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terça-feira, 30 de março de 2021

Uma carta patética de renúncia do chanceler acidental - Paulo Roberto de Almeida

 Uma carta patética de renúncia do chanceler acidental

 

Paulo Roberto de Almeida

 

 

A inacreditavelmente patética carta do ex-chanceler acidental Ernesto Araújo (reproduzida in fine), sem qualquer dúvida o PIOR ministro das Relações Exteriores de toda a história independente do Brasil – e também do curto período de ministério dos Negócios Estrangeiros português já instalado no Rio de Janeiro desde 1808 –, colocando seu cargo à disposição do chefe de governo contém unicamente falácias e inverdades, sendo todo o seu conteúdo inapelavelmente falso e ridículo, como vou demonstrar nesta nota.

Numa entrevista ao jornal O Estado de São Paulo alguns dias antes, o infeliz e desequilibrado diplomata – cujo epitáfio na tumba deveria ser: “Aqui jaz um pária” – havia dito duas únicas verdades, que o jornal não deixou de sublinhar em seu editorial desta terça-feira, 30 de março de 2021, dedicado à sua saída. Seleciono imediatamente essas únicas frases que expressam alguma verdade, para depois me dedicar a desmontar mais um instrumento da série de falsificações que o submisso funcionário de uma família de ineptos conduziu na provecta instituição também conhecida como a Casa de Rio Branco. Eis as passagens: 

“O presidente Bolsonaro tem confiança no meu trabalho. Meu trabalho não é meu, é a implementação de uma agenda de política externa que o presidente traz desde a campanha. (...) Tenho respaldo (de Bolsonaro) porque desde o começo sempre propus ao presidente maneiras de implementar as ideias dele. (...) O presidente me nomeou por causa do meu compromisso de fazer a política que ele queria, implementar as coisas que ele quer, a visão de mundo”. 

Fecho as citações dessa entrevista que precedeu os últimos desastres conduzidos pelo destrambelhado diplomata colocado como um marionete de ocasião à frente do Itamaraty, e passo a examinar sua carta-renúncia de 29/03/2021.


1) No cargo..., lutei desde o início pela liberdade e dignidade do Brasil e do povo brasileiro, pela nossa soberania e grandeza em todos os aspectos.

 

PRA: Não, rigorosamente não. Conceitos abstratos como “liberdade” e “dignidade” são usados abusivamente por qualquer um desses ditadores de opereta que infernizam a vida de tantos povos, pois que fazem exatamente o contrário, ao retirar-lhes a liberdade e qualquer resto de dignidade. O chanceler, como sofista que é, seguindo nisso seu destrambelhado guru expatriado, o Rasputin de Subúrbio refugiado no exterior, pensa que engana o distinto público ao distorcer o vocabulário. Sem tem uma coisa que ele não defendeu, mas invariavelmente se empenhou em destruir, foi a soberania e a grandeza do Brasil, ao colocar a política externa e a diplomacia a serviço de um dirigente estrangeiro, nisso adotando para si o patético slogan de seu inepto chefe, que chegou a proclamar seriamente: “I love you Trump!”

 

2) Procurei... colocar o Itamaraty a serviço do sonho de um novo Brasil.

 

PRA: Esse “sonho” do desvairado chanceler acidental foi um pesadelo para a quase totalidade dos diplomatas profissionais, que viram o Brasil diminuir a olhos vistos no cenário internacional, até ser reduzido à condição de verdadeiro pária, numa obra conjunta dirigida pelo inepto chefe de governo, sendo que o submisso chanceler acidental era vigiado de longe pelo subsofista da Virgínia e administrado de perto pelo Bananinha 03 e pelo fanático fundamentalista conhecido como Robespirralho. O que ele fez, sim, foi colocar o Itamaraty a serviço de Trump, do ex-conselheiro de Segurança Nacional John Bolton e do igualmente patético e mentiroso Secretário de Estado americano, Mike Pompeo, com os quais tratou do brancaleônico projeto de “invasão humanitária” da Venezuela, para tentar derrocar o governo Maduro. O que ele fez, de fato, foi reduzir o Brasil a um grau de subordinação automática ao governo Trump, o que jamais ocorreu em qualquer momento da Guerra Fria ou da política oficial de Estado no auge da luta contra o “comunismo mundial”. EA, na verdade, alienou completamente a soberania do Brasil a um governo estrangeiro.

 

3) Nessa luta, deparei-me... com correntes frontalmente adversas.

 

PRA: O ex-chanceler acidental é modesto: não foram apenas “correntes”. Jamais ocorreu na história da política externa uma tal unanimidade contra uma política externa subserviente e totalmente contrária aos interesses concretos do Brasil: desde o início, os mais diferentes setores da economia brasileira, da academia e da cultura, da mídia e da opinião pública em geral, alertaram contra as posturas absurdas que estavam sendo sugeridos ou implementados, e se opuseram contra as medidas mais estranhas e prejudiciais a esses interesses. Em raras ocasiões da história política do Brasil desde a independência se registrou tamanha oposição às orientações estapafúrdias do governo. 

 

4) Ergueu-se contra mim uma narrativa falsa e hipócrita, a serviço de interesses escusos nacionais e estrangeiros, segundo a qual minha atuação prejudicaria a obtenção de vacinas.

 

PRA: O ex-chanceler acidental se engana e pretende enganar novamente: todos aqueles preocupados com os reais interesses do país não deixaram de alertar o quanto a sua política externa caótica, feita de agressividade contra os que não partilham de suas teorias conspiratórias, levantou oposição em praticamente todos os setores, sobretudo quanto a ausência completa de uma política concreta de combate à pandemia, e em face da total inoperância do chanceler e do Itamaraty na mobilização de apoios a um programa de prevenção e vacinação que simplesmente não existia, e de um rotundo fracasso na obtenção de um volume suficiente de vacinas, fracasso que é igualmente partilhado com os incompetentes do Ministério da Saúde (mas que, em última instância pode ser atribuído ao negacionismo persistente do chefe de governo).

 

5) ... infelizmente, neste momento da vida nacional, a verdade não importa para as correntes que querem de volta o poder – esse poder que, durante as décadas em que o exerceram, só trouxe ao Brasil atraso, corrupção e desgraça.

 

PRA: A únicas correntes que já trouxeram, de fato, atraso (que é a volta a um tipo de anacronismo anti-iluminista), corrupção (ainda que familiar) e desgraça (e não só por causa da pandemia, mas no armamentismo, na flexibilização dos controles ambientais e do tráfico), foram e são os fanáticos do bolsonarismo mais ignorante e grosseiro, ao qual o chanceler se tem esforçado para se alinhar completamente (inclusive gritando “MITO!”, “MITO!”) e com isso se rebaixa intelectualmente, numa triste demonstração de como maças podres conseguem contaminar todas as outras. Não se tem notícias de que forças políticas adversas ao desgoverno do capitão estejam ativamente empenhados em tirá-lo do poder: nenhum das seis dezenas dos pedidos de impeachment foi sequer considerado pelo anterior ou atual presidente da CD.

E agora chegamos ao ponto alto da alucinante e alucinada carta do chanceler: 

 

6) A verdade liberta e a mentira escraviza. Hoje, a mentira é despudoradamente utilizada para um projeto materialista que visa a escravizar o Brasil e os brasileiros, a escravizar o próprio ser humano e roubá-lo de sua dignidade material e, principalmente, espiritual.

 

PRA: O infeliz e fracassado diplomata, guindado por engano e de forma fraudulenta (uma vez que EA mentiu para o presidente e para os seus patrocinadores), acredita que só ele tem o direito de distinguir entre a verdade e a mentira, o que é próprio dos egocêntricos e dos autoritários. Mas ele vai além: ele pretende que só eles podem ter o monopólio da salvação do país e da população, como se o Brasil e os brasileiros estivéssemos ameaçados a cair sob o domínio de alguma ditadura comunista, caso os ineptos do poder atual não possam impor sua versão dos fatos, a sua “verdade”. EA fez isso diversas vezes ao longo de seus infelizes dois anos à frente do Itamaraty, e não só em direção ao público interno, mas também em direção ao mundo. Ele pensa que engana o público em geral, quando suas mensagens se dirigem mais especialmente aos grupos de fiéis apoiadores do presidente atual. Numa palavra: ele é patético.

Finalmente, o chanceler acidental (e agora acidentado) conclui sua carta ao “querido Chefe”, em tom lacrimoso, dizendo que tem amor ao Brasil e ao seus povo, e que pretende continuar lutando em favor desse povo “até o fim dos meus (seus) dias”. Pode até ser, mas dificilmente ele o fará novamente nos quadros do Itamaraty ou do Serviço Exterior brasileiro, instituição que ele diminuiu sistematicamente, ao colocá-la a serviço de um pequeno grupo de aloprados, humilhando, no mesmo movimento, seus colegas profissionais de carreira. O ministério foi praticamente demolido pela desastrosa gestão do pior chanceler de toda a história independente do Brasil: o processo de reconstrução da política externa e de restauração da diplomacia será duro, lento e longo, pois que a demolição foi muito profunda, como argumentei em um livro precedente: Uma certa ideia do Itamaraty.

Se eu fosse macabro, o que não sou, eu apenas diria a EA: descanse em paz, e leve consigo seu título de pária, pois que ele não cabe ao Brasil e aos brasileiros. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 30 de março de 2021

 



segunda-feira, 29 de março de 2021

Para diplomatas, saída de Araújo não basta, e política externa precisa de reconstrução completa - Henrique Gomes Batista e Janaína Figueiredo (O Globo)

 Para diplomatas, saída de Araújo não basta, e política externa precisa de reconstrução completa

Por mais que acalme os ânimos entre Planalto e Congresso, saída do chanceler ressalta legado que virou a tradição diplomática brasileira do avesso

Henrique Gomes Batista e Janaína Figueiredo

O Globo, 29/03/2021 - 12:17 / Atualizado em 29/03/2021 - 12:57

https://oglobo.globo.com/mundo/2273-para-diplomatas-saida-de-araujo-nao-basta-politica-externa-precisa-de-reconstrucao-completa-24946047?utm_source=notificacao-geral&utm_medium=notificacao-browser&utm_campaign=O%20Globo

 

Ex-chanceler Ernesto Araujo durante entrevista coletiva no Palácio do Itamaraty, em Brasília Foto: ADRIANO MACHADO / REUTERS/2-3-21

Ex-chanceler Ernesto Araujo durante entrevista coletiva no Palácio do Itamaraty, em Brasília Foto: ADRIANO MACHADO / REUTERS/2-3-21

 

SÃO PAULO E RIO — Politicamente, a saída de Ernesto Araújo do Ministério das Relações Exteriores pode acalmar os ânimos entre o governo Bolsonaro e o Congresso. Mas, para diplomatas brasileiros, caso o presidente Jair Bolsonaro aceite seu pedido de demissão, este será o primeiro passo de um longo caminho para consertar problemas criados em seus dois anos à frente do Itamaraty. O GLOBO ouviu 11 diplomatas da ativa que servem em diferentes países nas Américas, no Oriente Médio e na Ásia sobre o legado de Araújo. Na avaliação deles, será necessária uma reconstrução completa da política externa do país, tanto das relações bilaterais com parceiros importantes, como EUA, China e Argentina, quanto com a União Europeia e organismos multilaterais. 

Para um embaixador — que, como os demais ouvidos, falou sob anonimato devido à hierarquia rígida do Itamaraty e ao temor de represálias — sob a gestão de Araújo “o Brasil deixou de ser um parceiro confiável”, ao mudar posições tradicionais da diplomacia brasileira sem propor políticas claras em seu lugar.

Se no Senado a disputa gira em torno da suposta inoperância do Itamaraty na compra de vacinas e insumos para imunizantes, entre os diplomatas o que mais impacta “é o conjunto da obra” de Araújo. Embora a troca, se confirmada, possa ter simbolismo forte, dizem, ela não é suficiente para gerar uma mudança de percepção em relação ao Brasil.

Isso decorre de posições como ser contra a quebra de patente de vacinas — defendida por indianos e africanos na Organização Mundial do Comércio (OMC) —; sugerir a mudança da embaixada em Israel para Jerusalém, o que desagrada países árabes; escancarar preferências político-partidárias que foram derrotadas em eleições nos EUA e na Argentina; questionar a ciência sobre as mudanças climáticas e relativizar as posições sobre meio ambiente, o que provocou choque com os europeus; alinhar-se aos EUA de Trump para eleger o primeiro não latino-americano para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); e imprimir uma carga ideológica à relação com os chineses, o maior parceiro comercial do Brasil.  

Como resumiu uma embaixadora da ativa, “Jair Bolsonaro prometeu uma diplomacia sem ideologia e, com Ernesto Araújo, entregou ideologia sem diplomacia”.  Isso, segundo ela,  “não é simples de ser alterado, sua substituição não resolve os problemas automaticamente”.

Um dos diplomatas ouvidos comentou a campanha do Brasil para voltar neste ano a ser eleito membro não permanente do Conselho de Segurança, depois de um hiato de 10 anos. Embora seja provável que o país alcance o número de votos necessários para isso, dado o seu peso regional, ele relata que, diante das críticas de Araújo ao chamado “globalismo” —  representado justamente pelas instituições multilaterais —, a reação dos interlocutores estrangeiros é: “Vocês acham mesmo que têm condições?”

Os diplomatas citaram derrotas recentes do Brasil em eleições para organismos internacionais como sinal de perda de força do país. Em fevereiro, o colombiano Juan Carlos Salazar foi eleito o novo secretário-geral da Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci),  contra a candidatura do brigadeiro brasileiro Ary Rodrigues Bertolino, que nem sequer foi para o segundo turno. No fim de 2020, a desembargadora Mônica Sifuentes não conseguiu os votos suficientes para ser eleita juíza do Tribunal Penal Internacional, em Haia.


Relação conturbada com os EUA

Os entrevistados afirmaram que, embora o governo de Joe Biden não vá optar em um primeiro momento por retaliações diretas ao Brasil, a relação entre os dois governos tende a ser fria. A demora do Brasil em reconhecer a vitória de Biden e o endosso à falsa tese de que houve fraude na eleição em Donald Trump foi derrotado pesarão no relacionamento. Eles lembram que o próprio Araújo, a poucos dias da posse de Biden, sugeriu que a invasão do Congresso para impedir a homologação da vitória do democrata no Colégio Eleitoral foi obra de “infiltrados” — tese que na época circulou na extrema direita americana e que foi desmentida pelo FBI, a polícia federal dos EUA.

Como notou um dos diplomatas, “o posicionamento foi mais radical que o de muitos republicanos".  Em fevereiro, o senador democrata Bob Menendez, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa, mandou carta ao governo brasileiro pedindo uma condenação explícita da invasão do Capitólio. A carta afirmava que o relacionamento com o Brasil sairá prejudicado se o governo brasileiro não condenar a “incitação à violência e os ataques contra a democracia americana”.


No caso da Argentina, a orientação do ministro à Embaixada do Brasil em Buenos Aires foi clara: evitar contatos com o então candidato da centro-esquerda Alberto Fernández, nas eleições de 2019. A ordem colocou o então embaixador em Buenos Aires, Sergio Danese,  em uma saia justa. Criou-se um mal estar entre o diplomata e a campanha de Fernández que demorou mais de um ano para ser superado.

Além das articulações contra o regime de Nicolás Maduro na Venezuela, o chanceler nunca demonstrou interesse em cultivar o relacionamento com os demais países da América do Sul. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, exercer a liderança no entorno sul-americano, mediando crises e articulando políticas comuns, era uma ambição e um objetivo do Brasil. Como disse um dos embaixadores, “ignorar a política sul-americana é absurdo, a menos que exista a possibilidade de mudar o Brasil de continente”.


Autonomia em xeque

A perda de peso e de voz do Brasil em debates ambientais, apontaram os entrevistados, praticamente inviabiliza, no momento, a ratificação pelos países europeus do acordo comercial firmado em 2019 entre o Mercosul e a União Europeia. Além disso, o país perdeu dinheiro quando Alemanha e Noruega suspenderam suas contribuições para o Fundo Amazônia, depois que o ministério sob o comando de Ricardo Salles fez mudanças unilaterais no conselho do fundo.

Na relação com a China, Araújo chegou a pedir a cabeça do embaixador do país, Yang Wanming, para defender o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, que havia atacado Pequim nas redes sociais. O fato de o chanceler insinuar que os senadores se voltaram contra ele para defender a presença da chinesa Huawei na instalação da rede brasileira de telefonia 5G também pesa, embora os chineses se mantenham discretos sobre essas crises e neguem qualquer intenção de represália — na avaliação de interlocutores da China, isso ocorre porque Pequim pensa em longo prazo, e vê o governo Bolsonaro como um “acidente de percurso” na relação bilateral.

Entrevista: Embaixador dos EUA alerta que se Brasil permitir chinesa Huawei no 5G enfrentará 'consequências'

No Oriente Médio, a aliança incondicional com o governo de Benjamin Netanyahu, ameaçado de perder o cargo depois das eleições da semana passada, representou uma mudança radical na posição brasileira. Araújo não só defendeu a mudança da embaixada para Jerusalém —  que internacionalmente não é reconhecida como a capital israelense —  como passou a votar junto com Israel em temas referentes ao conflito com os palestinos. Para um dos diplomatas, “o Brasil desfrutava, nesta região, o privilégio de se apresentar como um interlocutor confiável, que não tomava partido nas complicadíssimas questões geopolíticas”. Essa credibilidade, diz ele, se perdeu.

Segundo estes funcionários de carreira do Itamaraty, qualquer a pessoa que vier a ser escolhida para o  lugar de Arapújo terá um obstáculo adicional: conseguir certa autonomia, depois que o ministério esteve na “cota” da ala olavista do governo, com forte influência do filho do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), responsável por abençoar tanto a indicação de Araújo quanto a do assessor internacional do Planalto, Filipe Martins.


Polêmica:Associação judaica dos EUA exige que Araújo se desculpe por comparar isolamento social a campos de concentração nazistas

Questões internas

Outra questão apontada foi a necessidade de reorganizar internamente a pasta, que viu uma ruptura na hierarquia natural com a ascensão rápida de diplomatas de baixo e médio escalões identificados politicamente com o governo. Além disso, há os problemas orçamentários: as verbas da pasta para 2021 foram aprovadas com uma estimativa do dólar a R$ 5,30 — hoje ele está a R$ 5,79 —, o que faz muitos acreditarem que elas acabam antes do fim do ano. Araújo é acusado de não ter batalhado mais para aumentar o orçamento do ministério.

Um dos diplomatas mencionou “o desânimo muito grande da tropa”. Ao mesmo tempo em que os debates na Funag (Fundação Alexandre de Gusmão), o centro de estudos do Itamaraty, perderam qualidade, “há um afunilamento da carreira e uma sensação de perseguição”.


Se para o meio político a atuação de Araújo na busca por vacinas é citada como a gota d 'água, no Itamaraty mesmo seus críticos minimizam este episódio, lembrando que “99%” das decisões sobre vacinas foram tomadas no Ministério da Saúde e pelo Planalto. Porém, até diplomatas mais alinhados a Araújo admitem que o Itamaraty poderia ter sido mais eficiente na crise de falta de oxigênio em Manaus e, agora, na busca por medicamentos para a intubação de pacientes.

Eles lembram que foi a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, quem tomou a iniciativa de buscar contatos com os chineses para liberar os insumos para as vacinas da AstraZeneca, produzidas pelo Fiocruz, e da Sinovac, fabricadas pelo Butantan. Além disso, ao tentar fazer propaganda do avião fretado para buscar doses na Índia, Araújo se indispôs com o governo de Nova Délhi, que sofre pressão para aumentar a vacinação internamente e exportar menos.

 

Leia mais:Em artigo, Ernesto Araújo alerta contra 'horizonte comunista' na América Latina

Leia mais:Além de Ernesto Araújo, Centrão mira outros ministros e quer reforma ampla


domingo, 28 de março de 2021

Quem gosta de música brasileira (ou seja, o mundo inteiro), não pode perder SoloBrasil do embaixador Lauro Barbosa Moreira

Não sou nacionalista nem patrioteiro, mas vocês vão me perdoar de ser um chauvinista tropical e um admirador incondicional do trabalho do embaixador Lauro Moreira.

Eu fiz o teste, em dezenas de shoppings ao redor do mundo, do Extremo Oriente à costa do Pacífico do hemisfério americano, na Europa e no Oriente Médio, em todos os lugares: impossível passar meia hora sem ouvir música brasileira tocada ao fundo.

Este trabalho resgata o que de melhor temos a oferecer ao mundo: um PIB musical que é várias vezes superior ao PIB futebolístico e "n" vezes maior do que o PIB simplesmente econômico.


O perfil do embaixador Lauro Moreira está aqui: https://quincasblog.wordpress.com/about/ 

E o maravilhoso grupo Solo Brasil está aqui: 

https://www.facebook.com/GrupoSoloBrasil/


“Carta dos 300 diplomatas” - Deutsche Welle adere à versão da FSP


Em carta, diplomatas pedem saída de Ernesto Araújo

Um grupo de cerca de 300 diplomatas divulgou neste sábado (27/03) uma carta na qual criticam a postura adotada pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, no comando do Itamaraty e dão a entender que desejam que o chanceler deixe o cargo.

"Nos últimos dois anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática. O Itamaraty enfrenta aguda crise orçamentária e uma série numerosa de incidentes diplomáticos, com graves prejuízos para as relações internacionais e a imagem do Brasil", afirma o texto.

A carta não cita nominalmente Araújo, mas deixa claro o desastre diplomático causado pelo ministro desde que assumiu a pasta. A situação teria se agravado com a condução da política externa no contexto da pandemia.

"A crise da covid-19 tem revelado que equívocos na condução da política externa trazem prejuízos concretos à população. Além de problemas mais imediatos, como a falta de vacinas, de insumos ou a proibição da entrada de brasileiros em outros países, acumulam-se danos de longo prazo na credibilidade internacional do país", destaca o documento.

O texto também lembra o histórico da política externa do Brasil caracterizada por "pragmatismo e profissionalismo", ressaltando a abertura ao diálogo "respeitoso e construtivo" da diplomacia ao longo dos anos, não somente com atores internacionais, mas também com a imprensa e parlamentares.

Na carta, os diplomatas destacam os princípios estabelecidos na Constituição de 1988 que devem guiar a política externa brasileira: "independência nacional; prevalência dos direitos humanos; o repúdio ao terrorismo e ao racismo; e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade".

O texto fala ainda em "graves erros na condução da política externa atual" e pede mudança e a "retomada das melhores tradições do Itamaraty e dos preceitos constitucionais".

Alvo constante de piadas no exterior

Na carta anônima, os diplomatas destacam que gostaria de assiná-la, mas se o fizessem estariam violando a Lei do Serviço Exterior. O documento teria sido enviado a parlamentares brasileiros.

Segundo apurou a Folha de S.Paulo, ao menos dez embaixadores estão entre os autores do manifesto. Diplomatas ouvidos pelo jornal disseram que a carta visa mostrar que eles não são coniventes com a atual condução da política externa brasileira e que a saída de Araújo é fundamental para a retomada da credibilidade da diplomacia do país no exterior. Um deles chegou a dizer que escuta constante piadas de colegas estrangeiros sobre o ministro.

A carta foi divulgada três dias após Araújo ter participado de uma audiência no Senado sobre a atuação da pasta para obter vacinas contra a covid-19 no exterior. O ministro teria se oposto à entrada do Brasil no consórcio global liderado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) Covax Facility, que prevê o envio de 42 milhões de doses de imunizantes para o país.

Durante a audiência, vários senadores criticaram duramente a atuação extremamente ideológica do ministro e defenderam a demissão de Araújo. Os parlamentares se articulam ainda para barrar as demandas do Itamaraty enquanto o atual ministro estiver no comando da pasta.

Diplomacia com viés ideológico

A insatisfação de diplomatas com a condução do Itamaraty vem de longa data. Integrante da ala ideológica do governo de Jair Bolsonaro e indicado ao cargo por Olavo de Carvalho, Araújo deixou de lado os princípios da diplomacia brasileira e pautou sua gestão na visão radical do guru.

O ministro promove constantemente teorias conspiratórias sobre uma suposta conspiração comunista internacional que pretende tomar o poder na América Latina e teses consideradas absurdas por historiadores como "o nazismo de esquerda".

Fã declarado de Donald Trump, Araújo alinhou ainda o Brasil incondicionalmente ao então governo do republicano e acabou isolando o país no cenário internacional, além de reforçar uma política de hostilidade a grandes parceiros comerciais, como a União Europeia e a China.

Ao longo da pandemia, Araújo insistia na tese do "comunavírus", que seria uma conspiração "comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado", causando atritos com a China.


Itamaraty: uma solução de caserna? - Eliane Cantanhede

 

domingo, 28 de março de 2021

Eliane Cantanhêde – Homem ao mar

- O Estado de S. Paulo

Depois do amigo dos filhos na Saúde, Bolsonaro quer seu próprio amigo almirante no Itamaraty

O ministro das Comunicações, Fábio Faria, é um dos enviados do Planalto para sondar os parlamentares sobre duas saídas para a crise aguda na política externa: a ida do almirante da ativa Flávio Rocha para o Itamaraty e a remoção do chanceler Ernesto Araújo para uma embaixada vistosa – algo que depende da aprovação do Senado.

Quanto a Rocha, os políticos não dizem sim nem não, pois desconhecem as credenciais dele e estão mais empenhados em tirar Ernesto Araújo do que em fazer o sucessor. Rocha fala cinco línguas, é um dos raros pragmáticos e de bom senso no governo e, além de interagir com setores sensíveis do empresariado nacional, já vem assumindo missões no exterior em nome do presidente Jair Bolsonaro, inclusive na China. Mas um militar no Itamaraty?

Já quanto ao prêmio de consolação para Ernesto Araújo, pelos péssimos serviços prestados à Nação, políticos de variados matizes, até do Centrão, têm dito um sonoro não a Fábio Faria e a quem mais venha com essa conversa. A presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Kátia Abreu, resume, “sem frescura e mimimi”, como gosta Bolsonaro diante da pandemia: “Isso, não!”

Assim como o Senado matou na origem a pretensão tragicômica do deputado e hamburgueiro Eduardo Bolsonaro para ser embaixador em Washington, está na fase do “quem avisa amigo é”: se o presidente insistir no nome de Araújo para países relevantes, como EUA, ou aprazíveis, como França, eles – presidente e chanceler – vão correr sério risco de derrota.

Como nomear Araújo para os EUA, depois da sabujice para Donald Trump e da implicância com Joe Biden? E para a China, depois das caneladas ideológicas e nada diplomáticas contra o maior parceiro comercial do Brasil? E para a Índia, depois de votar com Trump contra um projeto sobre vacinas de interesse dos emergentes? E para Alemanha, França ou Noruega, com Araújo desdenhando o “ambientalismo” como meio do comunismo para destruir o Ocidente?

Sobrariam Hungria e Polônia, alvos de Trump e Steve Bannon para uma revolução mundial da extrema-direita terraplanista, ou a Turquia de Erdogan, quem sabe Coreia do Norte ou Venezuela? Mas, se Ernesto Araújo acha bacana o Brasil ser pária internacional, não deve gostar tanto de ser pária ele próprio.

O fato é que o Congresso aderiu à multicolorida frente nacional contra uma política externa nociva aos interesses nacionais. Na reunião sobre a pandemia no Planalto e, horas depois, na cadeira de presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira mirou Ernesto Araújo: atacar a maior potência do planeta e os maiores produtores de vacinas e medicamentos do mundo, não dá. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, bateu na mesma tecla – e no mesmo alvo – dois dias seguidos.

Bolsonaro se encontrou com Lira na quinta-feira e, na sexta, saiu da comemoração dos 30 anos do Mercosul, às pressas, para se reunir com Pacheco e repetir o ritual da demissão do general Eduardo Pazuello da Saúde: elogios e manifestações de amizade à “vítima”, enquanto as articulações correm soltas para encontrar o substituto.

O Centrão não cobiça o Itamaraty, prefere a rica Agricultura numa dança de cadeiras. Mas, assim como a Saúde foi para um cardiologista amigo dos filhos do presidente, o provável é que o Itamaraty vá para um amigo do próprio Bolsonaro. Não imposto pelo Centrão, por Lira e Pacheco, muito menos por diplomatas. Uma escolha “in pectore”, como seria o almirante Rocha.

É assim que os paus-mandados de Bolsonaro vão sendo jogados ao mar. Ou o timoneiro Bolsonaro não manda mais nada no próprio barco, ou governo, ou finge que virou um outro Bolsonaro para salvar o pescoço, mas pronto para dar o bote na hora certa. Que bote? Vá se saber...


sábado, 27 de março de 2021

Carta dos 300 diplomatas: duas versões, pouco convergentes entre si - Comparação por Paulo Roberto de Almeida

Cartas dos 300 Diplomatas: as duas versões

 

Montagem: 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 27/03/2021

 

Versão Os Divergentes

Versão FSP

Trechos convergentes

“Com a proximidade do dia do diplomata, que se comemora em 20 de abril, data de nascimento do Barão do Rio Branco, nunca foi tão importante reafirmar as tradições do Itamaraty e os preceitos constitucionais que balizam as Relações Exteriores da República Federativa do Brasil – tradições e princípios que não constituem meras abstrações, mas que são construções e conquistas históricas do povo brasileiro.

Em um período de formação do Estado nacional, o patrono de nossa diplomacia garantiu a consolidação pacífica de 9 mil quilômetros de fronteiras por meio de tratados e arbitragens. Para tanto, lançou mão da ciência (era ele próprio um dos maiores geógrafos do país), de bom trânsito na comunidade internacional (era respeitado por autoridades e diplomatas de outros países) e do bom relacionamento com a imprensa (nacional e internacional).

Por séculos, a política externa brasileira caracterizou-se por pragmatismo e profissionalismo. 

O corpo diplomático, formado por concurso público desde 1945, sempre investiu no diálogo respeitoso e construtivo. Ao longo das últimas décadas, processos internos participativos possibilitaram a elaboração de posições internacionais equilibradas e representativas da diversidade brasileira, o que possibilitou ganhos comerciais, diversificação de mercados, acesso a cooperação internacional e instrumentos de desenvolvimento, credibilidade e respeito internacional, e maior participação em instâncias decisórias.

As diretrizes da política externa brasileira estão expressamente definidas no Artigo 4o da Constituição Federal de 1988. A República Federativa do Brasil deverá reger-se pelos princípios de: independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; e concessão de asilo político. Além disso, a Constituição Federal nos legou o explícito mandato de buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

Longe de corresponder a um programa de governo que pregou uma política externa “livre de ideologias”, a gestão do ministro Ernesto Araújo submeteu o acervo de princípios e tradições da diplomacia brasileira, construído ao longo de gerações, aos humores e ditames de uma ideologia facciosa, muitas vezes antidemocrática, que presta contas apenas a seus próprios seguidores. Não raro, assistimos a nossa diplomacia, o nosso trabalho cotidiano, ser subordinado a interesses momentâneos da mobilização de uma base política, sem qualquer conexão com interesses permanentes e estruturais do desenvolvimento, da soberania e do bem-estar da sociedade brasileira.

Em pouco mais de dois anos, avolumam-se exemplos de condutas francamente incompatíveis com os princípios constitucionais antes mencionados e até mesmo com os códigos mais elementares da prática diplomática. De agressões injustificadas contra países com os quais o Brasil mantém relações estratégicas, até demonstrações de adesão a práticas inaceitáveis em uma democracia moderna, como nos espúrios comentários do Ministro em sua reação ao episódio da invasão do prédio do congresso norte-americano. As dificuldades evidenciadas pela pandemia de Covid-19 apenas descortinam os riscos de uma diplomacia amadora, despreparada e personalista, dirigida por critérios fantasmagóricos, e como esses riscos podem se traduzir em prejuízos concretos, por vezes irreparáveis, à toda a sociedade brasileira.

Sendo assim, nos juntamos às inúmeras manifestações de repúdio a esse lamentável e anômalo intervalo na condução da política externa brasileira, cujo alcance a trágica pandemia de Covid-19 colocou a nu, da pior forma possível e a um custo intolerável. Solidarizamo-nos com todas as milhares de pessoas tão duramente afetadas pela pior pandemia do nosso século, e lamentamos todas as mortes ocorridas no Brasil e em todos os países. A sociedade brasileira tem a seu serviço, no Itamaraty, um corpo profissional de funcionários altamente qualificados, ciosos de seus compromissos sob a constituição cidadã de 1988 e sob a leis do País, e de seu inarredável apego à democracia, aos direitos humanos, ao serviço público e à defesa dos interesses nacionais.

Esta carta foi elaborada por diplomatas da ativa e recebeu a adesão de um grupo representativo de diplomatas de todas as classes funcionais. Estamos convencidos de que, em suas linhas gerais, ela reflete o sentimento da maioria do corpo diplomático brasileiro, que não pode se expressar, no contexto atual, sem o receio de sofrer retaliações que afetariam suas carreiras e vidas pessoais, já marcadas pelas dificuldades e sacrifícios próprios da profissão que abraçaram como forma de contribuir para a construção de um futuro melhor para o nosso amado Brasil”.

Nos últimos dias, o Brasil superou a trágica marca de 300 mil mortes por COVID-19, tendo o papel do Itamaraty na resposta à pandemia ganhado grande relevância no debate nacional. Neste momento, às vésperas da celebração do Dia do Diplomata, não há o que se comemorar. Pelo contrário, nunca foi tão importante reafirmar os preceitos constitucionais que balizam as relações exteriores da República Federativa do Brasil, definidos no artigo 4º da Constituição Federal de 1988, assim como as melhores tradições do Itamaraty.

Historicamente, a política externa brasileira caracterizou-se por pragmatismo e profissionalismo. 

 

O corpo diplomático, formado por concurso público desde 1945, sempre investiu no diálogo respeitoso e construtivo, com interlocutores internos e internacionais, com a imprensa e o Parlamento. A Constituição de 1988 consagrou princípios fundamentais pelos quais nossa diplomacia deve guiar-se, entre eles a independência nacional; prevalência dos direitos humanos; o repúdio ao terrorismo e ao racismo; e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Nos últimos dois anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática. O Itamaraty enfrenta aguda crise orçamentária e uma série numerosa de incidentes diplomáticos, com graves prejuízos para as relações internacionais e a imagem do Brasil. A crise da Covid-19 tem revelado que equívocos na condução da política externa trazem prejuízos concretos à população. Além de problemas mais imediatos, como a falta de vacinas, de insumos ou a proibição da entrada de brasileiros em outros países, acumulam-se danos de longo prazo na credibilidade internacional do país.

Nesse contexto e diante da gravidade do momento, sentimos ser nosso dever complementar os alertas emitidos pela academia, pelo empresariado, pelos movimentos sociais, por prefeitos, por governadores e pelo Congresso Nacional, a respeito dos graves erros na condução da política externa atual. Nunca foi tão importante apelar à mudança e à retomada das melhores tradições do Itamaraty e dos preceitos constitucionais – conquistas da nossa sociedade e instrumentos indispensáveis para a promoção da prosperidade, justiça e independência em nosso país.

Esta carta foi elaborada por diplomatas da ativa que não podem assiná-la como desejariam em razão de dispositivos da Lei do Serviço Exterior, que a propósito deveriam ser reexaminados tendo em conta sua flagrante inconstitucionalidade. Esperamos, com essas reflexões, oferecer mais elementos para que as necessárias e urgentes mudanças na condução da política externa ganhem maior apoio na sociedade, contribuindo, assim, para os esforços de superação das crises sanitária, econômica, social e política enfrentadas pelo Brasil.

 

Brasília, 27 de março de 2021,

 

 

 

Uma das cartas dos 300 diplomatas que querem ver EA longe, bem longe - Patricia Campos Mello (FSP)

 Grupo de mais de 300 diplomatas publica carta para pedir saída de Ernesto

Manifesto acusa política externa atual de causar graves prejuízos às relações internacionais e à imagem do Brasil

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SÃO PAULO

Um grupo de mais de 300 diplomatas publicou neste sábado (27) uma carta pública acusando a política externa atual de causar “graves prejuízos para as relações internacionais e à imagem do Brasil” e pedindo a saída de Ernesto Araújo da chefia do Ministério das Relações Exteriores.

“Esperamos, com essas reflexões, oferecer mais elementos para que as necessárias e urgentes mudanças na condução da política externa ganhem maior apoio na sociedade”, diz a carta, obtida pela Folha. “A crise da Covid-19 tem revelado que equívocos na política externa trazem prejuízos concretos à população.”

Ernesto atravessa sua maior crise desde que assumiu o Itamaraty. Ele está ameaçado de demissão devido a pressões da cúpula do Congresso, de militares, do agronegócio e de grandes empresários

Entre os autores do manifesto, que circula entre congressistas, há ao menos dez embaixadores, cargo do topo da carreira do Itamaraty. Eles, porém, não podem se identificar, porque se assim fizessem estariam violando a Lei do Serviço Exterior.

O chanceler Ernesto Araújo após encontro no Palácio do Alvorada, em Brasília
O chanceler Ernesto Araújo após encontro no Palácio do Alvorada, em Brasília - Ueslei Marcelino - 24.mar.21/Reuters

O artigo 27 da regra determina que é necessário “solicitar, previamente, anuência da autoridade competente, na forma regulamentar, para manifestar-se publicamente sobre matéria relacionada com a formulação e execução da política exterior do Brasil”.

Um dos signatários da carta disse à Folha que, embora insuficiente, a saída do chanceler é fundamental para a reversão da perda de credibilidade do Brasil no cenário internacional e um sinal importante para desbloquear possibilidades de cooperação futuras fundamentais nesse momento de pandemia.

De acordo com uma outra diplomata que apoiou a publicação do manifesto, o objetivo é prestar contas à sociedade brasileira, mostrando que boa parte dos servidores não está de acordo com a orientação dada atualmente ao ministério. Segundo ela, o Itamaraty "não é o Ernesto" e pode fazer muito mais pelo país.

A diplomata ainda afirma que o sentimento geral na pasta é de "vergonha e frustração" e questiona quais interlocutores estrangeiros gostariam de dialogar com alguém que se refere ao coronavírus como "comunavírus" e que critica frequentemente o que ele mesmo define como globalismo.

Um dos idealizadores da carta afirma que, devido à disciplina dos diplomatas e a um senso forte de hierarquia dentro Itamaraty, até agora não havia ocorrido um movimento organizado de resistência, apesar do crescente descontentamento com Ernesto "desde os primeiros absurdos da sua gestão".

Segundo esse diplomata, no entanto, a situação nas últimas semanas “ultrapassou todos os limites”. Ele cita, como exemplo, o fato de Ernesto ter tentado deixar o Brasil fora do Covax, mecanismo da OMS para distribuição de vacinas a países em desenvolvimento, por achar que se trata de uma iniciativa globalista.

Assim, diz ele, o acúmulo de situações que "beiram a irresponsabilidade criminosa" levou a essa manifestações pública, algo que classificou como atípico e excepcional. Ainda de acordo com esse funcionário do Itamaraty, existe um sentimento muito forte de revolta e de impotência, algo que ele diz ouvir todos os dias, de embaixadores no exterior a colegas em Brasília.

Por fim, o diplomata relata escutar semanalmente piadas de colegas estrangeiros, porque "ninguém leva o Ernesto a sério". Agora, porém, com a explosão no número de mortes diárias por Covid, ele diz que muitos entenderam não se tratar apenas de "um lunático excêntrico", mas de "uma figura nefasta, um criminoso".

A carta aponta que, nos últimos dois anos, "avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo com os códigos mais elementares da prática diplomática”. “Além de problemas mais imediatos, como a falta de vacinas, de insumos ou a proibição da entrada de brasileiros em outros países, acumulam-se danos de longo prazo na credibilidade internacional do país.”

Segundo um outro signatário, em nenhum outro momento da história brasileira, nem durante a ditadura militar, o Itamaraty esteve tão isolado, "sequestrado por uma seita, distante da sociedade". "É importante que a sociedade saiba que isso não é culpa dos diplomatas e que nosso silêncio não é cumplicidade.”

Leia, abaixo, a íntegra da carta.

Brasília, 27 de março de 2021,

Nos últimos dias, o Brasil superou a trágica marca de 300 mil mortes por COVID-19, tendo o papel do Itamaraty na resposta à pandemia ganhado grande relevância no debate nacional. Neste momento, às vésperas da celebração do dia do diplomata, não há o que se comemorar. Pelo contrário, nunca foi tão importante reafirmar os preceitos constitucionais que balizam as relações exteriores da República Federativa do Brasil, definidos no artigo 4º da Constituição Federal de 1988, assim como as melhores tradições do Itamaraty.

Historicamente, a política externa brasileira caracterizou-se por pragmatismo e profissionalismo. O corpo diplomático, formado por concurso público desde 1945, sempre investiu no diálogo respeitoso e construtivo, com interlocutores internos e internacionais, com a imprensa e o Parlamento. A Constituição de 1988 consagrou princípios fundamentais pelos quais nossa diplomacia deve guiar-se, entre eles a independência nacional; prevalência dos direitos humanos; o repúdio ao terrorismo e ao racismo; e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Nos últimos dois anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática. O Itamaraty enfrenta aguda crise orçamentária e uma série numerosa de incidentes diplomáticos, com graves prejuízos para as relações internacionais e a imagem do Brasil. A crise da Covid-19 tem revelado que equívocos na condução da política externa trazem prejuízos concretos à população. Além de problemas mais imediatos, como a falta de vacinas, de insumos ou a proibição da entrada de brasileiros em outros países, acumulam-se danos de longo prazo na credibilidade internacional do país.

Nesse contexto e diante da gravidade do momento, sentimos ser nosso dever complementar os alertas emitidos pela academia, pelo empresariado, pelos movimentos sociais, por prefeitos, por governadores e pelo Congresso Nacional, a respeito dos graves erros na condução da política externa atual. Nunca foi tão importante apelar à mudança e à retomada das melhores tradições do Itamaraty e dos preceitos constitucionais 
conquistas da nossa sociedade e instrumentos indispensáveis para a promoção da prosperidade, justiça e independência em nosso país.

Esta carta foi elaborada por diplomatas da ativa que não podem assiná-la como desejariam em razão de dispositivos da Lei do Serviço Exterior, que a propósito deveriam ser reexaminados tendo em conta sua flagrante inconstitucionalidade. Esperamos, com essas reflexões, oferecer mais elementos para que as necessárias e urgentes mudanças na condução da política externa ganhem maior apoio na sociedade, contribuindo, assim, para os esforços de superação das crises sanitária, econômica, social e política enfrentadas pelo Brasil.