Para diplomatas, saída de Araújo não basta, e política externa precisa de reconstrução completa
Por mais que acalme os ânimos entre Planalto e Congresso, saída do chanceler ressalta legado que virou a tradição diplomática brasileira do avesso
Henrique Gomes Batista e Janaína Figueiredo
O Globo, 29/03/2021 - 12:17 / Atualizado em 29/03/2021 - 12:57
Ex-chanceler Ernesto Araujo durante entrevista coletiva no Palácio do Itamaraty, em Brasília Foto: ADRIANO MACHADO / REUTERS/2-3-21
SÃO PAULO E RIO — Politicamente, a saída de Ernesto Araújo do Ministério das Relações Exteriores pode acalmar os ânimos entre o governo Bolsonaro e o Congresso. Mas, para diplomatas brasileiros, caso o presidente Jair Bolsonaro aceite seu pedido de demissão, este será o primeiro passo de um longo caminho para consertar problemas criados em seus dois anos à frente do Itamaraty. O GLOBO ouviu 11 diplomatas da ativa que servem em diferentes países nas Américas, no Oriente Médio e na Ásia sobre o legado de Araújo. Na avaliação deles, será necessária uma reconstrução completa da política externa do país, tanto das relações bilaterais com parceiros importantes, como EUA, China e Argentina, quanto com a União Europeia e organismos multilaterais.
Para um embaixador — que, como os demais ouvidos, falou sob anonimato devido à hierarquia rígida do Itamaraty e ao temor de represálias — sob a gestão de Araújo “o Brasil deixou de ser um parceiro confiável”, ao mudar posições tradicionais da diplomacia brasileira sem propor políticas claras em seu lugar.
Se no Senado a disputa gira em torno da suposta inoperância do Itamaraty na compra de vacinas e insumos para imunizantes, entre os diplomatas o que mais impacta “é o conjunto da obra” de Araújo. Embora a troca, se confirmada, possa ter simbolismo forte, dizem, ela não é suficiente para gerar uma mudança de percepção em relação ao Brasil.
Isso decorre de posições como ser contra a quebra de patente de vacinas — defendida por indianos e africanos na Organização Mundial do Comércio (OMC) —; sugerir a mudança da embaixada em Israel para Jerusalém, o que desagrada países árabes; escancarar preferências político-partidárias que foram derrotadas em eleições nos EUA e na Argentina; questionar a ciência sobre as mudanças climáticas e relativizar as posições sobre meio ambiente, o que provocou choque com os europeus; alinhar-se aos EUA de Trump para eleger o primeiro não latino-americano para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); e imprimir uma carga ideológica à relação com os chineses, o maior parceiro comercial do Brasil.
Como resumiu uma embaixadora da ativa, “Jair Bolsonaro prometeu uma diplomacia sem ideologia e, com Ernesto Araújo, entregou ideologia sem diplomacia”. Isso, segundo ela, “não é simples de ser alterado, sua substituição não resolve os problemas automaticamente”.
Um dos diplomatas ouvidos comentou a campanha do Brasil para voltar neste ano a ser eleito membro não permanente do Conselho de Segurança, depois de um hiato de 10 anos. Embora seja provável que o país alcance o número de votos necessários para isso, dado o seu peso regional, ele relata que, diante das críticas de Araújo ao chamado “globalismo” — representado justamente pelas instituições multilaterais —, a reação dos interlocutores estrangeiros é: “Vocês acham mesmo que têm condições?”
Os diplomatas citaram derrotas recentes do Brasil em eleições para organismos internacionais como sinal de perda de força do país. Em fevereiro, o colombiano Juan Carlos Salazar foi eleito o novo secretário-geral da Organização de Aviação Civil Internacional (Oaci), contra a candidatura do brigadeiro brasileiro Ary Rodrigues Bertolino, que nem sequer foi para o segundo turno. No fim de 2020, a desembargadora Mônica Sifuentes não conseguiu os votos suficientes para ser eleita juíza do Tribunal Penal Internacional, em Haia.
Relação conturbada com os EUA
Os entrevistados afirmaram que, embora o governo de Joe Biden não vá optar em um primeiro momento por retaliações diretas ao Brasil, a relação entre os dois governos tende a ser fria. A demora do Brasil em reconhecer a vitória de Biden e o endosso à falsa tese de que houve fraude na eleição em Donald Trump foi derrotado pesarão no relacionamento. Eles lembram que o próprio Araújo, a poucos dias da posse de Biden, sugeriu que a invasão do Congresso para impedir a homologação da vitória do democrata no Colégio Eleitoral foi obra de “infiltrados” — tese que na época circulou na extrema direita americana e que foi desmentida pelo FBI, a polícia federal dos EUA.
Como notou um dos diplomatas, “o posicionamento foi mais radical que o de muitos republicanos". Em fevereiro, o senador democrata Bob Menendez, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa, mandou carta ao governo brasileiro pedindo uma condenação explícita da invasão do Capitólio. A carta afirmava que o relacionamento com o Brasil sairá prejudicado se o governo brasileiro não condenar a “incitação à violência e os ataques contra a democracia americana”.
No caso da Argentina, a orientação do ministro à Embaixada do Brasil em Buenos Aires foi clara: evitar contatos com o então candidato da centro-esquerda Alberto Fernández, nas eleições de 2019. A ordem colocou o então embaixador em Buenos Aires, Sergio Danese, em uma saia justa. Criou-se um mal estar entre o diplomata e a campanha de Fernández que demorou mais de um ano para ser superado.
Além das articulações contra o regime de Nicolás Maduro na Venezuela, o chanceler nunca demonstrou interesse em cultivar o relacionamento com os demais países da América do Sul. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, exercer a liderança no entorno sul-americano, mediando crises e articulando políticas comuns, era uma ambição e um objetivo do Brasil. Como disse um dos embaixadores, “ignorar a política sul-americana é absurdo, a menos que exista a possibilidade de mudar o Brasil de continente”.
Autonomia em xeque
A perda de peso e de voz do Brasil em debates ambientais, apontaram os entrevistados, praticamente inviabiliza, no momento, a ratificação pelos países europeus do acordo comercial firmado em 2019 entre o Mercosul e a União Europeia. Além disso, o país perdeu dinheiro quando Alemanha e Noruega suspenderam suas contribuições para o Fundo Amazônia, depois que o ministério sob o comando de Ricardo Salles fez mudanças unilaterais no conselho do fundo.
Na relação com a China, Araújo chegou a pedir a cabeça do embaixador do país, Yang Wanming, para defender o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, que havia atacado Pequim nas redes sociais. O fato de o chanceler insinuar que os senadores se voltaram contra ele para defender a presença da chinesa Huawei na instalação da rede brasileira de telefonia 5G também pesa, embora os chineses se mantenham discretos sobre essas crises e neguem qualquer intenção de represália — na avaliação de interlocutores da China, isso ocorre porque Pequim pensa em longo prazo, e vê o governo Bolsonaro como um “acidente de percurso” na relação bilateral.
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No Oriente Médio, a aliança incondicional com o governo de Benjamin Netanyahu, ameaçado de perder o cargo depois das eleições da semana passada, representou uma mudança radical na posição brasileira. Araújo não só defendeu a mudança da embaixada para Jerusalém — que internacionalmente não é reconhecida como a capital israelense — como passou a votar junto com Israel em temas referentes ao conflito com os palestinos. Para um dos diplomatas, “o Brasil desfrutava, nesta região, o privilégio de se apresentar como um interlocutor confiável, que não tomava partido nas complicadíssimas questões geopolíticas”. Essa credibilidade, diz ele, se perdeu.
Segundo estes funcionários de carreira do Itamaraty, qualquer a pessoa que vier a ser escolhida para o lugar de Arapújo terá um obstáculo adicional: conseguir certa autonomia, depois que o ministério esteve na “cota” da ala olavista do governo, com forte influência do filho do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), responsável por abençoar tanto a indicação de Araújo quanto a do assessor internacional do Planalto, Filipe Martins.
Questões internas
Outra questão apontada foi a necessidade de reorganizar internamente a pasta, que viu uma ruptura na hierarquia natural com a ascensão rápida de diplomatas de baixo e médio escalões identificados politicamente com o governo. Além disso, há os problemas orçamentários: as verbas da pasta para 2021 foram aprovadas com uma estimativa do dólar a R$ 5,30 — hoje ele está a R$ 5,79 —, o que faz muitos acreditarem que elas acabam antes do fim do ano. Araújo é acusado de não ter batalhado mais para aumentar o orçamento do ministério.
Um dos diplomatas mencionou “o desânimo muito grande da tropa”. Ao mesmo tempo em que os debates na Funag (Fundação Alexandre de Gusmão), o centro de estudos do Itamaraty, perderam qualidade, “há um afunilamento da carreira e uma sensação de perseguição”.
Se para o meio político a atuação de Araújo na busca por vacinas é citada como a gota d 'água, no Itamaraty mesmo seus críticos minimizam este episódio, lembrando que “99%” das decisões sobre vacinas foram tomadas no Ministério da Saúde e pelo Planalto. Porém, até diplomatas mais alinhados a Araújo admitem que o Itamaraty poderia ter sido mais eficiente na crise de falta de oxigênio em Manaus e, agora, na busca por medicamentos para a intubação de pacientes.
Eles lembram que foi a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, quem tomou a iniciativa de buscar contatos com os chineses para liberar os insumos para as vacinas da AstraZeneca, produzidas pelo Fiocruz, e da Sinovac, fabricadas pelo Butantan. Além disso, ao tentar fazer propaganda do avião fretado para buscar doses na Índia, Araújo se indispôs com o governo de Nova Délhi, que sofre pressão para aumentar a vacinação internamente e exportar menos.
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