O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Arnaldo Godoy segue as memórias de Rubens Ricupero até 1961; mas todas 684 páginas são História e Literatura...

 AS MEMÓRIAS DE RUBENS RICUPERO 

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

 Conjur, 14 de julho de 2024

https://www.conjur.com.br/2024-jul-14/as-memorias-de-rubens-ricupero/


            A Editora Unesp publicou as Memórias de Rubens Ricupero. Corra e pegue o seu. São 684 páginas que revisitam o Brasil, com ênfase na segunda metade do século XX. Um primoroso escritor. Ricupero foi diplomata de carreira, Ministro da Fazenda, do Meio Ambiente e, entre outros postos na diplomacia, foi embaixador na Itália. Esse posto, penso, é talvez sua maior vitória. Explico. 

            Ricupero é filho de uma família de imigrantes italianos, que apostaram tudo no Brasil no início do século XX. De uma família lutadora, que enfrentou todos os touros para a sobrevivência, Ricupero é exemplo de triunfo e de esforço pessoal. Não é para menos. Foi impressionado com a autobiografia de Benjamin Franklin, o mais emblemático dos homens americanos que se construíram sem favores e benesses familiares. É o caso de Ricupero.

            Trata-se de um livro de memórias que é singular. Extremamente pesquisado, há uma exuberância de notas de rodapé, com indicações precisas de livros e de filmes, que revelam a cultura pantagruélica do autor. Com a desculpa de descrever a “memória dos pobres” Ricupero conta a história de sua família, a vinda para o Brasil, as dificuldades, os parentes, descrevendo tipos extremamente interessantes. 

Conta sua infância em São Paulo, cheia de dificuldades, com a referência ao Brás, ao Bexiga e à Barra Funda, livro delicioso de Alcântara Machado. Ricupero retoma versos de Mário de Andrade para explicar uma cidade de São Paulo, que infelizmente deixou de existir. Narra o momento em que os espanhóis começam a dividir espaço com os italianos, com a triste referência de que a maior parte das famílias espanholas que viviam nos cortiços eram chefiadas por viúvas. 

            Ricupero conta de seus livros de infância, com especial deferência a Monteiro Lobato. Conta que em um dia de inverno (daqueles invernos antigos de São Paulo) ao saber da morte do escritor, precipitou-se ao velório, na Biblioteca Mário de Andrade, e de lá ao cemitério da Consolação. Tinha onze anos, e registra que deve ser um dos poucos sobreviventes que foram ao enterro. O leitor imagina um menino de onze anos, sozinho, desacompanhado, atravessando a cidade de São Paulo para acompanhar o enterro de um escritor? 

            Influenciado pela biblioteca do tio, Ricupero leu de tudo ao longo da infância. Lembra as antologias da FTD, uma editora ligada aos maristas. A sigla vem de Frère Theófane Durand, que comandou os maristas na virada do século XIX para o século XX. 

Foi nas edições FTD que Ricupero conheceu Eça de Queiróz. Ricupero estudou com os maristas. Admirava um professor de português, Irmão Caetano José. Conta, em seguida, que o Irmão deixou os maristas, seguiu vida secular e se revelou como um de nossos maiores gramáticos. O Irmão Caetano José é Domingos Paschoal Cegalla, autor da Novíssima Gramática da Língua Portuguesa.

            O autor narra sua crise na escolha da profissão. Acabou estudando direito, no Largo de São Francisco, onde fez amizade como Fábio Konder Comparato e com o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, que vinha de Araraquara. A impressão da faculdade não é das melhores, embora Ricupero registre que admirava alguns professores, como Goffredo da Silva Telles, Basileu Garcia e Miguel Reale. Ricupero aproximou-se de grupos cristãos, da Congregação Mariana, ambiente no qual sentia-se à vontade, discutindo temas de política.

            Por influência de um amigo optou para o Itamaraty. Preparou-se para um concurso dificilíssimo. Concorreu com candidatos preparadíssimos. Conta que, de todos eles, era o único que não conhecia a Europa. Dedica algumas páginas para falar de Guimarães Rosa, que à época revolucionava os exames, buscando um currículo oculto, que revelasse uma propensão para as humanidades e para a compreensão da condição humana. Essas páginas valem todo o livro. 

            Ricupero conta seu encontro com Marisa Parolari, com quem se casou. Descreve com nitidez São Paulo, onde casualmente encontrou Marisa depois de um tempo sem vê-la, no Viaduto do Chá. Como seria o entorno do Viaduto do Chá no fim dos anos cinquentas? 

            O autor também descreve o Rio de Janeiro do início da década de 1960. Morava na Rua Paissandu, tomava o bonde da Light, chegava na Cinelândia, almoçava na lanchonete da Mesbla, descia para a Rua Larga, e chegava no Palácio do Itamaraty. Por que nós brasileiros deixamos que o Rio de Janeiro se degradasse tanto, e que desse tempo muito pouco ficou?  

            Ricupero descreve seu encontro com Antonio Carlos Villaça, um de nossos mais importantes críticos, autor de “O Nariz do Morto”, fascinante depoimento memorialístico, prefaciado pelo embaixador Alberto Costa e Silva, na edição de 1970. Edmilson Caminha, um dos maiores conhecedores da obra de Villaça, e do próprio Villaça, pode confirmar a descrição que Ricúpero faz do nosso grande crítico. 

            O autor esteve em Brasília, logo após a inauguração. Descreve com precisão histórica o meteoro Jânio Quadros, a UDN de porre, na expressão sardônica de Afonso Arinos, que Ricúpero registra.

            Fico por aqui. Deixo apenas uma amostra do que o leitor encontrará nesse portentoso livro. Resenhei até 1961 e o livro vai até dois mil e ontem. Trata-se de um registro autobiográfico que se aproxima do registro de Roberto Campos (Lanterna na Popa). Dois grandes brasileiros, vindos de baixo, bem de baixo, mas que triunfaram pelo esforço, pela dedicação, pela inteligência e pela devoção ao que mais singulariza nossa condição: a cultura. 

 

Eleições na Venezuela: resultados conferidos pelo sistema Alta Vista

 AltaVista PVT Results

O AltaVista é uma iniciativa independente de Tabulação Paralela de Votos, administrada pela sociedade civil, projetada para produzir uma estimativa verificável e cientificamente precisa da contagem nacional de votos das eleições venezuelanas de 28 de julho de 2024.

Os números abaixo são uma projeção ponderada dos resultados da participação nacional de votos. Eles são extrapolados a partir dos recibos oficiais de contagem de votos registrados após a conclusão da votação em uma amostra representativa de centros de votação locais. Os cálculos projetados de proporção de votos e margem de erro são atualizados em tempo real à medida que os dados de origem são recebidos e validados.

A metodologia de amostragem, projeção e margem de erro foi validada de forma independente pelos principais especialistas acadêmicos (123) e está pré-registrada na Open Science Foundation, juntamente com todos os dados subjacentes necessários para replicar e validar a seleção da amostra e as estimativas de votação. A metodologia está detalhada aqui. Observe que a projeção da parcela de votos de cada candidato tem sua própria margem de erro para considerar estatisticamente a variabilidade de cada total de votos separado.

Fotografias originais dos recibos oficiais de contagem de votos dos centros de votação da amostra representativa estão disponíveis abaixo para verificação.

 

Tabela de participação nos votos

Candidate

Vote Share

González

66.12%

Maduro

31.39%

Other

2.49%

 

Resultados por estrato

A amostra do AltaVista usa dados históricos oficiais da votação venezuelana para dividir todos os centros de votação locais em 7 estratos de tamanho igual, ordenados do menor para o maior apoio ao regime atual. As estações da amostra são selecionadas uniformemente de todos os 7 estratos de apoio, e as projeções nacionais são ponderadas em tempo real para refletir a distribuição dos dados disponíveis em todos os estratos. Todos os resultados históricos oficiais de votação usados para criar esses estratos estão disponíveis publicamente como parte da documentação do projeto AltaVista aqui.

 

Arnaldo Godoy relê o discurso de posse na ABL de Pontes de Miranda (Conjur)

EMBARGOS CULTURAIS

Discurso de posse de Pontes de Miranda na Academia Brasileira de Letras

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Conjur, 28/07/2024

O jurista alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979) deixou-nos portentosa obra. Eu levaria uma vida para lê-la. E mais do que dez vidas para escrevê-la, isto é, se conseguisse. Eu não tenho competência para tanto. Nem mesmo em dez vidas, que é um número cabalístico para o Tiradentes, creio que conseguiria. Quem não se lembra? Tiradentes, marca certa tradição, teria afirmado que dez vidas tivesse, dez vidas daria, pelo ideal pelo qual morria. Para as pessoas comuns, precisamos mais do que dez vidas para escrevermos uma obra tão vasta e profunda.

Pontes de Miranda era um polímata (no sentido que Peter Burke dá ao termo, isto é, interessava-se por todos os campos do saber). Foi empossado na Academia Brasileira de Letras, em 8 de março de 1979. Tinha 87 anos. Nos embargos culturais dessa semana comento o discurso de posse de Pontes de Miranda na ABL. É uma contribuição aos trabalhos de Fábio Coutinho, que estuda a presença dos juristas no “Petit Trianon”. Pontes de Miranda ocupou a Cadeira 7, cujo patrono é Castro Alves.

Um estudo biográfico de Pontes de Miranda (e o grande especialista no assunto hoje é o jovem advogado e pesquisador Ednardo Benevides) revela que o jurista nunca se candidatou a cargos ou funções, embora tenha sido desembargador no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. No entanto, e quando se falava de cultura desinteressada a coisa muda, candidatou-se à ABL, mais de uma vez. Foi preterido em duas ocasiões. A escolha ocorreu na terceira tentativa. É o que lemos no discurso:

Nunca, em toda a minha vida, me candidatei a qualquer cargo ou função, aqui ou no estrangeiro. Os que exerci no Poder Judiciário e no Ministério das Relações Exteriores, de que sou aposentado, me foram excepcionalmente destinados, sem concurso e sem pedido meu. Nas próprias Academias de que faço parte, ou fui um dos fundadores, ou incluído apenas mediante consulta que me fizeram. (…). Estou a dizer-vos isso, eminentes acadêmicos, para frisar que só me candidatei, em toda a vida, a esta Academia. Nela fui preterido, uma vez, há mais de meio século, quando era jovem, e recentemente, de novo estimulado por alguns amigos, voltei a concorrer e, pela segunda vez perdi. Quando ia atingir os 87 anos, candidatei-me, espontaneamente, pela terceira vez, e fui eleito. (…)”

Pontes de Miranda enfatizou a missão histórica e intelectual da ABL

Reafirmou compromissos com valores fundamentais, a exemplo da democracia, da liberdade e da igualdade. Tenho comigo um livro de Pontes de Miranda, publicado em 1933, com o sugestivo título de “Os Novos Direitos do Homem”. O autor discutia a crise do Estado, o problema das autocracias (Hitler ascendia na Alemanha), uma certa incapacidade de a democracia representativa fixar uma ordem que reputava necessária, a relação da liberdade com a lei. Discutia nesse precioso livro a confusão do lógico com o justo, que reputava como um vício recorrente nos juristas.

Seguindo o padrão de discurso do acadêmico que toma posse, Pontes de Miranda elogiou o patrono da cadeira que passaria a ocupar. Homenageou Castro Alves. Fez uma referência ao poema “A Cachoeira de Paulo Afonso”. O poema narra a história de Maria e Lucas. Lucas buscava vingança contra o senhor dos escravos, mas descobre que este é seu irmão. Maria e Lucas acabam se suicidando na cachoeira. Pontes de Miranda reputava Castro Alves como uma das maiores inteligências do Brasil. E perguntava o que mais ele poderia ter feito se tivesse vivido mais tempo.

Pontes de Miranda também reverenciou aos demais ocupantes da Cadeira 7: Costa Magalhães, Euclides da Cunha, Afrânio Peixoto, Afonso Pena Júnior e o próprio Hermes de Lima, a quem se referiu da forma que copio em seguida:

Nascido em 1902, Hermes Lima estudou profundamente e ingressou na Faculdade de Direito em 1920 (…) Em 1924, antes de completar os 23 anos, Hermes Lima foi eleito deputado da Assembleia Legislativa da Bahia. (…) No ano de 1925, já em São Paulo, candidatou-se à Cátedra de Direito Constitucional, com duas brilhantes teses, Princípios Constitucionais e Direito da Revolução. (…) Vindo para o Rio de Janeiro disputou, em 1933, a cátedra de Introdução à Ciência do Direito, com a tese “Material para um Conceito de Direito”. O brilho das aulas e a maneira de ajustar-se aos estudantes e de ajustá-los à sua missão levaram-no a criar admiradores e adversários. (…) Com o motim de 1935, injustamente foi preso. (…) Quero apenas acrescentar que este foi o homem, o intelectual, que os ilustres acadêmicos conheceram, e o homem, o intelectual, o amigo, que conheci. (…)”

Na parte final do discurso Pontes de Miranda revela e comprova cultura enciclopédica aludindo às várias academias, de todos os tempos. Lembrou inicialmente a Academia da História Portuguesa, criada em 1720 e a Academia de Ciências de Lisboa, de 1779. Chamou a memória que no século III vários acadêmicos se reuniam no Museu de Alexandria. Mencionou os acadêmicos de Granada e de Córdoba.

Fez referências à Academia de Nápoles (1433); à Academia Platônica (fundada em 1474 por Lorenzo de Médici); à Academia Científica, de 1603, de que foi membro Galileu; à Real Academia de Ciências, de 1757; à Academia Francesa, de 1635; à Real Academia de Ciências fundada na Alemanha, em 1700, planejada por Leibniz; à Academia Imperial de Ciência de São Petersburgo, Rússia, que Catarina I instalou em 1725.

Lembrou que os norte-americanos fundaram a Sociedade Filosófica de Filadélfia, em 1727, a Academia de Artes e Ciências de Boston, em 1780, entre outras. Fechou esse ponto fazendo referências à experiência brasileira:

No Brasil, houve e há, felizmente, muitas Academias. A Academia Brasileira da Bahia foi criada em 1724, dita dos Esquecidos, e a do Rio de Janeiro, a dos Felizes, em 1736, bem como a dos Seletos, em 1751. Em 1791, teve o Rio de Janeiro a Academia Científica; em 1786, a Sociedade Literária. Em 1896, criou-se a Academia Brasileira de Letras em que nos achamos. Todos nós, seres humanos, somos mortais; a Academia, não. O que se deve aos patronos das Cadeiras, aos fundadores e aos sucessores, inclusive aos atuais ocupantes, bem mostra o que o Brasil fez pela Academia.

O discurso é simples, curto, objetivo, preciso. Pontes de Miranda encerrou registrando que ali estava para uma convivência intelectual e afetuosa, bem como agradecia os presentes pela atenção para com a sessão de posse. Um discurso marcado pelo afeto e pela adesão incondicional à cultura e ao pensamento, exatamente como foi a vida desse jurista incomparável.

A QUESTÃO DA UCRÂNIA – EVENTUAL RETORNO DA BELARUS COMO CENTRO DE NEGOCIAÇÕES - Paulo Pinto

A QUESTÃO DA UCRÂNIA – EVENTUAL RETORNO DA BELARUS COMO CENTRO DE NEGOCIAÇÕES

Paulo Pinto
Embaixador do Brasil aposentado. Percursos diplomáticos diferenciados.

O ingresso da Belarus, no mês passado, na “Shanghai Cooperation Organization” (SCO), foi noticiado apenas como fato de que “mais um governo autoritário” aderia a projeto sino-russo para o controle sobre a Ásia Central.

Peço vênia para refletir sobre como a adesão de um “país europeu” à SCO reforça a possibilidade de que Minsk (capital bielorrussa) recupere a credencial para sediar - conforme ocorrido entre 2014 e 2022 - processo de negociação com vistas ao término do conflito russo-ucraniano.

Seria, nessa perspectiva, um compromisso para que as partes envolvidas no conflito venham a sentar-se ao redor de uma mesa que já serviu, na mesma cidade, durante o período assinalado acima, para que, então, se decidisse quanto a uma agenda a ser aceita pelos combatentes.

Simbolizaria, também, a abertura de espaços a articulações para a solução de conflitos, que não se resumam à disputa entre formas de governança ou modelos econômicos predominantes no ordenamento mundial vigente a partir de 1945, com a fundação da Organização das Nações Unidas.

Nas palavras do Embaixador Celso Amorim, “o mundo não pode mais ser visto e ditado pelo G-7”, referindo-se ao grupo das sete nações mais desenvolvidas do mundo. Caberia, assim, pensar na reforma dos foros de poder global, como a ONU, para garantir maior participação de países que não apenas as grandes potências ocidentais. Seria possível, nessa perspectiva, voltar a refletir sobre propostas recentes para a solução de guerras atuais, no âmbito e envolvendo atores de suas respectivas regiões.

Para a análise desta hipótese, cabe, inicialmente, lembrar que a SCO – citada no parágrafo inicial - pretende contribuir, segundo visão de Moscou e Pequim, para uma “nova ordem internacional”. Este processo afetaria o espaço chamado de “Eurásia”, sob os auspícios de Rússia e China.

Uma vez formalmente integrada, Minsk, capital europeia naquele bloco euroasiático, poderia retomar a condição de sede – sem ser protagonista principal – de negociações envolvendo a Rússia, um dos patrocinadores principais do projeto eurasiano. A Ucrânia, neste caso, é vítima de objetivo de Moscou que, pela força, pretende incluí-la nesta proposta de ordenamento internacional, sem que sejam considerados valores mundialmente conquistados, como o respeito à integridade territorial.

Isto é, durante sua reunião de cúpula anual, realizada em julho, no Cazaquistão, dirigentes russos e chineses, buscaram transformar a SCO de um “bloco de segurança regional” em área geopolítica para chamar de sua, regida por instituições políticas com características distintas das que regem grupos de países do chamado “mundo ocidental”.

Não se trata, nessa perspectiva, apenas da integração de mais um parceiro de governo autoritário, como ocorreu com o Iran, que aderiu à SCO no ano passado. A Belarus, segundo seus vizinhos ocidentais, é regida também por governo autoritário, mas situa-se na “fronteira da Europa Ocidental com a Rússia” (conforme a definem capitais da Europa Ocidental). Fica fortalecido, assim, o conceito “eurasiano” da SCO.

Caberia recordar as linhas gerais da evolução das siglas e agrupamentos regionais objetos desta reflexão. Assim, em 1996, formalizou-se a cooperação entre China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão num “Grupo dos Cinco de Xangai”. Em 2001, evoluiu-se para a já mencionada Organização para Cooperação de Xangai (na sigla inglesa SCO).

A SCO foi criada, sob a liderança de Pequim e participação de Moscou e capitais dos países acima mencionados, com o objetivo de combater eventual instabilidade na Ásia Central, enquanto mantinha afastada a influência de “atores externos”, tais como a União Europeia e os EUA. É possível enfatizar que, gradativamente, a SCO evoluiria - conforme se busca identificar neste texto – no sentido de foro ideal para solução de conflitos envolvendo a Rússia, como a questão atual da Ucrânia.

A SCO também objetiva a “facilitação de ações conjuntas que visem o fortalecimento da paz e a promoção da segurança e estabilidade”. Quando de sua criação, a organização foi motivada pela “Guerra contra o Terror” desencadeada pelos Estados Unidos e OTAN, após os ataques contra as Torres Gêmeas em Nova York.

Moscou e Pequim, então, consideraram que as represálias contra organizações terroristas islâmicas transnacionais apareceram como uma espécie de “guerra civilizacional”, que poderiam radicalizar grupos islâmicos, então tidos como moderados, em seus respectivos territórios, como movimentos separatistas em Chechênia e Xinjiang.

Nessa perspectiva, cabe lembrar que, segundo alguns setores de opinião, Moscou continuaria a apegar-se à noção de que um ordenamento mundial, que lhe seja conveniente, exigiria a manutenção de seu controle sobre a Eurásia, particularmente no que diz respeito aos antigos participantes da URSS, no contexto das preocupações de segurança herdadas do Império Russo e da União Soviética.

A Rússia, portanto, não trata os “Estados pós-soviéticos” como realmente soberanos e Moscou acredita permanecer no direito de ditar-lhes escolhas políticas. Explica-se, assim, a intervenção russa na Georgia, em 2008, quando ocupou as regiões de Ossetia do Sul e Abkhazia, naquele país, bem como a ocupação da Crimeia, na Ucrânia, em 2014, além da operação militar contra este país, em 2022.

De sua parte, a RPC tem visão sobre uma ordem mundial distinta da Rússia. Para os chineses busca-se o retorno ao equilíbrio duramente conquistado durante o período que consideram de hegemonia civilizacional do “Império do Meio” (denominação da China vigente na “antiguidade”). Durante esta época, consideram alguns estudiosos, a China detinha legitimidade histórica para ser a potência predominante na “Ásia” e no Pacífico Ocidental, exercendo uma ordem mundial sino cêntrica.

Para a China, a integração da Eurásia é uma das prioridades de sua política externa. Em sua competição pela liderança política sobre a região com a Rússia, além de copatrocinar a SCO, Pequim investe pesadamente com seu projeto de integração econômica denominado “Cinturão e Rota das Sedas”.

Em 4 de fevereiro de 2022, foi assinado, na capital chinesa, o “Comunicado Conjunto da Federação Russa e da República Popular da China sobre as Relações Internacionais em direção a Nova Era e da Sustentabilidade Global do Desenvolvimento”. Surgiu a esperança de que, na Eurásia, pudesse consolidar-se, em favor da paz e da prosperidade, a “amizade eterna entre Putin e Xi Jinping”. Foi, então, acordado que “ambas as partes estão procurando avançar em seu trabalho de vincular os planos para o desenvolvimento da União Econômica Eurasiana, patrocinada por Moscou e a iniciativa do Cinturão e da Rota das Sedas, de Pequim, com vistas a intensificar a cooperação prática entre os projetos russos e chineses, de forma a promover maior integração entre a Ásia-Pacífico e a Eurásia”. O impasse recorrente da “operação militar especial russa” em território ucraniano, no entanto, não tem permitido a melhor definição de tais vínculos.

Ao contrário da diplomacia ocidental, contudo, enquanto os Estados Unidos e a União Europeia têm condenado e punido Moscou pela invasão à Ucrânia, a China não somente reforça a retórica de apoio à Rússia, como propõe uma reformulação da ordem internacional – sem que a ONU seja considerada como o foro para tais discussões.

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, já se referiu ao conflito no Leste da Europa como uma guerra entre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos EUA, e a Rússia, além de exaltar o elo entre Pequim e Moscou. “Uma importante lição do sucesso das relações entre China e Rússia é que os dois lados se mostram superiores ao modelo da aliança política e militar da era da Guerra Fria e se comprometem a desenvolver um novo modelo de relações internacionais baseado na não aliança, na não confrontação e em não visar terceiros países”.

A Questão da Ucrânia e os Acordos de Minsk

A atual questão da Ucrânia é a maior tragédia criada em país vizinho da Rússia, após a dissolução da União Soviética. Para a solução do conflito, foram concebidos os Acordos de Minsk. Assinados em 2014 e 2015 por representantes de Ucrânia, Rússia, França, Alemanha e das chamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, onde predominavam “russos do exterior próximo”. Os referidos documentos não conseguiram solução pacífica para o conflito em Donbass, na fronteira russo-ucraniana.

Em 22 de fevereiro de 2022, dois dias antes de começar sua “operação militar especial”, Moscou reconheceu a independência de Donbass e Putin esclareceu que a medida fora adotada porque Kiev afirmara publicamente que não cumpriria os Acordos de Minsk.

Lembra-se que, em fevereiro de 2014, o governo democraticamente eleito da Ucrânia fora derrubado pelo chamado movimento Euromaidan, que teria sido apoiado por potências ocidentais. O golpe desencadeou um conflito sangrento nas regiões orientais do país, onde parte da população – predominantemente de expressão russa – recusou a nova liderança de Kiev. Formaram-se, então, as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk (RPD e RPL, respectivamente). Kiev, então, tentou subjugar rapidamente as repúblicas recém-formadas por meios militares, sem sucesso. Não tendo conseguido vitória decisiva no campo de batalha, visto o apoio militar da Rússia aos dissidentes e o apelo das potências europeias por uma solução pacífica para o conflito, a Ucrânia recorreu a negociações. Estas foram dificultadas pela relutância do governo ucraniano em falar diretamente com os líderes de RPL e RPD.

Foram, então, formados o Grupo de Contato Trilateral sobre a Ucrânia, composto por Kiev, Moscou, Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e o Formato Normandia, incluindo Ucrânia, Rússia, Alemanha e França. Chegou-se, assim, ao que ficou conhecido como os Acordos de Minsk, por terem as negociações sido realizadas na capital bielorrussa, considerada terreno neutro.

O primeiro desses acordos, o Protocolo de Minsk, foi assinado em 5 de setembro de 2014. Diante da ausência de resultados positivos, foi realizada nova versão, conhecida como Acordos de Minsk-2, assinada em 12 de fevereiro de 2015. O acordo Minsk-2 foi firmado durante uma reunião do Formato da Normandia, que incluiu o presidente russo, Vladimir Putin, a então Chanceler alemã Ângela Merkel, o então presidente francês, François Hollande, e o então presidente ucraniano Pyotr Poroshenko. Nota-se, na perspectiva dos parágrafos iniciais acima, que se estabelecia, então, que solução do problema regional dependeria também da garantia de potências da Europa Ocidental, nos moldes do ordenamento definido nos anos pós-1945.

As partes prometeram: cessar-fogo e retirar suas forças da linha de contato; a presença de armas pesadas na área da zona-tampão foi estritamente proibida; os sistemas de foguetes de lançamento múltiplo Uragan e Smerch, bem como o de mísseis balísticos de curto alcance Tochka, deveriam ser retirados a 70 km da linha de contato; observadores da OSCE deveriam monitorar a implementação dessas regras; além da troca de prisioneiros de acordo com o princípio “todos por todos”, os lados foram obrigados a realizar a anistia dos capturados durante os confrontos armados; o lado ucraniano também deveria adotar a lei sobre o status especial dos distritos separados de RPL e RPD e realizar eleições locais, levando em consideração o posicionamento dos representantes de ambas as Repúblicas de Donbass. No dia seguinte às eleições, Kiev deveria assumir o controle total da fronteira estatal ucraniana; além disso, os Protocolos de Minsk estipulavam a implementação de uma reforma na Ucrânia, que previa a introdução de um conceito de descentralização na Constituição do país que deveria ter levado em consideração as especificidades de “certos distritos das regiões de Donetsk e Lugansk”.

Segundo Moscou, contudo, nos últimos cinco anos, “o lado ucraniano simplesmente se absteve de implementar as cláusulas políticas dos Acordos de Minsk, exigindo, em vez disso, que o controle da fronteira entre os territórios de RPL e RPD fosse entregue primeiro a Kiev”. Essas exigências, no entanto, foram rejeitadas pelas autoridades das ditas repúblicas e por Moscou, que suspeitava que, uma vez que as forças ucranianas assumissem o controle da fronteira e isolassem efetivamente as repúblicas do mundo exterior, Kiev poderia então tentar esmagar a oposição por meios militares. A RPD e a RPL, assim como a Rússia, também acusaram o governo ucraniano de ocupar assentamentos ilegalmente na zona-tampão e de colocar equipamento militar pesado na região. A situação foi ainda mais agravada pelo fato de que as potências ocidentais repetidamente fecharam os olhos à recusa de Kiev em aderir aos Acordos de Minsk, ao mesmo tempo em que repreendiam constantemente a RPD e a RPL por supostas violações dos mesmos acordos.

Em 21 de fevereiro de 2022, Putin assinou um decreto para reconhecer a independência das repúblicas de Donbass, que mais tarde se tornaram parte da Rússia. A iniciativa resultou em ataques ucranianos crescentes de bombardeios e sabotagem contra a RPL e a RPD. O decreto foi seguido por anúncio de Putin quanto ao início da operação militar especial russa contra a Ucrânia, em 24 de fevereiro.

O Papel da Belarus

“Bielorrussos são simplesmente russos, com um selo de qualidade”, assim definiu o Presidente Lukashenko, quando perguntado sobre diferenças entre os dois povos, por ocasião da Abertura do Parlamento de seu país, em 2016.

Sua afirmação, naquele momento – quando eu exercia o cargo de Embaixador em Minsk – pretendia indicar “wishful thinking” de que a preservação de valores e formas de governança da época estalinista, ainda em vigor, na Belarus, poderiam mesmo ser o caminho para um plano de integração euroasiática, nos termos propostos pelo Presidente Putin. Nesse processo, parecia acreditar, algumas práticas de organização política e econômica bielorrussas determinariam modelo civilizacional, diferente e melhor do que o adotado no Ocidente, conforme alardeado pelo líder russo.

No contexto do projeto euroasiático do Presidente Putin, a Belarus desejaria ser “o centro de integração das integrações”. Sobre o assunto, caberia o aproveitamento da moldura da Comunidade de Estados Independentes – herdeira de países que formaram a URSS – estabelecida, em Minsk, em 8 de dezembro de 1991 – antes, portanto, da extinção da União Soviética.

Lembra-se que 11 antigos membros da URSS decidiram manter vínculos entre si, com o objetivo de estabelecer sistema econômico e de defesa entre antigas repúblicas da União Soviética. De qualquer forma, existem adormecidos na CEI – sempre repetindo que tem sede na capital bielorrussa – mecanismos de articulação que eventualmente poderiam ser acionados no que diz respeito a conflitos entre antigos camaradas soviéticos, como o da Questão da Ucrânia.

Minsk, nesse contexto, tem sido escolhida, em consenso com países ocidentais, como local para acordos destinados a negociar tais disputas. Não há protagonismo bielorrusso na busca de solução dos problemas. O papel de facilitador nas negociações, no entanto, eleva o perfil diplomático da Belarus no cenário mundial. Este país, sabe-se, é objeto de sanções internacionais por seu sistema de governo autoritário, que o leva a ser conhecido como “A Última Ditadura da Europa”.

No âmbito da Comunidade de Estados Independentes, foi assinada, em 15 de maio de 1992, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva por Armênia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tajiquistão e Uzbequistão, na cidade de Tashkent. O Azerbaijão assinou o tratado em 24 de setembro de 1993, a Geórgia em 9 de dezembro de 1993 e a Belarus em 31 de dezembro de 1993. O tratado entrou em vigor em 20 de abril de 1994. Sua fundação reafirmava o desejo dos Estados participantes em se abster do uso ou ameaça da força. Os signatários não poderiam aderir a outras alianças militares – como a OTAN – ou outros grupos de estados, enquanto a agressão contra um signatário seria percebida como uma agressão contra todos.

Até recentemente, os que tinham ouvido falar de Minsk sabiam apenas que Lee Oswald, antes de assassinar o Pres. Kennedy, havia residido e trabalhado naquela cidade. Além disso, confiava-se que, na ausência de uma máquina que viajasse ao passado, a alternativa seria ir à Belarus para conhecer uma “espécie jurássica de Homo Sovieticus”.

Hoje, poderia ser conveniente, estrategicamente, haver reflexão sobre a possibilidade de que a crise em curso na Ucrânia proporcione a elevação da Belarus de alvo de sanções para uma respeitável plataforma de reuniões de cúpula, com vistas a negociações pacíficas que envolvam seu entorno regional.

Nesse sentido, em linhas gerais, poder-se-ia considerar que o Ocidente apoie esforços do Presidente Lukashenko de fortalecer um estado bielorrusso, que seria neutro com relação à Rússia, enquanto seriam reduzidas as pressões para a liberalização da política interna daquele país.

Como cenário alternativo, há quem cogite que ocorra simplesmente a incorporação da Belarus à Rússia, que contaria, assim, com uma fronteira ainda mais próxima à União Europeia.

Retorna-se, neste ponto, à ideia de reanimar e fortalecer a Comunidade de Estados Independentes, com sede estabelecida em Minsk, a partir de 1991. A Belarus fica reforçada, nesta hipótese, por seu ingresso da SCO, tendo em vista o envolvimento da China.

Conforme sugerido acima, o arcabouço disponível na referida Comunidade, poderia sondar fórmulas para o debate de temas, como, por exemplo:

- O compromisso de que a não adesão ucraniana à OTAN pudesse permitir às convenções adormecidas na CEI levar a Rússia a retirar suas tropas das regiões da Ucrânia, Donbass e outras, que ocupara em 2022. Caberia, então, decidir se essas permaneceriam sob a soberania da Ucrânia, mas um grau mais elevado de autonomia lhes seria garantido.

- Poder-se-ia, também, considerar o congelamento da crise na Crimeia, anexada por Moscou em 2014. Ou seja, não haveria um reconhecimento internacional de que a região passe a fazer parte da Rússia. Seria necessário, contudo, não haver um questionamento sobre o fato de que, na prática, a região permaneceria controlada e administrada por Moscou.

- Haveria espaço, em compromissos assumidos no âmbito da CEI, sobre Direitos Humanos, para discutir o tema do emprego do idioma russo por aqueles que o tenham como parte de sua cultura original. Lembra-se que não apenas a Ucrânia é habitada por tais minorias.

- Seria garantida, ainda com maior ênfase, a segurança dos membros da CEI contra eventuais ameaças de países ou alianças militares vizinhas.

Nesse contexto, registra-se que, para alguns observadores, existe para a Rússia a dúvida quanto a sua inserção internacional, como um estado europeu ou eurasiano, com implicações na orientação de valores e busca de foro mais apropriado para a resolução de conflitos com países vizinhos.

Aqueles que seguem a opção por ser um estado europeu são reconhecidos como “pró-Ocidente” e enfatizam os atributos russos com características europeias, enquanto evitam seus traços eurasianos. De sua parte, contudo, os países europeus sempre consideraram a Rússia como um país diferente. Os russos, assim, se sentem rejeitados pelos europeus.

Tive a experiência pessoal, por ocasião de palestra que proferi na Universidade de Herzen, de São Petersburgo, em 2018. No período reservado a perguntas, uma aluna me perguntou se, naquela cidade, “eu me considerava na Europa ou na Rússia”. Respondi, diplomaticamente, que “me sentia na cidade russa mais europeia”.

Os russos eurosianistas insistem que seu país pertence nem à Europa, nem à Ásia, apesar de possuírem traços de personalidade europeus e asiáticos. Segundo esse ponto de vista, na medida em que seu país seja uma mistura de ambas as civilizações, deveria desempenhar papel importante na vinculação entre o Oriente e o Ocidente, garantir a segurança do “hinterland” da Ásia e da Europa e assegurar interesses estratégicos por meio de intercâmbio e cooperação entre países da Europa e da Ásia.

Assim, Moscou deveria atribuir importância à Comunidade de Estados Independentes (CEI), que abrange países de ambos os continentes. Daí, quando houver momento propício para eventual negociação de paz na questão da Ucrânia, reitero a importância da possibilidade de que se recorra a estruturas disponíveis em arcabouço deixado pela antiga União Soviética.

Tendo como capital a cidade de Minsk, a CEI é estruturada administrativamente por dois conselhos, sendo um composto por chefes de governo e outro por chefes de Estado.

Tive oportunidade de visitar a sede da CEI, em Minsk, a título de cortesia, enquanto fui Embaixador na Belarus, entre 2015 e 2019, e verifiquei que se trata de organização simbólica, que funcionaria como uma espécie de banco de reservas, onde permanecem disponíveis acordos, mecanismos de negociação e projetos da antiga URSS, que poderiam ser colocados em campo, caso alguma proposta de integração ou de resolução de conflito fosse realmente almejada.

Embaixadores dos países membros da referida comunidade, acreditados em Minsk, apresentam credenciais também ao Diretor da CEI. A lista de participantes tem variado, com inclusão ou separação de antigos membros da URSS, de acordo com dinâmica regional de aproximação ou distanciamento da Rússia. De qualquer forma, existem adormecidos na CEI mecanismos de articulação que eventualmente poderiam ser acionados no que diz respeito à Questão da Ucrânia.

Minsk, nesse contexto, tem sido escolhida, em consenso com países ocidentais, como local para acordos destinados a negociar disputas entre países membros da antiga União Soviética. Em certa medida, sugestão de esforço no sentido de valorizar tal organização semiadormecida poderia servir de aceno ao Presidente Putin, em seus devaneios de ressuscitar um projeto eurasiano, sob influência de Moscou.

Dessa forma, o dirigente russo poderia argumentar que eventuais negociações, no âmbito da CEI, em Minsk, incluindo países da Europa e Ásia, seriam vitória de iniciativa que a Rússia alegaria ser sua.


Estado, governo, partidos e Itamaraty: quão juntos ou quão separados? - Paulo Roberto de Almeida

Estado, governo, partidos e Itamaraty: juntos, separados, divididos?

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre a “osmose” entre o serviço diplomático e o governo e seus partidos de apoio, distinguindo a intromissão do PT e do bolsonarismo na política externa, de maneira ideológica e personalista.

Brasília, 1 de agosto de 2024

 

Dá para separar o governo do seu partido suporte e ambos da política do Itamaraty? Com base em minha experiência de 44 anos de diplomacia, desde a ditadura até Bolsonaro, posso afirmar que sob o lulopetismo isso é impossível, como também o foi no bolsolavismo diplomático. Segui de dentro as nuances e matizes da diplomacia em cada governo e já escrevi muito sobre isso, a mais recente neste livro: Apogeu e Demolição da Política Externa (2021).Transcrevo, in fine, o índice desse livro, que contém vários capítulos que podem demonstrar amplamente a contaminação da política externa e da própria diplomacia por governos ideológicos e sectários, como o foram Lula 1 e 2, Dilma (mas parcialmente, por total incompetência dela em assuntos externos), Bolsonaro (mais Ernesto Araujo do que Carlos França) e agora Lula 3. Mas tratarei de algumas questões de como isso se faz.

Já em 2006, portanto ainda na vigência do primeiro governo Lula – e eu estive afastado, por razões políticas, de qualquer cargo na Secretaria de Estado, durante os TREZE ANOS E MEIO dos governos petistas –, eu já me permiti fazer uma primeira reflexão sobre a questão chave desta nota: como separar, ou quão juntos estão, os papeis respectivos do corpo profissional da diplomacia das injunções, pressões, determinações do governo de ocasião, que acaba sendo o decisor máximo, em nome do Estado, pelas posturas assumidas pela diplomacia profissional no plano internacional (em alguns casos até deformando posições tradicionais de Estado), sem deixar de lado eventuais pressões partidárias sobre essas políticas, e que foram muito mais intensas sob o lulopetismo. O bolsonarismo (que ainda não existia quando escrevi essa reflexão) não tinha partido, só amadores incultos e despreparados para assuntos internacionais, inclusive o seu guru principal, Olavo de Carvalho. Este é o trabalho feito naquela ocasião: 

1693. “Uma reflexão pessoal sobre as relações entre Estado e governo (que também pode ser lida como uma declaração de princípios)”, Brasília, 2 dezembro 2006, 3 p. Sobre os dilemas do funcionário público em face de governos partidários. Publicado no Via Política (Porto Alegre, 3.12.06). Remanejado sob o título “O Estado, o Governo e o burocrata: alguns dilemas do serviço público” e publicado no site do Instituto Millenium (26.12.2006). Postado no blog Diplomatizzando (28/05/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/05/uma-reflexao-pessoal-sobre-as-relacoes.html). Incorporado ao volume Via Política (uma coletânea de artigos nesse blog político, publicado em formato Kindle em 2017). Relação de Publicados ns. 724 e 735.

 (...)


Ler a íntegra nest link: 

https://www.academia.edu/122508445/4715_Estado_governo_partidos_e_Itamaraty_juntos_separados_divididos_2024_



Irlanda: o desconforto da riqueza (2005) - Paulo Roberto de Almeida

 Irlanda: o desconforto da riqueza

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 8 de fevereiro de 2005.

 

            A Irlanda foi um dos países que mais cresceu nos últimos vinte anos. Partindo de patamares muito baixos de desenvolvimento – não considerando aqui a tradição secular de “exportação” de irlandeses por motivos de miséria econômica –, os progressos econômicos obtidos pela Irlanda foram particularmente impressionantes na última década do século XX, depois que o país se organizou para enfrentar os desafios de sua integração à Europa comunitária e à abertura de mercados prometida pelo Ato Único de 1986, que previa um mercado unificado em 1992. Entre 1991 e 2001, o PNB cresceu à média de 6,4% ao ano em termos reais, alcançando a média européia em 2003 (em termos de PIB, o crescimento foi ainda maior, pois o PIB per capita supera a média da UE em 15%, mas é preciso considerar que a Irlanda é um país de atração de investimentos estrangeiros, por excelência, o que diminui, portanto, o seu PNB em relação ao PIB). Ao mesmo tempo, o desemprego crônico, que existia anteriormente, foi sensivelmente reduzido, passando de uma média de 15% da PEA a menos de 4% no mesmo período. 

            Esses resultados se devem, segundo a análise de Marialuz Moreno Badia, do Departamento da Europa do FMI (boletim do FMI de 31 de janeiro de 2005, disponível no link: http://www.imf.org/external/pubs/ft/survey/spa/2005/013105S.pdf), à aplicação de políticas econômicas corretas, como a abertura comercial, a participação na UE e ao contexto econômico externo favorável. Em especial, o ingresso na união econômica e monetária da UE suscitou um forte decréscimo das taxas de juros reais e estimulou o investimento direto estrangeiro. A consolidação fiscal reduziu a dívida pública, que passou de 100% do PIB em 1988 para apenas 36% em 2001, e criou espaço para reformas tributárias que ampliaram os investimentos e o emprego. 

            A Irlanda pode estar vivendo hoje uma situação similar à da Holanda no século XVI, segundo a análise histórica de Simon Schama (The Embarassment of Riches), quando os holandeses dispunham de bastante conforto material, a ponto de poderem se entregar a luxos antes proibitivos, como o investimento em arte, em conforto pessoal e até em especulações em bolsa (como provado pela “febre das tulipas”, que provocou um dos primeiros estouros de “bolha financeira” já estudados pelos historiadores econômicos). Segundo um artigo recente na imprensa americana, os irlandeses poderiam estar vivendo uma “crise de identidade”, pois nunca antes tinham desfrutado de tal nível de vida.

            Em face dessa crise de identidade, como poderíamos situar o Brasil, com o seu “desconforto da miséria”? Segundo o presidente, a miséria atingiria algo como 44 milhões de brasileiros (ou 11 milhões de famílias, aquelas mesmas que ele pretende alcançar mediante o programa Fome Zero, englobado no Bolsa Família). A primeira providência para uma comparação objetiva entre esses dois “desconfortos” antitéticos seria analisar as causas da pobreza em ambos os países e as estratégias adotadas para superá-la. Ao que se conhece, a Irlanda não colocou em vigor nenhum programa de “alívio da fome”, embora tenha conhecido, no passado, episódios dramáticos de fome epidêmica, que determinaram a saída de centenas de milhares de irlandeses para outros países, os Estados Unidos em especial. 

O que a Irlanda fez, de verdade, foi ter decidido, pouco mais de duas décadas atrás, tornar-se um país desenvolvido. Para fazê-lo, ela tomou o caminho mais rápido, que não é o da distribuição de dinheiro para quem é pobre ou dispõe de rendimentos mínimos. Ela o fez, basicamente, pela via da educação nacional, a única rota segura para a elevação dos padrões de produtividade do trabalho humano, que por sua vez ainda é o caminho mais rápido para a elevação dos níveis de renda e de bem-estar material. O projeto nacional dos irlandeses foi assim, tão simplesmente, dar uma educação de qualidade a cada um dos seus filhos, prolongando a formação nas etapas técnico-profissional e depois universitária. Por certo, isto não foi tudo: eles também liberalizaram a economia e se abriram ao capital estrangeiro: de fato a Irlanda foi um dos países da Europa que mais recebeu investimento direto estrangeiro, em proporção do PIB, nos três últimos lustros. Esse investimento veio para a Irlanda porque tinha certeza de que iria encontrar um ambiente de negócios favorável e de que a mão-de-obra seria adequada para os empreendimentos relativamente sofisticados – geralmente na indústria eletrônica – que iriam ser estabelecidos. 

            E quanto ao Brasil, o que poderíamos dizer? O diagnóstico e, sobretudo, os prognósticos não são os mais favoráveis. Nossa mão-de-obra dispõe de escassos 4,3 anos de estudo, na média (contra algo como 9 anos para um operário coreano), o que é simplesmente inaceitável do ponto de vista do capitalismo moderno. O ambiente de negócios não é exatamente aquele que mais atrai investidores: segundo o Banco Mundial, o prazo médio para se abrir uma empresa vai a mais de 150 dias, e o de fechamento então se perde no horizonte do tempo. Encargos trabalhistas, contribuições previdenciárias, impostos diretos e indiretos, custo dos serviços que devem ser terceirizados, condições precárias de logística, intervencionismo excessivo e regulacionismo estatal exagerado são apenas alguns dos obstáculos que se antepõem a um ritmo sustentado de crescimento e expansão para qualquer empresário que se arrisca a tentar negócios no Brasil. 

            Temos, ao que parece um longo caminho pela frente antes de nos livrarmos do atual “desconforto da miséria”. Esta, em sua faceta mais extrema, não é exatamente devida à ausência de condições materiais para que a sociedade possa manter um processo sustentado de redistribuição de renda, mas mais exatamente à falta de qualificação geral de capacidade produtiva da maior parte da mão-de-obra, o que vale dizer, em primeiro lugar, de ausência de formação educacional dessa mesma população. O único projeto nacional que faz sentido, no Brasil, é o de um pacto pela qualidade do ensino. Assim, em lugar do “fome zero”, deveríamos estar pedindo “educação dez”. 

 

Paulo Roberto de Almeida

é sociólogo e diplomata.

(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

 

Venezuela’s Dictator Can’t Even Lie Well - Anne Applebaum (Open Letters)

 Venezuela’s Dictator Can’t Even Lie Well

Nicolas Maduro stole the election - or wants to - but that's not the end of the story 

Por que regimes autoritários se dão ao trabalho de fazer eleições? - Carlos Gustavo Poggio

 Por que regimes autoritários se dão ao trabalho de fazer eleições? 

Carlos Gustavo Poggio 

Quando discuto eleições no meu curso de Introdução à Ciência Política, começo falando sobre o papel das eleições em regimes autoritários. 

Por que governos como a Coreia do Norte, por exemplo, se dão ao trabalho de fazer eleições? 

Destaco aqui 3 motivos

Em uma democracia as eleições desempenham várias funções, sendo a mais importante delas a seleção dos líderes pelo público. Em governos nāo-democráticos isso nāo acontece: os resultados sāo pré-determinados. 

Mas o ritual eleitoral cumpre alguns papéis importantes nesses regimes:

1) Legitimação do Poder: Eleições criam aparência de governança democrática, conferindo uma fachada de legitimidade ao regime. 

Demonstram a "popularidade" e apoio ao líder, funcionando como ferramenta de propaganda para retratar o regime como legítimo.

2) Inclusāo seletiva: Partidos de oposição oferecem a ilusão de pluralismo político, mas são limitados e controlados pelo regime. 

O regime decide quais candidatos ou partidos podem participar, garantindo resultados predeterminados e controle sobre o processo.

3) Vigilância e controle social: Esse é um fator central, muitas vezes ignorado. Registros de eleitores e votação são usados para vigilância, identificando e monitorando dissidentes ou simpatizantes da oposição, que normalmente terminam presos, exilados ou mortos.


Agonia e morte do Mercosul? - Paulo Roberto de Almeida

Agonia e morte do Mercosul?

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Nota sobre os impasses atuais do processo de integração.

 

O que era para ser um projeto de abertura econômica e de liberalização comercial, com vistas a lograr a integração regional, sob a égide de instrumentos como o Tratado bilateral de integração econômica Brasil-Argentina (1988), a Ata de Buenos Aires (1990) e o Tratado quadrilateral de Assunção (1991) para a criação de um mercado comum, Mercosul, entre os quatro do Cone Sul, acabou sendo desviado de seus objetivos originais, por considerações políticas regressivas, protecionistas e introspectivas, desde o início dos anos 2000, com a chegada ao poder de Lula no Brasil e de Kirchner na Argentina, em 2003.

A partir daí foi uma marcha ladeira abaixo, onde tudo o que importava eram gestos de mero efeito político, sem qualquer avanço real no terreno econômico-comercial. Já em 2006, o líder fascista-bolivariano Hugo Chávez batia às portas do Mercosul, mas a Venezuela nunca cumpriu qualquer requisito técnico para integrar de verdade esse bloco. Acabou sendo admitida ilegalmente e irregularmente pelas duas presidentes da Argentina, Cristina Kirchner, e do Brasil, Dilma Rousseff, por ocasião da suspensão, também ilegal, do Paraguai, na cúpula a três de Mendoza, em 2012. Continuou não cumprindo os requisitos necessários para integrar a união aduaneira imperfeita do Mercosul, e por isso foi suspensa do bloco em 2017, não porque tenha infringido a débil “cláusula democrática” do bloco, como jornalistas mal informados equivocadamente repetem.

O bolsonarismo representou um golpe muito duro para os projetos brasileiros da área externa, não só para o Mercosul. O ministro da Economia do capitão incompetente também era um perfeito ignorante em matéria de políticas comerciais, e deixou avançar a deterioração do bloco comercial. Uma nova politização do Mercosul sob Lula 3, que sempre visou ilusões diferentes do lado das autocracias antiocidentais, assim como um ultraliberalismo ingênuo do lado argentino terminaram por inviabilizar completamente o projeto de mercado comum, ou sequer o mais modesto de uma união aduaneira parcial.

Para todos os efeitos políticos, o Mercosul já não é mais um bloco coeso, se alguma vez o foi. 

Argentina desandou bem antes de Milei, e o Brasil de Lula 3 optou decisivamente pelo Brics dominado pelas duas autocracias antiocidentais e seu tresloucado projeto de uma “nova ordem global multipolar”, supostamente mais “democrática” do que o bloco ocidental da UE e da Otan.

Sobraram de sensatos, no Mercosul, os dois menores. Que tenham sorte na política e no comércio mundial. 

É o fim de uma boa ideia!

RIP Mercosul

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4714, 1 agosto 2024, 2 p.