Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
“Cem anos depois, o que restou da Semana de Arte Moderna, do modernismo brasileiro, da angústia então ressentida pelos modernistas quanto à necessidade de ‘jogar’ definitivamente o país no futuro?”
Por Paulo Roberto de Almeida, um ensaio sobre nossas contradições, sobre a república que não fomos; sobre déjà vu e desesperança, sobre nosso modernismo e nossa angústia, quase cem anos depois.
“O patrimonialismo, nosso velho conhecido, tem um longo passado na história do Brasil. Provavelmente, terá também um brilhante futuro pelos anos à frente. O Itamaraty, que se orgulhava de ser a mais weberiana das corporações de Estado, parece estar prestes a ser submergido por ‘novos bárbaros’, que podem deformar o caráter ‘racional-legal’ de seus métodos burocráticos de trabalho.” A análise de Paulo R. de Almeida sobre o patrimonialismo estatal e os novos bárbaros.
Os principais temas de uma política externa torturada e tortuosa, em uma tentativa de detectar nossas chances de passar impunemente por uma das fases mais sombrias da história do Itamaraty.
A China e outros 14 países da região do Pacífico asiático fecharam neste domingo, 15, o que é até agora o maior acordo comercial do mundo. O acordo de livre comércio foi batizado de Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP na sigla em inglês). O bloco comercial abrange um mercado de 2,2 bilhões de pessoas e 26 trilhões de dólares, ou um terço do PIB global.
Ainda deve demorar anos para que a aliança altere amplamente o comércio global, e parte dos signatários também já tinha acordos entre si. Mas o simbolismo do tratado é grande, sobretudo na guerra comercial entre Estados Unidos e China.
O Peterson Institute for International Economics (PIIE), nos EUA, estimou em relatório de junho (e com números de antes da covid-19), que o acordo aumentaria o comércio entre os membros em até 428 bilhões de dólares em 2030. Do outro lado, reduziria o comércio em até 48 bilhões de dólares para os não-membros. Em cenário de guerra comercial, o RCEP se torna “especialmente valioso” e “fortalece a independência do Leste Asiático”, escrevem os economistas do PIIE.
Para o Brasil, do qual a China é a maior parceira comercial, qualquer movimentação na Ásia é sinal de atenção, diz o professor Luís Antonio Paulino, do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp. Mas, a princípio, a maior integração entre a China e os vizinhos não afete as exportações tradicionais e pode até beneficiar indiretamente o Brasil diante do aumento do comércio global.
Até outubro, a Ásia comprou quase metade das exportações brasileiras, ou 84 bilhões de dólares, em demanda liderada pela China.
“Os principais produtos que exportamos são commodities minerais e agrícolas, cujas exportações não serão afetadas por esse acordo”, diz Paulino. “Mas esse amplo acordo regional de comércio tende a reforçar as cadeias regionais de suprimento da Ásia, o que pode dificultar, em perspectiva futura, o desejo do Brasil de diversificar sua pauta de exportação”.
O acordo agora inclui não só os tradicionais aliados chineses (10 países já faziam parte do ASEAN, acordo asiático liderado pela China), mas países até então fora da órbita direta de influência da China e grandes parceiros americanos, como Austrália, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Japão. A Índia, outro país importante na região e o segundo mais populoso do mundo, saiu das negociações antes do fim.
“Estados Unidos, China e América Latina formam um triângulo no qual mudanças nas relações entre dois dos vértices necessariamente afetarão o terceiro”
Luís Antonio Paulino, professor da Unesp e especialista em economia global
A forma como o acordo pode impactar as relações entre China e EUA, em plena guerra comercial, também afeta o Brasil, que fica no meio da disputa geopolítica.
Para o ano que vem, Paulino aponta que temas como o leilão do 5G (e a exclusão ou não da Huawei pelo Brasil) e a relação brasileira com o presidente americano eleito, Joe Biden, serão cruciais para o papel do Brasil na disputa entre as duas potências. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.
EXAME — A China é a maior compradora dos produtos do Brasil e de vários países da América Latina. Esse acordo, agora abrangendo países como Austrália, Japão e Coreia do Sul, impacta de alguma forma as exportações brasileiras, ou são alvos diferentes?
Professor Luís Paulino — Não creio que haverá impactos, pelo menos a curto prazo e médio prazo. De janeiro a setembro de 2020 os principais produtos exportados para a Ásia foram: soja, minério de ferro, petróleo, carne congelada bovina, pastas químicas de madeira, açúcar e carnes e miudezas de aves. Nenhum desses produtos enfrenta concorrência local que poderia ser afetada por esse acordo.
É preciso levar em conta, contudo, que assistimos hoje, em grande parte devido aos efeitos econômicos da pandemia da covid-19, uma tendência ao encurtamento e regionalização das cadeias globais e suprimentos. Nesse sentido esse amplo acordo regional de comércio tende a reforçar as cadeias regionais de suprimento da Ásia, o que pode dificultar, em perspectiva futura, o desejo do Brasil de diversificar sua pauta de exportação para a região, incluindo produtos industrializados de maior valor agregado.
O acordo firmado ainda vai demorar um tempo até que efetivamente traga mudanças, e muitos dos países envolvidos já tinham acordos bilaterais ou multilaterais entre si. Nesse sentido, podemos afirmar que o impacto por ora é mais simbólico do que econômico?
Não creio que será apenas simbólico. Haverá efeitos reais, que poderão afetar os interesses sobretudo dos Estados Unidos e União Europeia na região. As cadeias globais de suprimento tendem a se estabelecer em áreas de livre comércio. Quanto maior a integração comercial entre os países da Ásia mais as cadeias globais de suprimentos centradas na China, Japão e Coreia do Sul tenderão a se regionalizar, em prejuízo de fornecedores de fora da área, cujas exportações podem estar sujeitas a tarifas de importação mais elevadas.
No caso específico do RCEP, serão eliminadas tarifas sobre 91% das mercadorias comercializadas entre os membros. No caso do Japão, por exemplo, o número de produtos não tarifados enviados para a Coreia do Sul aumentará de 19% para 92% e para a China de 8% para 86%. A indústria automobilista japonesa deverá ter grandes ganhos uma vez que acordo eliminará as tarifas sobre quase US$ 50 bilhões em peças automotivas enviadas para a China.
Também é preciso considerar que o aprofundamento dos laços comerciais entre a China e os outros países da Ásia e Sudeste Asiático que assinaram o acordo não deixa de ser ruim para os Estados Unidos que ficaram de fora. Certamente vai dificultar os esforços dos Estados Unidos de isolar a China na região. A Índia foi o único grande país a ficar fora do acordo, com receio de receber uma enxurrada de importações, mas pode vir a aderir no futuro.
Para os EUA, o simbolismo de ter esse acordo liderado pela China é forte. Há algum ponto em que a continuidade dessa guerra comercial sino-americana possa impactar o Brasil e a América Latina? Como o senhor vê esse cenário no governo eleito de Joe Biden?
Estados Unidos, China e América Latina formam um triângulo no qual mudanças nas relações entre dois dos vértices necessariamente afetarão o terceiro. Há aspectos nas relações Estados Unidos-China, Estados Unidos-Brasil e Brasil-China que tendem a não mudar substancialmente no governo Biden. Estados Unidos continuarão a ver e tratar a China como um competidor estratégico, o Brasil continuará a ter um papel importante para os Estados Unidos em sua relação com a América Latina e a China continuará a ser fundamental para o Brasil como seu principal parceiro comercial.
Mas há coisas que podem mudar e afetar essas relações. Caso haja uma normalização das relações comerciais entre China e Estados Unidos, isso pode afetar o Brasil, uma vez que os Estados Unidos são nosso maior competidor no fornecimento de commodities agrícolas para a China. Por outro lado, a derrota de Trump abre espaço para uma mudança da política externa brasileira uma vez que a adulação de Trump deixará de ter sentido na política externa brasileira.
Uma maior pressão dos Estados Unidos sobre o Brasil por causa da questão do meio-ambiente e direitos humanos pode obrigar o Brasil a se aproximar mais pragmaticamente da China para evitar o completo isolamento internacional. Não podemos nos esquecer que, em 2019, quando o Brasil virou alvo internacional de críticas por causa das queimadas na Amazônia, a China foi o único país a sair em defesa do Brasil. A decisão que o Brasil venha a tomar sobre a exclusão ou não da Huawei como fornecedor de equipamentos para a rede 5G brasileira será um divisor de águas nas relações Brasil-China em 2021. Nesse aspecto temos uma gama enorme de questões em aberto cujas respostas vão começar a se delinear nos próximos meses.
O Mercosul, como sabemos, está enfraquecido. Por outro lado, vemos as grandes potências globais fazendo acordos. Qual seria o papel do Mercosul nessa nova era? Seria um momento para uma unificação e fortalecimento interno da região, ou o futuro serão acordos separados entre os sul-americanos e o resto do mundo?
O principal dano da política de alinhamento automático do Brasil com os Estados Unidos implementada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, foi ter destruído o papel de liderança regional do Brasil, sobretudo na América do Sul, e levado à fragmentação política da região, permitindo assim que a América do Sul se tornasse palco de disputa entre as grandes potências extrarregionais.
Não vejo como esse quadro possa ser revertido, pelo menos no atual governo. Nem mesmo o já assinado acordo Mercosul-União Europeia dá mostras de sair do papel.
Há alguns anos tínhamos o TPP [Tratado Transpacífico] liderado pelos EUA, que parou no governo Trump e do qual o Brasil já não fazia parte; agora, temos o RCEP liderado pela China. No geral, esses mega-acordos, inclusive envolvendo países latino-americanos (como México e Peru que estavam envolvidos no TPP), são ruins para o Mercosul e para o Brasil ou podem ser benéficos?
Não creio que uma eventual participação de países sul-americanos banhados pelo Pacífico em uma acordo comercial envolvendo os países do chamado Pacific Rim [os “círculos do Pacífico”, área de países banhados pelo oceano, que não inclui o Brasil] pudesse ser prejudicial ao Brasil. Ao contrário, poderiam estimular uma maior integração regional com vistas a explorar novas oportunidades de comércio e investimento. Na área de infraestrutura, por exemplo, poderiam estimular a integração regional, sobretudo ferroviária, que poderiam criar rotas alternativas para a abastecimento da Ásia, principal destino de nossas exportações.
De volta para o futuro? Nossas tentativas modernistas. A USP já fez o seu projeto: 3 x 22, ou seja, relembram 1822, comemoram 1922 e se preparam para 2022. Será mais uma frustração? Minhas primeiras reflexões sobre o sentido de 22, qualquer um deles: o Brasil se arrasta penosamente a um futuro “moderno”, qualquer um. Será uma miragem? Temos menos de dois anos para evitar a descida no obscurantismo e a necessidade de operar uma “volta para o futuro”.
Minhas primeiras reflexões sobre o sentido de 22: o primeiro continuou escravista, o segundo não conseguiu nos dar educação de massas de boa qualidade, o terceiro ainda se apresenta como uma luta acirrada contra o obscurantismo!
Certamente! O historiador Felipe Fernandez-Armesto dedicou um livro inteiro — Idéias que mudaram o mundo (São Paulo: Arx, 2004) — às grandes ideias que mudaram o mundo, desde a mais remota Antiguidade até a mais recente modernidade.
Uma delas foi o “modernismo”, movimento cultural e artístico que emergiu lentamente a partir da belle époque, mas que se consolidou no imediato seguimento da Grande Guerra, a partir das novas formas de organização econômica e política que foram sendo moldadas com a industrialização e a urbanização das sociedades ocidentais. A Grande Guerra foi o evento cataclísmico e seminal que mudou irreversivelmente a face do mundo, mas que só foi chamada de Primeira retrospectivamente, depois que os desastres incomensuravelmente maiores do grande conflito de 1939-45 se acumularam justamente por causa das heranças não resolvidas daquele primeiro grande conflito global.
Modernismo foi também a designação que se convencionou atribuir ao movimento de ideias que realmente “movimentou” o Brasil desde essa época, tendo sido simbolizado, e consagrado, na Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922, o ano em que o Brasil estava se preparando para comemorar, alguns meses à frente o primeiro centenário da independência (o que realmente foi feito, por meio de uma exposição internacional). Esse “modernismo” brasileiro tomou impulso a partir de algumas ideias que já vinham sendo expostas desde mais de uma década antes pelo “futurismo” de Marinetti, um conjunto perfeitamente contraditório de ideias, pretensamente de avant-garde, que começou cultuando o industrialismo, a rapidez e a automação da segunda revolução industrial, mas que também se posicionou a favor das “virtudes eugênicas” das guerras. O manifesto de Marinetti, lançado em fevereiro de 1909, proclamava de modo provocador:…………………………….
Non v’è più bellezza se non nella lotta . . . Noi vogliamo glorificare la guerra — sola igiene del mondo — il militarismo, il patriottismo, il gesto distruttore dei libertari, le belle idee per cui si muore… (Filippo Marinetti: Manifesto del Futurismo)
Se essa era a intenção, ele foi amplamente contemplado pela carnificina dos campos de batalha do norte da França, nos quais milhares de soldados morriam inutilmente em busca da conquista de algumas polegadas de terreno, se tanto. Várias dessas ideias acabaram desembocando no militarismo e no fascismo de Mussolini, com todos os horrores que daí decorreram para a Itália burguesa e parlamentarista que se tinha dificilmente construída a partir do “transformismo” dos líderes políticos da unificação de algumas décadas antes. Olhando da perspectiva dos horrores ainda maiores da Segunda Guerra — que vitimou o dobro dos 20 milhões de mortos da Primeira —, o fascismo de Mussolini constituiu uma espécie de bolchevismo elitista, mas que também se refletiria, poucos anos mais tarde, no nazi-fascismo de Hitler, que foi o suprassumo dos instintos mais primitivos de destruição de tudo o que não se enquadrasse nos moldes eugênicos da raça pura.
Cabe não esquecer que o eugenismo e a busca insana da raça pura do nazi-fascismo tomaram impulso em tendências que já estavam em evidência no pensamento dos racistas europeus do final do século XIX e início do XX, mas que assumiram importância igualmente nos Estados Unidos desde o pós-guerra civil, quando o racismo e o Apartheid segregacionista em prática nos estados do Sul (mas igualmente partilhado ao Norte) acabaram sendo confirmados pela Suprema Corte e “federalizados” pelo presidente Woodrow Wilson, considerado um idealista internacionalista, mas que que era também um notório racista da Virgínia. Tais concepções racistas foram, durante largo período da transição entre os dois séculos, consideradas perfeitamente adequadas ao conceito de superioridade ariana de Rosenberg, que por sua vez foi o influenciador de Hitler, nas suas “ reflexões de cadeia” que resultaram no Mein Kampf. O tema das ideologias racistas nos Estados Unidos já tinha sido abordado, muitos anos atrás, no livro do paleontologista Stephen Jay Gould, The Mismeasure of Man (New York: Norton, 1981), mas foi abordado de forma mais incisiva na obra mais recente de James Q. Whitman: Hitler’s American Model: The United States and the Making of the Nazi Race Law(Princeton: Princeton University Press, 2017).
Muitas dessas ideias, por sinal, se originaram em reflexões preliminares formuladas no Brasil por Gobineau, um “inimigo cordial do Brasil” segundo George Raeders (Le comte de Gobineau au Brésil, 1934). Este ministro de Napoleão III no Rio de Janeiro, amigo de Pedro II, tinha verdadeiro horror à degenerescência da raça exemplificada pelos mestiços brasileiros, que levariam o Brasil a ser um completo desastre no contexto das nações civilizadas (todas elas supostamente de loiros dolicocéfalos). Tais ideias, numa época de darwinismo social e de teorias eugênicas, acabaram desembocando nas teorias do “branqueamento da raça”, que tiveram muito sucesso no Brasil, dos anos 1870 até praticamente o final da Segunda Guerra, tal como analisado por Thomas Skidmore em Preto no Branco (Black into White: race and nationality in Brazilian Thought, 1974).
Esse encadeamento de ideias e de formulações “civilizatórias”, que partem de pressupostos ingênuos, aparentemente tendentes a “melhorar” a humanidade e as sociedades, geralmente redundam em verdadeiros desastres para povos antigos e civilizações inteiras. Os liberais ingleses do século XIX, por exemplo, não acreditavam que a democracia fosse “fitted for touaregs and bedouins”, justificando-se portanto o grande empreendimento imperialista e colonizador, à la Kipling, que levou o Reino Unido da era vitoriana a adquirir toda a Índia da Companhia das Índias Orientais britânica, e a conquistar metade da África, do Cairo ao Cabo.
Pouco depois, nesse mesmo impulso, o vigoroso novo presidente americano Theodore Roosevelt, proclamando o “Corolário Roosevelt” à doutrina Monroe, recomendava que se falasse macio, mas que se carregasse um “grande porrete”, supostamente para enquadrar povos recalcitrantes que ainda não estavam à altura das maneiras civilizadas dos anglo-saxões (esses “lazy” latinos e caribenhos, por exemplo).
Cabe não esquecer que mesmo um grande conhecedor do imperialismo britânico, como era o Barão do Rio Branco, não demorou muito para reconhecer a “independência” do Panamá, uma “costela” arrancada da Colômbia pelos novos imperialistas americanos, com vistas a apressar a construção do novo canal interoceânico, um pouco atrasada desde o desastre fraudulento da nova aventura de Lesseps, o construtor de Suez, que por sua vez havia entusiasmado Verdi na produção de Aída. As nações mais avançadas, e modernas, podem exibir os comportamentos mais bárbaros, em nome da disseminação do progresso e da defesa da civilização, nos recantos mais recuados do planeta. Ideias podem ser perfeitamente contraditórias e levar a resultados surpreendentes na segunda ou terceira geração desde a sua origem, e não apenas em nações aparentemente pouco propensas ao exercício da soberania.
O grande movimento romântico alemão, que desempenhou um papel importante na conformação da luta pela unificação da Vaterland, conduzida por essa entidade mítica conhecida como das Volk, acabaria redundando na “metapolítica” dos wagnerianos que, fortalecida na música patriótica do grande mestre, e nos seus sentimentos perfeitamente antissemitas, se enquadraria, por sua vez, no caudal racista e supremacista do nazismo. O itinerário histórico dessa ideia apresentada por Peter Viereck em sua tese de doutoramento de 1941, transformada em livro sob o título de Metapolitics: from Wagner and the German Romantics to Hitler (edição ampliada: 2004). O termo metapolítica, tal como criado e usado pelos círculos wagnerianos que seriam mais tarde recuperados pelos seguidores de Hitler, denotava uma ideologia baseada na pseudociência da raça, na devoção ao Fuehrere na força inconsciente do povo, entre vários outros elementos, inclusive o antissemitismo, muito disseminado na Alemanha desde Lutero até os românticos do século XIX.
Por acaso, o mesmo termo “metapolítica” foi usado para designar um blog de combates políticos numa recente campanha presidencial, recheado de diversas outras inovações conceituais, como, por exemplo, a hipótese (ou seria uma “invenção) do nazismo como sendo um movimento “de esquerda”, o ataque furioso ao “globalismo”, essa trouvailledo “comunavirus” e outras bizarrices. Esses e outros exemplos de um tipo de pensamento, que possui incômodas relações com uma extrema direita bem mais violenta e exterminadora, podem ser encontrados aqui. Mais,passons…
Vamos voltar ao nosso modernismo de 100 anos atrás. Ele parecia prometer um futuro de vanguarda, mas por razões desconhecidas ele não parece ter refletido os horrores que tinham sido registrados poucos anos antes pela carnificina da Grande Guerra, que vitimou entre 15 e 20 milhões de vítimas, talvez pelo fato de que o Brasil praticamente não participou do teatro de guerra europeu. Quando os primeiros contingentes se aproximavam do velho continente o armistício de novembro de 1918 já estava sendo assinado. Mas o Brasil foi, sim, atingido pela pandemia universal da “gripe espanhola”, na verdade americana, que causou a morte de 50 a 100 milhões de pessoas, algumas dezenas de milhares no Brasil.
O modernismo no Brasil foi muito mais risonho e franco do que o furor belicista, militarista, expansionista, do pré-fascista Marinetti, a despeito de algumas críticas acerbas de um outro modernista instintivo como foi Monteiro Lobato, considerado por muitos, mas equivocadamente, como um “inimigo” da Semana de Arte Moderna.
Nosso modernismo não foi só antropofagia cultural, aquela herança de canibais autóctones deglutindo o infeliz bispo Sardinha, mas também tentando romper os cânones dos mais contemporâneos europeus. Ele também resultou na consciência do nosso atraso, agitou os jovens tenentes na luta contra a corrupção política e congregou os primeiros reformistas consequentes a se unirem em associações pela melhoria da educação de massas que, dez anos mais tarde, resultou no Manifesto dos Pioneiros da Educação, a primeira grande revolução das elites do Brasil pós-Abolição (que, aliás, permaneceu inacabada).
A Semana de Arte Moderna foi uma espécie de frenesi transformador, que agitou momentaneamente os corações e mentes da nossa République des Lettres, mas que depois hibernou na mesmice de Artur Bernardes e de Washington Luís, exasperando os jovens paulistas afoitos do novo partido “democrata”. Tudo bem: acabou confluindo para a Aliança Liberal que resolveu passar às vias de fato para liquidar de vez com a política “carcomida” da primeira República, nossa esperança jacobina, mas frustrada, de Revolução Burguesa que se transformou rapidamente em Ancien Régime.
Como se vê mais uma vez, ideias e movimentos são surpreendentes e contraditórios, podendo conduzir a resultados inesperados. Que algumas ideias estejam ou não em seu lugar, elas podem chegar ao Brasil com certo atraso, ou então sofrem de inadequação funcional. No ano do primeiro centenário da independência, a “república das letras e artes” queria fazer do Brasil um país moderno, embora sem dispor do apoio necessário entre os dirigentes políticos e, mais importante, dos donos do capital (rural e urbano, agrário e industrial), para levar a cabo aquele impulso decisivo para um futuro efetivamente moderno.
A Semana de Arte Moderna causou aquele “agito” temporário, coloriu telas provocadoras, inovou na composição visual e gráfica da nova literatura, na prosa e na poesia, mas parece ter feito “chabu” em pouco tempo mais. Tanto é assim que um dos seus patrocinadores mais exaltados, Mario de Andrade, reconhecia, alguns anos depois, no provocador poema “O Poeta Come Amendoim”, e de forma algo frustrada, que “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”.
A fatalidade, talvez não da forma esperada, acabou atingindo o Brasil alguns anos depois, sob as patas dos “cavalos castilhistas”, importados do Rio Grande do Sul e apeados no Obelisco do Rio de Janeiro”. O castilhismo é aquele movimento supostamente positivista do Homem que Inventou a Ditadura no Brasil(Decio Freitas, 1998), que fez com que um de seus discípulos, o timorato, mas maquiavélico Vargas, desse início a um “breve período de 15 anos”, que realmente transformou o Brasil (para o bem e para o mal). Os militares que se acomodaram no poder em 1964, para um “breve período de 21 anos”, todos eles se formaram nas academias militares da “era Vargas”, com algumas concepções “prussianas” de “ciência bélica” e várias outras concepções quase “nazistas” de “ciência econômica” (autarquia, nacionalização vertical) e até algumas pontas de “stalinismo industrial” (mas para os ricos tão somente).
O Brasil, como se vê, sempre foi fértil de ideias, e continua sendo, ainda que com aplicações nem sempre exitosas. Temos a capacidade de importas as ideias mais generosas, e as mais malucas, misturar tudo no liquidificador da academia e da política, e depois servir para o povo, como grandes símbolos da renovação do país. O humorista Millôr Fernandes, conhecido por muitas outras frases ferinas, dizia que quando as ideias ficavam muito velhas em outros lugares, elas se mudavam para o Brasil, o que é certamente uma injustiça (com as ideias, pois eles estão permanentemente em viagem).
A Semana de Arte Moderna de 1922 foi assim como uma Nova República avant la lettre, um grande impulso renovador que acaba sendo absorvido pelo realismo (e esperteza) da velha política corruptora (mas travestida de moderninha). Ela talvez tenha sido novamente ensaiada no Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, em 1945, patrocinado pelo mesmo Mário de Andrade, no mesmo Teatro Municipal de São Paulo; seus resultados podem ter sido igualmente decepcionantes, uma vez que a República de 1946 oscilou continuamente entre o conservadorismo dos coronéis do PSD e o progressismo sindicalista (mas oficial) do PTB, ambos espicaçados pelo “modernismo golpista” da UDN. O mesmo ocorreu, sob outra roupagem, na Nova República de 1985, cujo entusiasmo renovador da “Constituição cidadã” foi oportunamente recuperada pela mão de ferro conservadora do Centrão, uma inovação na época, mas que se repetiu indefinidamente pelas três décadas seguintes. Foi assim que caímos no novo coronelismo eletrônico de um “curral eleitoral” perfeitamente retrógrado (porque populista e assistencialista), mas que está sempre sendo renovado sob rótulos pouco originais, mas atrativos (como, por exemplo, “Renda Brasil”, “Renda Cidadã”, whatever…).
Cem anos depois, o que restou da Semana de Arte Moderna, do modernismo brasileiro, da angústia então ressentida pelos modernistas quanto à necessidade de “jogar” definitivamente o país no futuro?
Por acaso, a consciência de que deveríamos estar comemorando o bicentenário da independência com um pouco mais de engajamento nas grandes reformas estruturais, como jamais o fizemos, mais de 130 anos depois da Abolição? Talvez engajando, finalmente, a revolução educacional prometida pelos “pioneiros” dos anos 1930, tentativamente retomada por alguns dos mesmos batalhadores no início dos anos 1960 — entre eles Anísio Teixeira e, sobretudo, Fernando Azevedo, mais Florestan Fernandes e outros —, mas frustrada de novo pelo movimento militar de abril de 1964, que cuidou bem mais da superestrutura da formação do que da educação de base, como deveria ser a prioridade? A “substituição de importação” operada no ensino superior, com a pós-graduação finalmente consolidada no país, conseguiu romper as deficiências de formação de professores de primeiro e segundo grau?
Todos os impulsos de crescimento levados a efeito desde um século atrás — na era Vargas, no otimismo dos “50 anos em 5” dos anos JK, no Brasil Grande Potência da era militar, no brevíssimo interlúdio modernizante dos regimes “liberais” de Collor e FHC, na retomada do crescimento empurrada pela demanda chinesa na primeira fase dos mandatos petistas — não lograram, ao fim e ao cabo, retirar o Brasil das misérias da pobreza, da concentração de renda, do racismo sub-reptício, da injustiça social, da má educação de massa, que sempre foram os objetivos mais ou menos explícitos de nossos “modernistas” de todos os tempos e matizes, de José Bonifácio a Hipólito, passando por Mauá e Nabuco, continuando com Rui Barbosa, e depois com Lobato, Roberto Simonsen, Roberto Campos, Celso Furtado e vários outros. Todos eles clamaram por reformas, e todos se chocaram contra o muro do imobilismo. Enquanto essa pequena tribo de sonhadores lutava pelo desenvolvimento do país, o que faziam suas classes dominantes e suas elites dirigentes? Certamente os aplaudiam, mas não se decidiam pelo difícil caminho das reformas, talvez com medo daquele sentimento de que uma vez empreendido esse itinerário, as “coisas” — isto é, os sindicatos anarquistas, o partido comunista, os inimigos da lei e da ordem — se precipitassem fora do seu controle.
Esta talvez seja uma das poucas certezas da história política e social do Brasil: entre o tráfico e trabalhadores livres, as elites ficaram com o primeiro, enquanto foi possível; entre a abolição do regime escravocrata e o livre acesso de imigrantes a terras do Estado, elas se mantiveram o mais possível no nefando sistema. Não estranha, assim que o sentimento de angustiante e prematuro “reformismo” da pequena tribo de “modernistas” avant la lettre não fosse unanimemente partilhado por todas as elites brasileiras, os grupos economicamente dominantes e os estratos politicamente dirigentes.
Ele não o foi desde a independência, quando Hipólito da Costa e José Bonifácio, nossos primeiros (dentre os pouquíssimos) estadistas, preconizavam a extinção imediata do tráfico negreiro e a eliminação gradual da escravidão africana. Mas essa história começou bem antes, continuou no Estado independente e se prolongou na República. O reformismo foi derrotado em 1789-92, na revolta dos alfaiates uma década depois, na segunda tentativa independentista em 1817, no próprio movimento “autonomista com continuidade”, em 1822-23, novamente em 1824, numa versão federalista e republicana, outra vez em 1842, em torno de alguns princípios liberais, e em várias outras oportunidades, inclusive em 1888, em 1889 e, finalmente, em 1922, mas apenas como ensaio de preparação. A Semana elitista foi seguida pelo início do movimento dos tenentes, na praia de Copacabana, prosseguiu nas revoltas de 1924 em diante, até culminar na “revolução burguesa” de 1930.
O Brasil oferece fartos exemplos de eventos, processos e movimentos que se enquadrariam perfeitamente nesses exercícios historiográficos do tipo do What If? (o que teria acontecido se…) Mas, curiosamente, a maior parte, ou a quase totalidade, é constituída por agitações elitistas, não exatamente movimentos de massa. Nem uma verdadeira revolução burguesa conseguimos ter, a despeito do esforço de Florestan Fernandes em tentar provar que ela só poderia assumir uma feição autocrática e subordinada ao latifúndio e ao imperialismo.
Antonio Paim, um dos nossos grandes pensadores, que começou na vida como marxista e que acabou se convertendo a um liberalismo lúcido (e, portanto, saudavelmente cético), já tentou um exercício passavelmente similar no seu livro sobre alguns do momentos decisivos na história do Brasil, mas não tenho certeza de que os momentos tenham sido aqueles ou de que as “escolhas” se apresentassem da maneira como ele o fez nessa obra e numa outra imediatamente seguinte, sobre as dificuldades de se reformar o Brasil (Momentos Decisivos da História do Brasil, 2000; O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação, 2000).
Resumindo: cem anos depois da Semana “fatídica” de 1922, continuamos com o mesmo sentimento que tiveram os dois grandes estadistas de um século antes, que é o de oportunidades perdidas. Talvez será o mesmo sentimento a aflorar dentro em pouco, no bicentenário da independência: os “modernistas” sempre sonham um pouco mais alto do que a realidade das classes dominantes e das elites dirigentes o permite: as grandes reformas modernizantes tardam a se concretizar.
Esse sentimento deve ser similar ao dos abolicionistas frustrados de 132 anos atrás, ao dos jacobinos republicanos decepcionados com a primeira década de desastres a partir da inauguração do novo regime, ao dos idealistas do Diretas Já e das promessas não realizadas da Nova República, estes igualmente descontentes e provavelmente deprimidos pela voragem inflacionária e pelas revelações da gigantesca corrupção política que tivemos na maior parte do período recente. Quem sabe são os mesmos sentimentos que hoje continuam a angustiar os diversos movimentos que lutaram pelo mais recente impeachment — já tivemos vários, alguns disfarçados de outra coisa — e que mobilizaram muitos que foram às ruas por uma “nova política”, aquela que já deveria ter sido “ética”, segundo nos prometiam, mas que não foi, nem antes, nem depois, e muito menos agora.
Esse sentimento é uma mistura de déjà vu e de desesperança, quase uma desistência: o que exatamente teremos a comemorar em 2022? Pouco, muito pouco, quase nada. Será que vale a pena fazer uma Comissão Nacional para ouvir os mesmos discursos do poder?
Em 1922 havia certa sensação de que algo poderia ser feito, a despeito das frustrações com as primeiras três décadas da República: valia a pena tentar sermos “modernos”; era o que o mundo também tentava, apesar do terrível legado da Grande Guerra, com a Liga das Nações, o pacto de 1928 para evitar novas guerras, todas as conferências econômicas para tentar voltar ao padrão ouro da Belle Époque. Tudo se esvaneceu a partir de 1929, e sobretudo a partir de 1931, e só saímos do túnel quinze anos depois.
O que teremos em 2022, 37 anos após a inauguração de uma “Nova República” que já tinha envelhecido menos de dez anos depois de seu início? Existe algo a ser comemorado num bicentenário de retrocessos, de ignorância e de obscurantismo? De elogios a torturadores e de destruição do patrimônio natural? De subserviência a uma potência estrangeira, ou a um dirigente ainda mais ignaro e preconceituoso do que os velhacos arrogantes do passado?
Em 2020, ainda não temos respostas a essas perguntas, a essas dúvidas.
Por enquanto, só nos cabe retirar o ponto de interrogação do título de uma bela, mas triste conferência feita pelo embaixador Rubens Ricupero na Academia Brasileira de Letras: “Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da Independência” (29/08/2019; disponível em formato de vídeo aqui). Foi uma grande e profunda reflexão sobre o modernismo que poderíamos ter tido, mas que não conseguimos mais ter, desde 1922, ou talvez desde o primeiro 22. No terceiro 22 será uma nova tentativa de avançar, ou teremos de nos conformar com mais um terrível retrocesso, antes de uma possível, mas incerta, “volta para o futuro”? Temos menos de dois anos para inverter essa nova marcha da insensatez.
Conseguiremos?
Paulo R. de Almeida
Paulo R. de Almeida é Doutor em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984), Mestre em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977), Licenciado em Ciências Sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). É diplomata de carreira, por concurso direto, desde 1977; serviu em diversos postos no exterior e exerceu funções na Secretaria de Estado, geralmente nas áreas de comércio, integração, finanças e investimentos. Foi professor de Sociologia Política no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília (1986-87) e, desde 2004, é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).