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quinta-feira, 11 de março de 2021

Sobre projetos para mudar o Brasil: muitas prioridades podem ser sinal de nenhuma - Paulo Roberto de Almeida (2004 e 2021)

Um exercício "rememorativo" de um texto de 2004, redescoberto em 2021

Paulo Roberto de Almeida

Brasília,  11 de março de 2021

Ao início do governo Lula, ainda em 2003, vetado para trabalhar na Secretaria de Estado (por razões que não convêm explicar agora), fui convidado por um dos membros da "troika" do governo petista para integrar um novo órgão de "planejamento" da "flamante" nova administração, o Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, funcionando junto ao CGEE, criado na segunda Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, no segundo mandato do governo FHC. 

Eu mesmo sugeri que o Brasil se antecipasse nas metas que haviam sido fixadas em conferência diplomática da ONU para 2015 (um primeiro exercício dessas grandes ambições, antes consolidadas nas Metas do Milênio, agora nas metas do Desenvolvimento Sustentável para 2030). Sempre desconfiei das grandes ambições e das dezenas de prioridades, mas propus que o Brasil tentasse cumprir até 2008 (200 anos de administração do país no próprio país, até então uma colônia, mas que passou a abrigar a corte e a sede do vasto Império ultramarino português) as metas fixadas para 2015, para que em 2022, data do bicentenário ele se apresentasse como país finalmente desenvolvido. 

Nesse entrechoque de muitas datas, 2006, 2007, 2008, 2015 e 2022, acabou saindo o projeto "Brasil Três Tempos", que depois cresceu além da minha conta, pois pensava concentrar tudo em pouquíssimas metas, menos de cinco, todas elas concentradas na educação das crianças e jovens. Fui derrotado e acabou saindo um projeto "monstro", com mais de cinquenta "prioridades", ou seja, de fato nenhuma.

Descubro agora, sem que tivesse jamais retornado ao texto (e ainda não o reli, agora), que naquele momento, já descontente com o projeto gigantesco que militares e mandarins do Estado pensavam empreender, eu fiz um "registro preventivo", para ser conferido ao final do governo Lula (que eu, equivocadamente como todo acadêmico, imaginava que não passaria de um mandato). Vou reler agora, e postar aqui, para ver o que de inteligente eu possa ter escrito sobre um projeto do qual participei meio a contragosto, pois a despeito de ser um estudioso do planejamento estatal no Brasil, sempre desconfiei de "projetos para reformar o Brasil". 

1325. “Registro Preventivo: Sobre projetos para mudar o Brasil”, Brasília, 5 de setembro de 2004, 6 p. Nota consignando formalmente minha interpretação e sentimento em relação ao projeto “Brasil 3 Tempos”, como forma de deixar registro antecipado do que penso poderá ocorrer em relação ao projeto e, de modo geral, em relação às políticas públicas e setoriais do governo atual (2003-2006). A conferir em 2007. [O que nunca fiz.]

Pois bem, vejamos o que escrevi em setembro de 2004, menos de um ano depois de voltar ao Brasil em outubro de 2003. Ao que eu saiba, esse registro preventivo NUNCA foi publicado, inclusive porque este blog Diplomatizzando só passou a existir em meados de 2006, já no final do primeiro mandato de Lula, portanto.

Registro Preventivo

Sobre projetos para mudar o Brasil

 

Paulo Roberto de Almeida

Feito em Brasília, 2-5 de setembro de 2004

 

Participo, no presente momento (isto é, meados de 2004), da concepção, elaboração e montagem de um projeto tentativo de planejamento estratégico governamental, “Brasil 3 Tempos: 2007, 2015, 2022”, organizado em torno de um processo de gestão articulado para o desenvolvimento futuro, de médio e longo prazo, do Brasil, trabalho feito no âmbito do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Secom-PR, órgão no qual estou lotado desde novembro de 2003. Esse projeto, cuja exposição sintética pode ser conferida mediante texto de apresentação compilado no número inicial do Cadernos NAE (01, 2004; http://www.planalto.gov.br/secom/nae/index.htm) [Nota em 11/03.2021: link desabilitado], deveria ter como objetivo estratégico a construção de uma trajetória de desenvolvimento sustentável no Brasil, com redução significativa das desigualdades sociais, por meio da sociedade do conhecimento, segundo uma definição que eu mesmo formulei para esse projeto (existem outras definições alternativas, formuladas por outros colegas envolvidos no projeto, nomeadamente o Coronel Oswaldo Oliva, coordenador do projeto, Marcio de Miranda Santos, diretor do CGEE, e Lélio Fellows, diretor técnico no mesmo centro).

Não existe, ainda, nenhum documento descritivo de cada uma das sete dimensões nas quais foi dividido o esforço de elaboração conceitual desse projeto – institucional, conhecimento, econômico, ambiental, sociocultural, territorial e global –, assim como não existe, na presente fase, nenhuma integração dessas várias dimensões em algum texto-síntese, dotado ou não dos princípios metodológicos que foram definidos para a montagem desse projeto em consonância com o instrumental analítico selecionado para tal fim (software Puma, de Raul Grumbach, adaptado especialmente para o projeto). Em outros termos, todas as possibilidades, de processo ou de substância, estão abertas neste processo de elaboração do “Brasil 3 Tempos”, com o que soam arriscadas e prematuras quaisquer previsões ou descrições antecipatórias quanto a seu formato final ou recomendações substantivas.

Não pretendo, nesta simples nota de registro factual e pessoal, arriscar-me em tal tipo de exercício especulativo, mas tão simplesmente deixar constância de minha posição de princípio quanto ao que deveria constar desse projeto, sem dúvida assaz complexo, bem como assinalar meu sentimento preventivo quanto ao que poderá resultar desse esforço governamental, sem dúvida meritório, de organização tentativa do processo de desenvolvimento no Brasil. Farei alguns comentários de ordem formal, isto é, quanto ao método mobilizado para conseguir tal finalidade, e tentarei alinhar, em seguida, alguns argumentos de natureza substantiva, ou seja, quanto ao objeto mesmo da presente iniciativa de planejamento estratégico governamental.

Não creio ser novidade para ninguém se afirmar, mais uma vez, o fato de que, no Brasil, o Estado constitui, hoje, o centro incontornável da vida nacional. Essa realidade, por vezes, não é sequer percebida, tal a sensação de uma permanente onipresença do Estado em nossa vida diária, desde muitas décadas aliás. Dai deriva o fato consequente de que as pessoas, em geral, e os funcionários públicos, em particular, não percebam esse fato – permito-me sublinhar e enfatizar esse conceito – como algo surpreendente, não desejável, evitável ou sequer anômalo, do ponto de vista das possibilidades alternativas de organização social e política. Trata-se de um fato, ponto. Não se vincula esse fato a qualquer elemento perverso, indesejável ou nocivo da organização social, em termos de organização política, de desempenho econômico ou de mecanismos de inclusão social. Não se chega tampouco a cogitar a possibilidade de que pudesse ser de outro modo, que o Estado não precisaria ocupar o centro da vida social, ou constituir-se na instância última (e suprema) de organização política, social e econômica. 

O que desejo ressaltar é que tudo, no Brasil, é feito no Estado, pelo Estado e para o Estado, e tem no Estado a referência incontornável dos modos possíveis de organização social. Vale dizer, em relação ao projeto “Brasil 3 Tempos”, que ele também não conseguirá subtrair-se a essa realidade avassaladora e propriamente totalizadora: o projeto acabará sendo mais uma forma de o Estado produzir ações que tenderão a reproduzir a capacidade que tem o Estado de trabalhar para si mesmo, girando em torno do seu próprio eixo e sugando as energias sociais em função de processos, iniciativas e programas que continuarão a ter no Estado o seu centro organizador e a sua referência básica de implementação e controle de desempenho.

Não tenho, portanto, ilusões de que, com o projeto “Brasil 3 Tempos”, isto seja diferente ou passível de se dar de outra maneira. O Estado continuará sendo o pivô central das formas de se pensar e de se fazer políticas públicas e políticas setoriais no Brasil, com muito pouco espaço, se algum, deixado para a própria sociedade ou para os grupos de interesse organizados em torno dos grandes eixos produtivos do país. A bem da verdade, o projeto até poderá prever ações a serem empreendidas pela própria sociedade, mas não creio que essas “concessões” pontuais sejam acompanhadas, em outras instâncias, de um verdadeiro processo de “recuo estratégico” do Estado das posições conquistadas nas últimas décadas de itinerário econômico e político nacional.

Hoje, no Brasil, o Estado controla os “centros de comando” da política e da economia, quando não das formas de organização social e de redistribuição de benefícios do processo econômico, e não mantenho nenhuma ilusão de que isso possa ser revertido a curto ou médio prazo, inclusive porque os atuais altos servidores do Estado e seus líderes políticos concordam – mesmo inconscientemente – em que tal situação perdure, por não ver nisso nenhuma deformação ou anomalia do processo social. Isto quanto à forma, ou método, pelo qual será conduzido o projeto “Brasil 3 Tempos”. Vejamos agora alguns aspectos substantivos do desenho e implementação desse projeto. 

Não creio, tampouco, ser novidade para ninguém o fato de que o Brasil apresenta-se hoje como um país totalmente industrializado, basicamente desenvolvido no que se refere ao acabamento de sua estrutura produtiva e razoavelmente avançado no que concerne a capacidade de seu sistema científico e tecnológico em responder às necessidades de seu sistema produtivo, seja produzindo localmente, seja importando e adaptando de forma inteligente todos os métodos e procedimentos utilizados pela indústria moderna (o que compreende também, obviamente, o chamado agronegócio, os serviços e toda a parafernália de tecnologia de comunicações e de informação). Se alguém ainda duvidar disso é porque não está suficientemente informada sobre os progressos alcançados pelo Brasil no plano da estrutura material, ainda que se possa contestar os avanços alegados ou argumentar quanto ao caráter ainda insuficiente da produção própria de ciência e tecnologia. Não importa: o essencial é que o Brasil já “chegou lá” e qualquer avanço adicional nessas áreas representa apenas um problema “técnico”, não estrutural, ou seja, não há impedimentos a progressos ulteriores e contínuos nas áreas ainda hoje insuficientemente desenvolvidas (e temporariamente em situação de atraso relativo). Um economista “otimista” poderia dizer que chegamos ao “fim do desenvolvimento”, mas este não é o caso, pois o processo não tem limites, contornos ou barreiras precisas que permitam definir um limiar a partir do qual um país deixa de estar na condição de subdesenvolvido, ou em desenvolvimento, e passa a ser classificado como “desenvolvido”. Não estamos num concurso e não nos interessa atribuir medalhas de bom desempenho econômico: nosso problema é social e é disso que pretendo falar. 

Assim como acredito que o Brasil já “terminou”, no essencial, seu processo de construção de uma estrutura econômica moderna no país, acredito igualmente que o país não chegou ainda a um patamar sequer razoável de desenvolvimento social, cultural e, sobretudo, educacional. Desse ponto de vista, acho que estamos ainda no século XIX, mas esse tipo de analogia histórica pode ser enganoso, além de anacrônico nos seus próprios termos. O Brasil dispõe, sim, de um bom nível cultural, de altos padrões de ensino e de um bom avanço social em diversas áreas de importância substantiva para a vida nacional. O único problema é que esses níveis e padrões estão desigualmente distribuídos e apresentam, de fato, uma estrutura distributiva iníqua, para não dizer inaceitável do ponto de vista moral e ético. 

De fato, acredito que o que distingue o Brasil de todos os demais países em situação similar (ou até inferior) de desenvolvimento material é o grau anormalmente elevado de miséria social, de exclusão cultural de embrutecimento educacional, atinge faixas expressivas de sua população. Não preciso aqui referir-me às estatísticas, pois a situação salta aos olhos em cada esquina, está presente no cotidiano das grandes cidades e perpassa, como sabemos, a situação escolar de milhões de indivíduos que entram todos os anos na rede pública de ensino para ser expurgada mais adiante na grande tragédia da evasão escolar e da não formação técnico-profissional em padrões compatíveis com as necessidades do mercado de trabalho e dos requerimentos de competitividade econômica.

Corrijo parcialmente este último argumento: o Brasil consegue ser competitivo em vários ramos industriais, do agronegócio e dos serviços, mas mobilizando apenas uma fração mínima de sua mão-de-obra, com um imenso desperdício de contingentes inteiros de trabalhadores não preparados sequer para integrar o exército industrial de reserva. Em outros termos, estamos utilizando apenas uma parte, e não a mais importante, de nossa mão-de-obra potencial (o que não tem nada a ver, a não ser parcialmente, com o fato de 60% da população economicamente ativa estar no setor informal). 

O que caracteriza o Brasil, portanto, é o seu número “excessivo” de pobres, um número não compatível, e até anômalo, em relação ao seu desenvolvimento econômico. O outro aspecto a ser ressaltado é o grau também anormalmente elevado da concentração de renda, o que tem a ver, obviamente, com o “excesso” de pobres. Ambas as situações são devidas, fundamentalmente, à não educação do povo brasileiro, fator que por outro lado dificulta o sistema econômico-produtivo alcançar patamares mais elevados de produtividade, o que se traduziria, de maneira correlata, em melhores condições de competitividade externa, integrando de forma mais intensa o sistema econômico nacional à economia mundial. Somos um país de muitos pobres, dispondo de uma renda inferior à de outros pobres em países de desenvolvimento similar (ou inferior), devido a um sistema educacional deficiente e excludente, o que nos exclui igualmente de uma maior participação nos circuitos econômicos internacionais. 

Estes são, a meu ver, os problemas básicos do Brasil, que um projeto como o “Brasil 3 Tempos” poderia equacionar de modo correto e depois se esforçar para corrigir no menos prazo de tempo possível. No que depender de mim, estes problemas, ao lado do crescimento exagerado do ente estatal, receberão atenção prioritária no processo de formulação do diagnóstico de base do projeto e, depois, na fase de elaboração de propostas de ação de médio e longo prazo para correção das gritantes desigualdades já assinaladas e das mais importantes deformações de nossa estrutura sócio educacional. Este seria meu empenho básico, como condição de fazer o Brasil eliminar, no mais breve prazo possível, os fatores negativos mais vergonhosamente iníquos de nossa estrutura social e cultural, que também concorrem para diminuir o potencial de desenvolvimento econômico e tecnológico.

Temo, porém, que esses problemas simples, meridianamente claros do meu ponto de vista, permaneçam não resolvidos, ou insuficientemente tratados nos meses e anos à frente, como resultado da implementação do projeto “Brasil 3 Tempos” ou de qualquer outro plano, esforço, iniciativa ou ação governamental, neste e nos próximos governos. Meu temor principal é que, ao fim e ao cabo de um governo supostamente identificado com a mudança social no Brasil e com a correção de suas mais gritantes desigualdades, essas deformações de nossa estrutura socioeconômica não sejam de fato resolvidas, ou sequer arranhadas pela política social ou educacional do governo (ou seja, estou falando da conjuntura de 2006-2007). Acredito que poderá até haver algum progresso na frente educacional, com a ampliação dos contingentes mobilizados nos diferentes níveis do sistema formal de ensino – público e privado –, mas que isso não seja suficiente para corrigir um décimo de centésimo sequer do coeficiente de Gini, o indicador que mede o grau de concentração de renda no Brasil. 

Gostaria, sinceramente, de estar errado, mas é o que sinto que pode ocorrer, não apenas em relação ao “Brasil 3 Tempos”, como no que se refere a diversos outros planos de ação governamentais nas áreas social, cultural, educacional, de emprego, de segurança e de distribuição de renda. Acredito que, nas condições atuais do Brasil, um governo seriamente comprometido com a correção das suas mais gritantes desigualdades – que são obviamente as de distribuição de renda e de oportunidades educacionais – deveria estar promovendo um conjunto de ações relativamente simples com foco principal nestas áreas: educação fundamental – isto é, primária, secundária e técnico-profissional –, inclusão digital dos estratos mais pobres da população, garantia de segurança aos cidadãos das grandes aglomerações urbana, redução do excessivo regulacionismo estatal e da carga tributária igualmente excessiva, promoção do empreendedorismo em direção das camadas de menor renda. 

Tenho consciência de que todo Estado, dada a complexidade atual da máquina estatal e o crescimento das responsabilidades governamentais em diversas áreas, teria de fazer muito mais em muitas outras frentes de trabalho, mas por uma simples razão de economia de meios, e de necessidade de se ter um foco preciso para a ação pública, eu concentraria meus meios e recursos disponíveis – que aliás não são muitos – naqueles pontos prioritários apontados acima. De resto, eu procuraria libertar as energias da sociedade, de modo a que ela mesma pudesse empreender nos mais diversos campos abertos ao engenho e arte de um povo operoso, maleável, inventivo e bastante esperto. 

Este é o meu registro preventivo, feito em toda honestidade intelectual, com a promessa de uma conferência honesta e objetiva no primeiro semestre de 2006. 

 

Paulo Roberto de Almeida (Brasília, 5 de setembro de 2004)



Retomo: Em conversas no NAE eu insistia que o projeto deveria se concentrar na educação dos mais jovens, mas o que saiu na questão educacional tampouco me satisfez, pois correspondia a tudo o que governo petista vinha fazendo em educação, e que eu considerava totalmente equivocado. Fui vencido, mas deixei minha opinião registrada em dezenas de textos que elaborei na sequência, tornando-me, por assim dizer, em um precoce opositor conceitual do governo lulopetista (que retaliou, deixando-me sem qualquer cargo na diplomacia ativa no decorrer dos 13,5 anos de sua duração, que terminou pior do que eu imagina, na Grande Destruição econômica de Madame Pasadena).

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 11/03/2021

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