos estudos sobre a Justiça Militar na Guerra do Paraguai e na Segunda Guerra Mundial também. A Justiça militar seria um caminho, apesar de seus registros sintéticos. E a retaguarda? Tinha banco, bordel? Isso não está estudado. A questão dos negros está razoavelmente estudada. Um coisa que me chama atenção é o estudo sobre os processos decisórios na Argentina, no Uruguai e no Brasil, um estudo comparativo sobre como funcionavam as políticas externas dos países e como isso pode ter contribuído ou não para o encadear da guerra. E mesmo a história econômica. Bem, desde que escrevi o livro apareceram inúmeras fontes inéditas. Apareceu, por exemplo, toda a correspondência do chanceler argentino da época, com 3 mil documentos. E de um chanceler do Solano López surgiram fragmentos escritos. Você tem centenas de publicações sobre a guerra e, no entanto, 150 anos depois continuam aparecendo documentos.

Marcelo Godoy

terça-feira, 21 de abril de 2020

Livros que nunca lerei - Arturo Pérez-Reverte (O Estado da Arte)



Pérez-Reverte: Livros que nunca lerei


Este ensaio, ‘Libros que nunca leeré’, foi originalmente publicado em espanhol nas páginas da XLSemanal. Com toda sua gentileza, don Arturo Pérez-Reverte autorizou a tradução e publicação de seu ensaio aqui em nosso Estado da ArteTradução de Gilberto Morbach.……………….

Livros que nunca lerei

por don Arturo Pérez-Reverte
É uma tarde tranquila de inverno, com reflexos do sol sob as árvores. Caminho pela Cuesta de Moyano, detendo-me nas banquinhas de livros de segunda mão que a esta hora estão abertas. São poucas e isso me entristece. Um dia com tão boa temperatura, uma hora agradável, e não há quase ninguém aqui. Paro para olhar os balcões, converso com os livreiros. Em todos, encontro poucas esperanças de que isso tudo sobreviva. Uma veterana, experiente no negócio, diz que “nos restam dois telediarios”,* e eu compartilho do pessimismo. Acabarão colocando aqui, suponho, bares de tapas ou algum tipo de artesanato de rua; e então, seguramente, o lugar estará cheio. No momento, a falta de interesse do público, a indiferença dos políticos, os tempos que passam, tudo isso sentencia a médio prazo esta joia da cultura madrilena; este paraíso dos leitores onde, pelo preço de duas cervejas, é possível levar, se se escolhe com cuidado, duas ou três boas edições de livros espetaculares. Aqui não há desculpas no sentido de que um livro é caro. Enquanto existir lugares como este, quem não lê não é porque não pode. É porque não quer.
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La Cuesta de Moyano, fotografada por Juan Sardá

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Sou um velho caçador de livros, com todos os modos e instintos para ser. De modo que, nesta tarde, como sempre, movo-me pelas bancas com olhos atentos e dedos rápidos para encher minha bolsa, tão disposto quanto no dia em que, há cinquenta anos, cheguei em Madrid e comecei, livro a livro, a construir a trincheira em que vivo e sobrevivo: a biblioteca que cresceu pouco a pouco, primeiro para reconstruir a dos meus avós e meu pai, e logo se tornando mais pessoal e própria. A que me permitiu compreender o mundo complexo e violento pelo qual caminhei desde muito jovem e que, agora, multiplicada em centenas de estantes e milhares de livros, me permite digerir o quanto vivi. A que, combinada com aquilo que recordo e imagino, me ajuda a contar histórias e interpretar o mundo. Inclusive, a suportá-lo quando não me agrada. Essa biblioteca que é lugar de trabalho, refúgio e, como disse muitas vezes, analgésico: do tipo que não elimina as causas da dor, mas ajuda a suportá-la.
Nesta idade, como digo, é puro instinto. Necessidade compulsiva, ainda que já tenha este ou aquele título em uma edição diferente. Ler o velho papel que outros já leram, tocar as páginas tocadas por outras mãos, encher a bolsa que eu costumo trazer quando venho aqui: Círculo de Lectores, Editorial Molino, Colección Reno, Austral, etc. Já não sinto, claro, a emoção dos primeiros anos; essa vibração quase física de encontrar um título procurado ou descobrir outros que piscavam pra mim, prometendo fazer parte de minha vida e até mesmo muda-la: El diablo enamorado, Cuadros de viaje, La flecha de oro, Vidas paralelas, Sistema de la naturaleza, El buen soldado… Mas o impulso, a necessidade de acumular livros como a pega que busca objetos brilhantes pro seu ninho, isso não mudou. Sigo caçando, rápido, apaixonado, cheio de alegria. Então, em casa, esvazio a bolsa para colocar cada um em seu lugar com a companhia que lhe corresponda. Como esses quatro de Graham Greene que acabo de comprar por dez euros, ainda que já os tenha em outras edições, apenas porque o ex libris ali colocado faz pensar que sua proprietária — uma mulher, talvez já morta —, fosse quem fosse, sorriria consolada se me visse resgatá-los.
Às vezes, alguém que vê minha biblioteca pergunta se já li todos esses livros. A resposta é sempre a mesma: alguns sim, outros não; mas preciso que todos eles estejam aí. Uma biblioteca é memória, companhia e projeto de futuro, ainda que esse projeto não chegue a se completar jamais. Uma biblioteca mobilia, e define, uma vida. Estranho é não perceber o coração e a cabeça de um ser humano depois de um olhar minucioso sobre os livros que tem em casa, ou os que não tem. Por isso, não me lamento por aqueles que não lerei. Cumprem sua função, inclusive ali, quietos, silenciosos, alinhados com seus títulos em suas lombadas. Posso abri-los, folheá-los, percorrê-los devagar, coloca-los na mochila para uma viagem. E ainda que eu jamais chegue a ler muitos deles, terão cumprido sua missão. Sua nobre tarefa. Quando compreendi que nunca leria todos os livros que gostaria de ler, e aceitei essa realidade com resignada melancolia, mudou minha vida de leitor. Fez-se mais plena e madura, do mesmo modo em que, na primeira guerra que eu conheci, reconhecer que eu também poderia morrer mudou minha forma de ver o mundo. Os livros que eu nunca lerei me definem e me enriquecem tanto como aqueles que eu li. Estão ali, e eles sabem quem eu sei. Se sobreviverem ao tempo, ao fogo, à água, ao desastre, à estupidez humana, um dia serão de outra pessoa. E graças a mim, que tive o privilégio de resgatá-los de seus milhares de naufrágios, unindo-os à minha vida.
………


‘Librerie’, Giuseppe Maria Crespi, c. 1725

Nota:
Nota do tradutor: No espanhol, quando “le quedan dos telediarios” a alguém, significa que falta pouco para o fim. O Telediario é um tradicional programa de televisão que reúne as principais notícias do dia e dura por volta de meia hora.
Arturo Pérez-Reverte
XLSemanal 02.02.2020

quarta-feira, 25 de março de 2020

O Impacto geopolítico do coronavirus - Rubens Barbosa

O IMPACTO GEOPOLÍTICO DO CORONAVIRUS

Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 24/03/2020

            A epidemia do coronavirus – a pior dos últimos cem anos – terá profundas consequências sobre um mundo globalizado, sem lideranças alinhadas e pouco solidários entre si. O impacto econômico e social vai ser profundo, com o  custo recaindo nos mais pobres, fracos e idosos e em países menos preparados e desenvolvidos.
            Os efeitos sobre os países e sobre a economia global estão sendo sentidos e deverão se agravar antes de melhorar.
            Como a geopolítica global poderá ficar afetada pela epidemia? O que poderá mudar no cenário global?
            Duas observações iniciais. A crise atual mostrou que as fronteiras nacionais desapareceram com as facilidades do transporte aéreo e o imediatismo das comunicações. E que as políticas econômicas domésticas estão intimamente influenciadas pelo que ocorre no resto do mundo. Nenhum pais ou continente é uma ilha. Por outro lado, a extensão e a repercussão da crise, em larga medida, deriva do peso da China na economia global. No inicio da década, quando ocorreu a SARS, o pais representava 4% da economia global, hoje representa 17%. A China é a segunda economia mundial, o maior importador e exportador do mundo e, para culminar, se transformou em um centro de suprimento de produtos industriais para as cadeias globais de valor.  
            Quais as consequências na relação entre os EUA e a China, as duas superpotências atuais? Nos últimos anos, cresceu a competição entre os dois países pela hegemonia global no século XXI. Os EUA, ao se isolarem e ampliarem ações confrontacionistas, protecionistas, nacionalistas e xenófobas, dificultam a interdependência entre os países como ocorre com a globalização. Enquanto os EUA apontam a China como adversária estratégica e criticam o governo pela condução da epidemia (vírus chinês), Beijing, ao invés de fechar as fronteiras como fez Washington, favorece a abertura e a ampliação do comércio externo e manda médicos e equipamentos para a Itália, Espanha e Brasil a fim de ajudar a combater o coronavirus. A guerra fria econômica, a nova fase da confrontação, evidencia-se pela iniciativa chinesa da Rota da Seda, pela competição nas redes 5G, e por conflitos sobre propriedade intelectual e inovações tecnológicas. A pandemia poderá também ter um efeito relevante no cenário interno dos dois países com consequências geopolíticas. Xi Jim Ping disse que caso a epidemia se prolongasse haveria o risco de estabilidade econômica e social no país. A maneira como, de início, Trump conduziu a crise epidêmica em seu país foi muito criticada e sua popularidade caiu. As prévias do partido Democrata veem definindo Joe Biden como o candidato contra Trump com o apoio do centro moderado. Caso essa tendência se firme, pela primeira vez seria possível pensar numa derrota do atual presidente. O resultado da eleição em novembro poderá ter efeitos importantes sobre a geopolítica global caso haja uma mudança da atitude do governo de Washington em relação ao mundo.
            Outra questão é como países e empresas reagirão para reduzir sua dependência do mercado e da produção de partes e componentes chineses nas cadeias produtivas. A tendência poderá ser uma gradual redução dessa dependência e alguns países mais preparados e organizados, como o Vietnã e alguns outros países asiáticos, poderão sair ganhando com investimentos para substituir a China. A médio prazo, a projeção externa das grandes economias vai depender de sua base produtiva nacional e de sua competitividade.
A estabilidade politica e econômica global poderá ser significativamente afetada pela vigilância biométrica, que poderá vir a ser implantada para evitar epidemias futuras. A preocupação com a saúde poderá levar à invasão da privacidade, com possíveis reflexos em políticas totalitárias. Quanto à dramática queda do crescimento dos EUA e da China, as projeções apontam para uma redução nos EUA de 4% no primeiro trimestre e 14% no segundo. Para a China, as estimativas de crescimento não são maiores de 3,5% para 2020. Caso os EUA entrem em recessão e as projeções sobre a China se confirmem, não se pode afastar a possibilidade de recessão e, no pior cenário, de uma depressão, talvez mais dramática do que a de 1929, por não ficar limitada ao setor financeiro. Como os países emergentes, produtores agrícolas, sairão de um cenário tão dramático como esse?
            A Europa está debilitada pela saída do Reino Unido e viu a situação humanitária, social e econômica agravada pela crise em alguns países, como a Itália e a Espanha. Em um cenário dramático como o atual, é possível prever que o continente sairá com seu poder relativo diminuído.
            O Brasil, uma das dez maiores economias do mundo, terá que se ajustar rapidamente à nova geopolítica global, sob pena de perder mais uma vez a oportunidade de projetar-se como uma potência média em ascensão.
            Em outros momentos da história, movimentos tectônicos transformaram o equilíbrio de poder entre as nações e os rumos da economia. O mundo  pós-coronavirus deverá emergir com novas prioridades e com um novo cenário  geopolítico, com a Asia – em especial a China –melhor posicionada para ocupar um crescente espaço politico e econômico.

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)