Primeiro um Breaking News Alert do The New York Times (Sat, March 20, 2010 -- 7:16 AM):
Pope Offers Apology for Sex Abuse Scandal
Confronting a sex abuse scandal spreading across Europe, Pope Benedict XVI on Saturday apologized directly and personally to victims and their families in Ireland, expressing "shame and remorse" and saying "your trust had been betrayed and your dignity has been violated."
His message, in a long-awaited, eight-page pastoral letter to Irish Catholics, seemed couched in strong and passionate language. But it did not refer directly to immediate
disciplinary action beyond sending a special apostolic delegation to investigate unspecified dioceses and religious congregations in Ireland. Moreover, it was, as the Vatican said it would be, focused particularly on the situation in Ireland, even as the crisis has widened elsewhere.
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Agora um comentário meu:
Talvez a Igreja Católica não tenha uma maior proporção de "desviantes", no conceito normal dessa expressão em termos socialmente reconhecidos (homossexuais, pedófilos, sexual harassers, etc), do que as sociedades nacionais, como um todo.
Talvez não, mas o problema está em que a Igreja Católica exige de seus "funcionários" uma conduta totalmente incompatível com a expressão normal e natural dos desejos e impulsos humanos, que são o apetite sexual, a necessidade de afeto, amor, carinho e até de dominação carnal, enfim, sentimentos que se expressam naturalmente nos seres humanos e que encontram acolhimento, canalização e satisfação nas instituições e condutas que existem à disposição das pessoas "normais", quais sejam: casamento, namoro, concubinato, convivência afetiva, e outras formas de relacionamento entre pessoas dos dois sexos oficialmente reconhecidos na espécie humana, o que inclui prostituição, adultério e outras formas especiais de intercâmbio carnal (como diria o Gilberto Freyre).
Pois bem, ao proibir aos seus membros não apenas esses intercâmbios, mas a sua mera expressão oral, ao exigir fidelidade total ao princípio do celibato e da abstinência sexual, a Igreja Católica está pedindo demais a seus "funcionários" e impondo-lhes uma restrição absoluta em termos de expressão natural de seus desejos e impulsos que acabam tendo manifestações "desviantes", clandestinas e até perversões, que além de serem "pecaminosas" pelos seus códigos de conduta, acabam sendo malignos e até cruéis (como a pedofilia, por exemplo).
Tudo isso, claro, em nome da preservação do seu poder: os "homens especiais" que se dedicam à Igreja Católica deveriam ser servos fiéis de sua missão evangelizadora, mas também um exército de burocratas engajados em aumentar o poder (espiritual e material) da Igreja sobre o mundo e sobre as pessoas. Ao tolher a seu pequeno exército de burocratas e soldados da fé a expressão livre de seus desejos naturais, a Igreja acaba forçando-os a práticas imorais ou até delituosas.
Que um padre da Igreja Católica se aventure ocasionalmente em amores clandestinos, com uma mulher, em uma relação livremente consentida, não existe problema algum, posto que em outras igrejas existe casamento e outras práticas. Ao proibir qualquer tipo de amor, a Igreja Católica "força" seus funcionários a praticar sexo com seres dominados (crianças) ou colegas, com ou sem consentimento explícito.
Finalmente, essas comissões de investigação para apurar "desvios de conduta" são uma grande hipocrisia e um travestimento do problema. Não se trata de resolver, e sim de impedir a divulgação e evitar "novos" problemas.
O problema só será resolvido (parcialmente, posto que "desviantes" sempre existem, em qualquer sociedade ou grupo social) quando a Igreaja Católica terminar com o dogma estúpido do celibato e da abstinência sexual, e passar a dispor de um exército de soldados e burocratas livres para expressar naturalmente seus desejos e impulsos. Isso tornará a instituição menos "eficiente" para seus fins próprios -- que são o monopólio da fé e a conduta individual de seus filiados, membros e seguidores, tornados servos obedientes de seus dogmas ancestrais -- mas ela será provavelmente menos propensa a produzir um número tão alto de desviantes ativos.
Paulo Roberto de Almeida (20.03.2010)
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
sábado, 20 de março de 2010
sexta-feira, 19 de março de 2010
1888) O dialogo sobre a revolucao russa continua...
Bem, não por minha iniciativa, mas não sou de recusar um debate.
Vejamos o que recebi em retorno ao post anterior (ver o imediatamente precedente):
PS: Alertado por um leitor, observo que o advogado em questão anda com o seu computador um pouco atrasado; a mensagem foi postada em 19/03/2010, mas o seu computador ainda "vive" em 2008.
On Jun 19, 2008, [sic] at 8:01 PM, Pedro Maciel - Maciel Neto Advogados wrote:
Professor, Boa Noite!
Vamos lá:
1º) não sou trotsquista (sou pontepretano) na adolescência sim, fui militante do PSI, vendi jornal O TRABALHO na faculdade, etc e tal, assim como o Pallocci e o Vicente (atual Presidente da ANA), hoje penso que sou um socialista que acredita na democracia como elemento fundamental e transformador dar relações, não cultuo dogmas ou verdades, se o meu texto passou essa idéia vou reescrevê-lo; por que estou no PCdoB? É uma longa historia...
2º) hoje, em relação ao socialismo, penso como Fidel, o qual na sua entrevista ao Jornalista Inácio Ramonet, que afirma categoricamente que “... a teoria e prática do socialismo ainda estão por serem escritas.” E se pergunta: “Veja só, o que é marxismo? O que é socialismo? Isso não está bem definido. Em primeiro lugar, aúnica economia política que existe é a capitalista; mas a capitalista de Adam Smith. Então andamos fazendo socialismo muitas vezes com categorias adotadas do capitalismo, o que é uma das grandes preocupações na construção do socialismo, (...) Marx fez apenas uma breve tentativa na CRITICA DO PROGRAMA DE GOTHA de definir como seria o socialismo, porque era um homem muito sábio, muito inteligente e realista para imaginar que se poderia escrever uma utopia sobre como seria o socialismo. O Problema foi a interpretação das doutrinas, e foram muitas. Por isso os progressistas permaneceram tanto tempo divididos, e as polêmicas entre anarquistas e socialistas, os problemas depois da revolução Bolchevique de 1.917 entre trotskistas e stalinistas ou, digamos, para os partidários daquelas grandes polêmicas que foram geradas, a divisão ideológica entre os dois grandes dirigentes.”
Esclarecidos esses pontos acredito que a revolução de outubro poderia ter sido algo de transformador, mas não foi... E acredito que UM dos fatores determinantes foi a burocracia, a transformação do partido em classe dirigente, ignorando a possibilidade de criação de uma democracia não burguesa.
O capitalismo de fato não se abalou, mas os capitalistas sim, até hoje eles arrepiam quando pensam na possibilidade (remotissima) do fim da propriedade privada.
A revolução, ou golpe, de 1917 falhou porque foi incapaz de desenvolver-se economica e socialmente de forma democratica, foi incapaz de levar a Russia (depois URSS) do arcaico - em relação à Europa Ocidental - ao moderno de forma democratia, foi incapaz de romper com as relações feudais (servidão) e com os baixos níveis de produtividade de forma democratica e, principalmente, foi incapaz de vencer o império religioso (afinal era a Igreja Ortodoxa que coroava os czares). Ou seja, da "Santa Russia Imperial" caminhou 360o. para a "Santa URSS do culto à personalidade", etc e tal.
Quando Stalin assume o poder, e rompe o pacto federativo de Lenin da URSS de 1922 e transformou os pequenos proprietários rurais (declarados inimigos da revolução) em KOLKHOZES - camponezes assalariados; quando Stalin confisca os bens dos pequenos proprietários e cria os GULAG; dá inicio ao "culto à personalidade"; fuziila entre 1936 e 1938 1 milhão de "inimigos" (periodo em que 6 milhões de camponezes morreram), etc, etc, etc, o movimento perde qualquer legitimidade e pode ser chamado de qualquer coisa, menos de socialismo.
Não tenho conhecimento cientifico da História, sou um advogado e não historiador ou cientista social, mas sei que para entender o que aconteceu em 1917 temos de conhecer a estrutura da Russia, a Guerra contra o Japão de 1.904,a Revolução de 1.905, o "Domingo Sangrento", o nascimento nesse contexto dos sovietes a "revolta do encouraçado Potenkin", as greves e as invasões de terra, a convocação da DUMA, a aliança entre a burguesia e os sovietes, a traição dos burgueses na DUMA (que votaram com o Czar), a aliança entre os Bolcheviques e o pessoal do socialismo rural (que talvez fosse mais honesto que os demais), a 1o.Guerra Mundia, em 1.914, a "revolução anônima" de fevereiro de 1.917 liderada por Kerenski, as tentativas de golpe contra Kerenski, a chegada de Lenin à Estação Finlândia em San Petesburgo dizendo exatamente o que o povo queria ouvir "TODO PODER AOS SOVIETES, PAZ, TERRA E PÃO), etc e tal.
Sobre o seu comentário "A caracterização fantástica desse golpe bolchevique como uma revolução operária e campesina, como você escreve, é o primeiro mito que caberia desmantelar para um debate consequente em torno da revolução russa.", tenho clareza que foi um golpe que ocorreu em 24 de outubro de 1917 em Petrogrado local em que o Soviete de Petrogrado liderado por Trotsky "tomou o poder" e no dia seguinte Lenin "declara a revolução pro decretos", decretos que são apoiados pelos demais societes da Russia.
Vou refletir sobre os seus comentários, que são todos pertinentes, contudo observo que o senhor não discorda que a burocracia, a ausência de democracia e a transformação dos lideres do partido em "classe dirigente" foram importante ingrediente para o fracasso, certo?
abs,
Pedro Maciel
==========
E o que respondi:
Caro Pedro
Vou tentar resumir os seus argumentos e acrescentar os meus:
1) "não sou trotsquista (sou pontepretano)"
PRA: Acho que o presidente é o unico que tem direito de brincar com fé politica e fanatismo futebolistico; afinal de contas, como os indios, as crianças e os alienados, ele é inimputavel por suas declaracoes, por mais absurdas que elas sejam;
2) "hoje penso que sou um socialista que acredita na democracia como elemento fundamental e transformador dar relações"
PRA: se voce apenas pensa é porque nao tem certeza. Pode em todo caso pensar um pouco e me apontar algum regime socialista, um único sequer, que tenha sido democrático, na concepção normal (sem adjetivos) dessa palavra; se nao conseguir, nao se preocupe: é porque nunca houve...; falar em "transformar relações" revela a mesma vocação totalitária de tantos engenheiros sociais que pensam em mudar a sociedade pelos meios disponiveis (que costumam ser os piores possiveis);
3) "hoje, em relação ao socialismo, penso como Fidel,"
PRA: Sinto muito, mas se voce pensa como Fidel, você está confessando uma vocação totalitária raramente vista na história da humanidade; nem Stalin, nem Mao ficaram tanto tempo no poder; voce nao sente nenhum calafrio ao dizer uma coisa dessas?
4) Fidel afirma: “... a teoria e prática do socialismo ainda estão por serem escritas.”
PRA: Se isso é verdade, então o Fidel é um completo idiota, e tenta fazer de idiotas 10 milhoes de cubanos. Como é que voce explica que ele está ha 50 anos tentando criar uma coisa para a qual não existe nem doutrina nem prática estabelecidas? Só pode ser coisa de um completo maluco, não acha? Ou então, um perigoso lunático, tentado fazer algo do qual não tem a menor ideia de por onde começar e para onde ir.
Se voce de fato pensa como Fidel, então voce é um completo alienado, como ele confessa ser, indiretamente.
5) Fidel continua: "O que é socialismo? Isso não está bem definido. "
PRA: Parabéns; se voce pensa como Fidel, então quer uma coisa que não está bem definida também. Coisa de malucos não acha? Pessoas razoaveis, sensatas, querem coisas sobre as quais elas possuem um mínimo de informações. Esse Fidel só pode ser um idiota completo...
6) Voce afirma: "Esclarecidos esses pontos..."
PRA: Como assim? Nenhum ponto foi esclarecido. Voce e seu amigo Fidel só colocaram dúvidas, angustias, incertezas, nao conhecem nem a teoria, nem a prática do socialismo, que vergonha! Não fizeram o dever de casa, não estudaram, pesquisaram, antes de aderir a essa coisa, digamos, indefinida...
7) "UM dos fatores determinantes [para o insucesso do socialismo na URSS] foi a burocracia, a transformação do partido em classe dirigente, ignorando a possibilidade de criação de uma democracia não burguesa."
PRA: Ah bom, pensei que fosse uma ditadura incapaz de produzir produtos simples, como existem em qualquer sociedade normal. Também não sabia que um partido (de burocratas ou não) fosse capaz de trabsformar-se em "classe" (sic); voce tem certeza?
E essa tal de democracia não burguesa, do que ela é feita? Como é que se pode definir algo pela negativa? Acho que você precisaria definir melhor o que pretende: dizer que quer uma coisa que não seja algo, significa dizer nada, sobre o nada, ou seja, optar pela não opção... Existe aqui aqui que se poderia chamar de inconsistencia lógica, uma tremenda falha conceitual.
8) "A revolução, ou golpe, de 1917 falhou porque foi incapaz de desenvolver-se economica e socialmente de forma democratica..."
PRA: Aqui existe uma incompreensão profunda do que seja uma revolucao ou um golpe: impossível que se desenvolvam de forma democratica, pois se trata de fenômenos ou processos violentos, autoritários, quebrando regras, ou seja, o exato contrario de uma democracia. Acho que voce precisa ver de modo mais claro os fenomenos sociais e politicos em sua definicao precisa e adequaçao à realidade.
9) Resumo: "Quando Stalin assume o poder,... [confisca, fuzila, Gulag...] ...o movimento perde qualquer legitimidade e pode ser chamado de qualquer coisa, menos de socialismo."
PRA: Ah bom, nao apenas o Stalin, mas todos os comunistas e adeptos da doutrina disseram, durante setenta anos, que estavam construindo o SOCIALISMO, e agora você me dizer que não era socialismo. Com que autoridade você diz isso? Escreveu algum manual do verdadeiro socialismo? Está publicado? Quem tem razão?: você ou o Stalin? Ou quem sabe o Fidel? Mas ele também não sabe nada, e já confessou isso. Que bando de indecisos vocês são...
10) "Não tenho conhecimento cientifico da História, sou um advogado e não historiador ou cientista social,..."
PRA: Não precisa ter um conhecimento "científico" da História: o último que pretendeu ter elaborado uma concepção "científica" da História, colocou as bases de um sistema científico que deve ter eliminado, por baixo, um "excedente demográfico" na casa dos 100 ou 200 milhões de pessoas, com mortes morridas e mortes matadas, ou seja, direta e indiretamente.
Não precisa ter conhecimento "científico" da História para saber disso; basta abrir os olhos e observar a realidade. Alguns livros de História que não sejam dessa vertente "científica" também ajudam...
11) Finalmente: "Vou refletir sobre os seus comentários, que são todos pertinentes, contudo observo que o senhor não discorda que a burocracia, a ausência de democracia e a transformação dos lideres do partido em "classe dirigente" foram importante ingrediente para o fracasso, certo?"
PRA: Grato pelos "comentários pertinentes". Acho que você confunde as coisas: burocracia existe em QUALQUER sistema social e politico um pouco mais elaborado, que nao seja um tribo de botocudos, por exemplo.
Ausência de democracia pode significar ditadura, plutocracia, totalitarismo, enfim qualquer coisa. A gente precisa definir as coisas positivamente, nao negativamente, pela ausência de algo...
Por fim, essa coisa de ver líderes de um partido transformados em "classe dirigente" não quer dizer absolutamente nada, isso é linguajar de marxista desocupado.
Quanto a fracasso, tem muitas maneiras de chegar nele: um povo que empobrece, ainda que relativamente, é um povo fracassado, certo? Um povo que elege um caudilho que depois se torna ditador, também pode se confessar fracassado. Um povo que prefere esmola a trabalho, já pode considerar-se um povo fracassado...
Acho que está bem por hoje...
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Paulo Roberto Almeida
(19.03.2010)
Vejamos o que recebi em retorno ao post anterior (ver o imediatamente precedente):
PS: Alertado por um leitor, observo que o advogado em questão anda com o seu computador um pouco atrasado; a mensagem foi postada em 19/03/2010, mas o seu computador ainda "vive" em 2008.
On Jun 19, 2008, [sic] at 8:01 PM, Pedro Maciel - Maciel Neto Advogados wrote:
Professor, Boa Noite!
Vamos lá:
1º) não sou trotsquista (sou pontepretano) na adolescência sim, fui militante do PSI, vendi jornal O TRABALHO na faculdade, etc e tal, assim como o Pallocci e o Vicente (atual Presidente da ANA), hoje penso que sou um socialista que acredita na democracia como elemento fundamental e transformador dar relações, não cultuo dogmas ou verdades, se o meu texto passou essa idéia vou reescrevê-lo; por que estou no PCdoB? É uma longa historia...
2º) hoje, em relação ao socialismo, penso como Fidel, o qual na sua entrevista ao Jornalista Inácio Ramonet, que afirma categoricamente que “... a teoria e prática do socialismo ainda estão por serem escritas.” E se pergunta: “Veja só, o que é marxismo? O que é socialismo? Isso não está bem definido. Em primeiro lugar, aúnica economia política que existe é a capitalista; mas a capitalista de Adam Smith. Então andamos fazendo socialismo muitas vezes com categorias adotadas do capitalismo, o que é uma das grandes preocupações na construção do socialismo, (...) Marx fez apenas uma breve tentativa na CRITICA DO PROGRAMA DE GOTHA de definir como seria o socialismo, porque era um homem muito sábio, muito inteligente e realista para imaginar que se poderia escrever uma utopia sobre como seria o socialismo. O Problema foi a interpretação das doutrinas, e foram muitas. Por isso os progressistas permaneceram tanto tempo divididos, e as polêmicas entre anarquistas e socialistas, os problemas depois da revolução Bolchevique de 1.917 entre trotskistas e stalinistas ou, digamos, para os partidários daquelas grandes polêmicas que foram geradas, a divisão ideológica entre os dois grandes dirigentes.”
Esclarecidos esses pontos acredito que a revolução de outubro poderia ter sido algo de transformador, mas não foi... E acredito que UM dos fatores determinantes foi a burocracia, a transformação do partido em classe dirigente, ignorando a possibilidade de criação de uma democracia não burguesa.
O capitalismo de fato não se abalou, mas os capitalistas sim, até hoje eles arrepiam quando pensam na possibilidade (remotissima) do fim da propriedade privada.
A revolução, ou golpe, de 1917 falhou porque foi incapaz de desenvolver-se economica e socialmente de forma democratica, foi incapaz de levar a Russia (depois URSS) do arcaico - em relação à Europa Ocidental - ao moderno de forma democratia, foi incapaz de romper com as relações feudais (servidão) e com os baixos níveis de produtividade de forma democratica e, principalmente, foi incapaz de vencer o império religioso (afinal era a Igreja Ortodoxa que coroava os czares). Ou seja, da "Santa Russia Imperial" caminhou 360o. para a "Santa URSS do culto à personalidade", etc e tal.
Quando Stalin assume o poder, e rompe o pacto federativo de Lenin da URSS de 1922 e transformou os pequenos proprietários rurais (declarados inimigos da revolução) em KOLKHOZES - camponezes assalariados; quando Stalin confisca os bens dos pequenos proprietários e cria os GULAG; dá inicio ao "culto à personalidade"; fuziila entre 1936 e 1938 1 milhão de "inimigos" (periodo em que 6 milhões de camponezes morreram), etc, etc, etc, o movimento perde qualquer legitimidade e pode ser chamado de qualquer coisa, menos de socialismo.
Não tenho conhecimento cientifico da História, sou um advogado e não historiador ou cientista social, mas sei que para entender o que aconteceu em 1917 temos de conhecer a estrutura da Russia, a Guerra contra o Japão de 1.904,a Revolução de 1.905, o "Domingo Sangrento", o nascimento nesse contexto dos sovietes a "revolta do encouraçado Potenkin", as greves e as invasões de terra, a convocação da DUMA, a aliança entre a burguesia e os sovietes, a traição dos burgueses na DUMA (que votaram com o Czar), a aliança entre os Bolcheviques e o pessoal do socialismo rural (que talvez fosse mais honesto que os demais), a 1o.Guerra Mundia, em 1.914, a "revolução anônima" de fevereiro de 1.917 liderada por Kerenski, as tentativas de golpe contra Kerenski, a chegada de Lenin à Estação Finlândia em San Petesburgo dizendo exatamente o que o povo queria ouvir "TODO PODER AOS SOVIETES, PAZ, TERRA E PÃO), etc e tal.
Sobre o seu comentário "A caracterização fantástica desse golpe bolchevique como uma revolução operária e campesina, como você escreve, é o primeiro mito que caberia desmantelar para um debate consequente em torno da revolução russa.", tenho clareza que foi um golpe que ocorreu em 24 de outubro de 1917 em Petrogrado local em que o Soviete de Petrogrado liderado por Trotsky "tomou o poder" e no dia seguinte Lenin "declara a revolução pro decretos", decretos que são apoiados pelos demais societes da Russia.
Vou refletir sobre os seus comentários, que são todos pertinentes, contudo observo que o senhor não discorda que a burocracia, a ausência de democracia e a transformação dos lideres do partido em "classe dirigente" foram importante ingrediente para o fracasso, certo?
abs,
Pedro Maciel
==========
E o que respondi:
Caro Pedro
Vou tentar resumir os seus argumentos e acrescentar os meus:
1) "não sou trotsquista (sou pontepretano)"
PRA: Acho que o presidente é o unico que tem direito de brincar com fé politica e fanatismo futebolistico; afinal de contas, como os indios, as crianças e os alienados, ele é inimputavel por suas declaracoes, por mais absurdas que elas sejam;
2) "hoje penso que sou um socialista que acredita na democracia como elemento fundamental e transformador dar relações"
PRA: se voce apenas pensa é porque nao tem certeza. Pode em todo caso pensar um pouco e me apontar algum regime socialista, um único sequer, que tenha sido democrático, na concepção normal (sem adjetivos) dessa palavra; se nao conseguir, nao se preocupe: é porque nunca houve...; falar em "transformar relações" revela a mesma vocação totalitária de tantos engenheiros sociais que pensam em mudar a sociedade pelos meios disponiveis (que costumam ser os piores possiveis);
3) "hoje, em relação ao socialismo, penso como Fidel,"
PRA: Sinto muito, mas se voce pensa como Fidel, você está confessando uma vocação totalitária raramente vista na história da humanidade; nem Stalin, nem Mao ficaram tanto tempo no poder; voce nao sente nenhum calafrio ao dizer uma coisa dessas?
4) Fidel afirma: “... a teoria e prática do socialismo ainda estão por serem escritas.”
PRA: Se isso é verdade, então o Fidel é um completo idiota, e tenta fazer de idiotas 10 milhoes de cubanos. Como é que voce explica que ele está ha 50 anos tentando criar uma coisa para a qual não existe nem doutrina nem prática estabelecidas? Só pode ser coisa de um completo maluco, não acha? Ou então, um perigoso lunático, tentado fazer algo do qual não tem a menor ideia de por onde começar e para onde ir.
Se voce de fato pensa como Fidel, então voce é um completo alienado, como ele confessa ser, indiretamente.
5) Fidel continua: "O que é socialismo? Isso não está bem definido. "
PRA: Parabéns; se voce pensa como Fidel, então quer uma coisa que não está bem definida também. Coisa de malucos não acha? Pessoas razoaveis, sensatas, querem coisas sobre as quais elas possuem um mínimo de informações. Esse Fidel só pode ser um idiota completo...
6) Voce afirma: "Esclarecidos esses pontos..."
PRA: Como assim? Nenhum ponto foi esclarecido. Voce e seu amigo Fidel só colocaram dúvidas, angustias, incertezas, nao conhecem nem a teoria, nem a prática do socialismo, que vergonha! Não fizeram o dever de casa, não estudaram, pesquisaram, antes de aderir a essa coisa, digamos, indefinida...
7) "UM dos fatores determinantes [para o insucesso do socialismo na URSS] foi a burocracia, a transformação do partido em classe dirigente, ignorando a possibilidade de criação de uma democracia não burguesa."
PRA: Ah bom, pensei que fosse uma ditadura incapaz de produzir produtos simples, como existem em qualquer sociedade normal. Também não sabia que um partido (de burocratas ou não) fosse capaz de trabsformar-se em "classe" (sic); voce tem certeza?
E essa tal de democracia não burguesa, do que ela é feita? Como é que se pode definir algo pela negativa? Acho que você precisaria definir melhor o que pretende: dizer que quer uma coisa que não seja algo, significa dizer nada, sobre o nada, ou seja, optar pela não opção... Existe aqui aqui que se poderia chamar de inconsistencia lógica, uma tremenda falha conceitual.
8) "A revolução, ou golpe, de 1917 falhou porque foi incapaz de desenvolver-se economica e socialmente de forma democratica..."
PRA: Aqui existe uma incompreensão profunda do que seja uma revolucao ou um golpe: impossível que se desenvolvam de forma democratica, pois se trata de fenômenos ou processos violentos, autoritários, quebrando regras, ou seja, o exato contrario de uma democracia. Acho que voce precisa ver de modo mais claro os fenomenos sociais e politicos em sua definicao precisa e adequaçao à realidade.
9) Resumo: "Quando Stalin assume o poder,... [confisca, fuzila, Gulag...] ...o movimento perde qualquer legitimidade e pode ser chamado de qualquer coisa, menos de socialismo."
PRA: Ah bom, nao apenas o Stalin, mas todos os comunistas e adeptos da doutrina disseram, durante setenta anos, que estavam construindo o SOCIALISMO, e agora você me dizer que não era socialismo. Com que autoridade você diz isso? Escreveu algum manual do verdadeiro socialismo? Está publicado? Quem tem razão?: você ou o Stalin? Ou quem sabe o Fidel? Mas ele também não sabe nada, e já confessou isso. Que bando de indecisos vocês são...
10) "Não tenho conhecimento cientifico da História, sou um advogado e não historiador ou cientista social,..."
PRA: Não precisa ter um conhecimento "científico" da História: o último que pretendeu ter elaborado uma concepção "científica" da História, colocou as bases de um sistema científico que deve ter eliminado, por baixo, um "excedente demográfico" na casa dos 100 ou 200 milhões de pessoas, com mortes morridas e mortes matadas, ou seja, direta e indiretamente.
Não precisa ter conhecimento "científico" da História para saber disso; basta abrir os olhos e observar a realidade. Alguns livros de História que não sejam dessa vertente "científica" também ajudam...
11) Finalmente: "Vou refletir sobre os seus comentários, que são todos pertinentes, contudo observo que o senhor não discorda que a burocracia, a ausência de democracia e a transformação dos lideres do partido em "classe dirigente" foram importante ingrediente para o fracasso, certo?"
PRA: Grato pelos "comentários pertinentes". Acho que você confunde as coisas: burocracia existe em QUALQUER sistema social e politico um pouco mais elaborado, que nao seja um tribo de botocudos, por exemplo.
Ausência de democracia pode significar ditadura, plutocracia, totalitarismo, enfim qualquer coisa. A gente precisa definir as coisas positivamente, nao negativamente, pela ausência de algo...
Por fim, essa coisa de ver líderes de um partido transformados em "classe dirigente" não quer dizer absolutamente nada, isso é linguajar de marxista desocupado.
Quanto a fracasso, tem muitas maneiras de chegar nele: um povo que empobrece, ainda que relativamente, é um povo fracassado, certo? Um povo que elege um caudilho que depois se torna ditador, também pode se confessar fracassado. Um povo que prefere esmola a trabalho, já pode considerar-se um povo fracassado...
Acho que está bem por hoje...
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Paulo Roberto Almeida
(19.03.2010)
1887) Um diálogo sobre a revolução russa (tudo em minúsculas...)
Recebo, de um leitor de um dos meus textos, citado nele, uma mensagem que reproduzo a seguir:
" On Thursday, June 19, 2008, at 03:03PM, "Pedro Maciel - Maciel Neto Advogados" wrote:
Caro Professor Paulo Roberto,
Recebi de um aluno uma cópia do sue artigo "A RESISTÍVEL DECADÊNCIA DO MARXISMO..." publicado na Revista Espaço Acadêmico - No. 106 - Março de 2010, p. 131/138.
Fiquei honrado de servir de nota de rodapé (p. 133). Gostei do artigo, ele é honesto sob ponto de vista que defende. Lamento não ter sido claro quando escrevi que"...o capitalismo, sua lógica, seus principais operadores e seus estafetas foram abalados com a possibilidade de novos sistemas... com a participação da classe trabalhadora,"eu me referi nesse ponto do artigo à contra-revolução (ou guerra civil) financiada pela França, Japão e Inglaterra, fato que manteve a Russia em guerra de 1.917/1.921.
Abraços,
Pedro Maciel
Pedro Benedito Maciel Neto
MACIEL NETO ADVOGADOS E CONSULTORES "
Bem, constato, em primeiro lugar, que o meu interlocutor, a despeito de ser um curioso marxista que combina seu pertencimento ao PCdoB -- um partido teoricamente maoista -- com a sua admiração por Trotsky -- um marxista aderente tardio ao bolchevismo, e que era execrado por stalinistas e maoistas -- é um advogado numa sociedade capitalista, o que pode representar alguns problemas de consciência.
Constato, em segundo lugar, que ele corrige a frase que eu citei num ponto fundamental, pois seu argumento atual modifica completamente o sentido da frase que tinha sido colocada em seu artigo original -- citado em meu texto, que já informo onde encontrar --, que pretendia fazer o capitalismo tremer de medo em face da gloriosa revolução proletária e campesina (sic) ocorrida na Rússia em 1917 (outubro, frise-se bem, não fevereiro, como seria o mais correto, pois em outubro ocorreu um putsch, não uma revolução), quando ele pretende agora falar da guerra civil de 1917-1921, quando bolcheviques e anti-bolcheviques (apoiados pela Grã-Bretanha, França e Japão) se enfrentaram numa terrível guerra civil, durante a qual Trotsky empregou ao mais alto grau as armas do terror, justamente.
O que se segue é um debate essencialmente histórico (ou seja, uma mensagem resposta, da minha parte, enviada diretamente ao e-mail do maoista-trotsquista-advogado) em torno deste meu artigo:
Paulo Roberto de Almeida:
"A resistível decadência do marxismo teórico e do socialismo prático: um balanço objetivo e algumas considerações subjetivas"
Revista Espaço Acadêmico (vol. 9, nº 106, Março de 2010, p. 131-138)
neste link.
Bem, sem mais delongas, reproduzo a seguir o que respondi ao advogado de Trotsky:
Pedro,
Agradeço pelo seu esclarecimento quanto ao contexto de 1917-21, agora de modo mais claro, mas eu teria então um comentário adicional.
Não creio que a intervenção protagonizada por algumas potências ocidentais (basicamente GB e França) e o Japão, no contexto da revolução russa de 1917, possa ser enquadrada no conceito de"capitalismo", que como você deve saber, não tem um centro coordenador ou um Estado-Maior centralizador de operações (ainda que muitos partilhem dessa visão conspiratória da História).
Essas intervenções, em grande parte indiretas (ou seja, em apoio aos exércitos "brancos" dos aristocratas ou contra-revolucionários, ou se quisermos ser mais honestos com a verdade, dos anti-bolcheviques) se deram no contexto da guerra contra a Alemanha, com a qual a Russia bolchevique negociou um armistício (em detrimento das alianças feitas pela Russia czarista com essas potências, que estavam mais ou menos sendo honradas pelo governo saido de Fevereiro, entre outros por Kerensky).
Como voce deve saber, como trostquista que é, o negociador desse desastroso armísticio (que determinou grandes perdas territoriais) foi Leon Trotsky, entao comissario do povo para assuntos exteriores, com a complacência mais ou menos inconsciente de Lenin (que tinha sua dívida a pagar com a Alemanha do Kaiser, em função do trem blindado).
Em outras palavras, foram consideracoes de natureza estratégica e de ordem tatica no terreno (pois o armisticio liberava as forcas alemas para atacar em massa na frente ocidental) que levaram as potencias a intervir, e nao, prioritariamente, essas consideracoes de ordem economica ou social que você coloca. No meio de uma guerra, e com as economias capitalistas ocidentais largamente dominadas pela intervencao estatal, a preocupacao quanto ao sistema economica estava em baixa escala de prioridades entre os dirigentes ocidentais que determinaram as intervencoes, ainda que entre eles figurassem anticomunistas de carteirinha, como o proprio Winston Churchill, que tinha sido Lorde do Almirantado.
Ou seja, o capitalismo ocidental nao apenas nao foi abalado, como sequer se preocupou com o putsch bolchevique, se é que o capitalismo tenha tido um "cérebro", como se deduz de sua argumentação. Alias, a possibilidade de que o capitalismo possa ter sido abalado com o surgimento de um novo sistema de ambito mundial me parece, como diria Mark Twain, francamente exagerada...
Creio que certos marxistas (eu também me incluo na categoria, mas não sou religioso como grande parte dos cultores da crença) deveriam parar de atribuir ao capitalismo essas caracteristicas imanentes que fazem dele uma entidade organizadora do mundo, o que constitui, precisamente, uma das grandes mistificações sociológicas do marxismo vulgar.
Quanto ao resto, um pouco de conhecimento de história, também ajudaria bastante na arguemntação em torno da Revolução Russa. A caracterização fantástica desse golpe bolchevique como uma revolução operária e campesina, como você escreve, é o primeiro mito que caberia desmantelar para um debate consequente em torno da revolução russa. Você parece comprar inteiramente a versão trotsquista e soviética desse processo, e se exime de consultar historiadores "burgueses" (mas sérios) que escreveram sobre o mesmo fenômeno, o que faz com que a maior parte da literatura dita marxista em torno desse fenômeno gira em circulos em torno dos mitos construídos pelos próprios defensores ideológicos e políticos dessa visão do mundo.
Uma história honesta e completa seria bem mais matizada quanto aos golpes, contra-golpes e processos reais que se desenvolveram na Russia.
Vocês fazem exatamente como o Vaticano: constroem uma história e se atem a certos dogmas, como se isso pudesse ser um substituto da pesquisa histórica real.
Em todo caso, grato pelo diálogo
----------------------
Paulo Roberto de Almeida
(Brasilia, 19.03.2010)
" On Thursday, June 19, 2008, at 03:03PM, "Pedro Maciel - Maciel Neto Advogados"
Caro Professor Paulo Roberto,
Recebi de um aluno uma cópia do sue artigo "A RESISTÍVEL DECADÊNCIA DO MARXISMO..." publicado na Revista Espaço Acadêmico - No. 106 - Março de 2010, p. 131/138.
Fiquei honrado de servir de nota de rodapé (p. 133). Gostei do artigo, ele é honesto sob ponto de vista que defende. Lamento não ter sido claro quando escrevi que"...o capitalismo, sua lógica, seus principais operadores e seus estafetas foram abalados com a possibilidade de novos sistemas... com a participação da classe trabalhadora,"eu me referi nesse ponto do artigo à contra-revolução (ou guerra civil) financiada pela França, Japão e Inglaterra, fato que manteve a Russia em guerra de 1.917/1.921.
Abraços,
Pedro Maciel
Pedro Benedito Maciel Neto
MACIEL NETO ADVOGADOS E CONSULTORES "
Bem, constato, em primeiro lugar, que o meu interlocutor, a despeito de ser um curioso marxista que combina seu pertencimento ao PCdoB -- um partido teoricamente maoista -- com a sua admiração por Trotsky -- um marxista aderente tardio ao bolchevismo, e que era execrado por stalinistas e maoistas -- é um advogado numa sociedade capitalista, o que pode representar alguns problemas de consciência.
Constato, em segundo lugar, que ele corrige a frase que eu citei num ponto fundamental, pois seu argumento atual modifica completamente o sentido da frase que tinha sido colocada em seu artigo original -- citado em meu texto, que já informo onde encontrar --, que pretendia fazer o capitalismo tremer de medo em face da gloriosa revolução proletária e campesina (sic) ocorrida na Rússia em 1917 (outubro, frise-se bem, não fevereiro, como seria o mais correto, pois em outubro ocorreu um putsch, não uma revolução), quando ele pretende agora falar da guerra civil de 1917-1921, quando bolcheviques e anti-bolcheviques (apoiados pela Grã-Bretanha, França e Japão) se enfrentaram numa terrível guerra civil, durante a qual Trotsky empregou ao mais alto grau as armas do terror, justamente.
O que se segue é um debate essencialmente histórico (ou seja, uma mensagem resposta, da minha parte, enviada diretamente ao e-mail do maoista-trotsquista-advogado) em torno deste meu artigo:
Paulo Roberto de Almeida:
"A resistível decadência do marxismo teórico e do socialismo prático: um balanço objetivo e algumas considerações subjetivas"
Revista Espaço Acadêmico (vol. 9, nº 106, Março de 2010, p. 131-138)
neste link.
Bem, sem mais delongas, reproduzo a seguir o que respondi ao advogado de Trotsky:
Pedro,
Agradeço pelo seu esclarecimento quanto ao contexto de 1917-21, agora de modo mais claro, mas eu teria então um comentário adicional.
Não creio que a intervenção protagonizada por algumas potências ocidentais (basicamente GB e França) e o Japão, no contexto da revolução russa de 1917, possa ser enquadrada no conceito de"capitalismo", que como você deve saber, não tem um centro coordenador ou um Estado-Maior centralizador de operações (ainda que muitos partilhem dessa visão conspiratória da História).
Essas intervenções, em grande parte indiretas (ou seja, em apoio aos exércitos "brancos" dos aristocratas ou contra-revolucionários, ou se quisermos ser mais honestos com a verdade, dos anti-bolcheviques) se deram no contexto da guerra contra a Alemanha, com a qual a Russia bolchevique negociou um armistício (em detrimento das alianças feitas pela Russia czarista com essas potências, que estavam mais ou menos sendo honradas pelo governo saido de Fevereiro, entre outros por Kerensky).
Como voce deve saber, como trostquista que é, o negociador desse desastroso armísticio (que determinou grandes perdas territoriais) foi Leon Trotsky, entao comissario do povo para assuntos exteriores, com a complacência mais ou menos inconsciente de Lenin (que tinha sua dívida a pagar com a Alemanha do Kaiser, em função do trem blindado).
Em outras palavras, foram consideracoes de natureza estratégica e de ordem tatica no terreno (pois o armisticio liberava as forcas alemas para atacar em massa na frente ocidental) que levaram as potencias a intervir, e nao, prioritariamente, essas consideracoes de ordem economica ou social que você coloca. No meio de uma guerra, e com as economias capitalistas ocidentais largamente dominadas pela intervencao estatal, a preocupacao quanto ao sistema economica estava em baixa escala de prioridades entre os dirigentes ocidentais que determinaram as intervencoes, ainda que entre eles figurassem anticomunistas de carteirinha, como o proprio Winston Churchill, que tinha sido Lorde do Almirantado.
Ou seja, o capitalismo ocidental nao apenas nao foi abalado, como sequer se preocupou com o putsch bolchevique, se é que o capitalismo tenha tido um "cérebro", como se deduz de sua argumentação. Alias, a possibilidade de que o capitalismo possa ter sido abalado com o surgimento de um novo sistema de ambito mundial me parece, como diria Mark Twain, francamente exagerada...
Creio que certos marxistas (eu também me incluo na categoria, mas não sou religioso como grande parte dos cultores da crença) deveriam parar de atribuir ao capitalismo essas caracteristicas imanentes que fazem dele uma entidade organizadora do mundo, o que constitui, precisamente, uma das grandes mistificações sociológicas do marxismo vulgar.
Quanto ao resto, um pouco de conhecimento de história, também ajudaria bastante na arguemntação em torno da Revolução Russa. A caracterização fantástica desse golpe bolchevique como uma revolução operária e campesina, como você escreve, é o primeiro mito que caberia desmantelar para um debate consequente em torno da revolução russa. Você parece comprar inteiramente a versão trotsquista e soviética desse processo, e se exime de consultar historiadores "burgueses" (mas sérios) que escreveram sobre o mesmo fenômeno, o que faz com que a maior parte da literatura dita marxista em torno desse fenômeno gira em circulos em torno dos mitos construídos pelos próprios defensores ideológicos e políticos dessa visão do mundo.
Uma história honesta e completa seria bem mais matizada quanto aos golpes, contra-golpes e processos reais que se desenvolveram na Russia.
Vocês fazem exatamente como o Vaticano: constroem uma história e se atem a certos dogmas, como se isso pudesse ser um substituto da pesquisa histórica real.
Em todo caso, grato pelo diálogo
----------------------
Paulo Roberto de Almeida
(Brasilia, 19.03.2010)
1886) Minúsculo Tratado sobre o Anonimato
Minúsculo Tratado sobre o Anonimato
Paulo Roberto de Almeida
Há muito tempo pretendia escrever um minitratado sobre o anonimato, mais uma peça de relativa inutilidade substantiva, apenas para me distrair e para fazer companhia a meus outros minitratados (um primeiro sobre as reticências, outro sobre as entrelinhas, um terceiro sobre as interrogações, e um adicional, que aliás não sei se já foi terminado, sobre as exclamações). Não se inquietem os curiosos, pois tenho vários outros no pipeline, ou pelo menos nos meus circuitos mentais, e a coleção deve ser enriquecida com algum besteirol gratificante, cuja única função, pelo menos para mim, é servir a meu próprio divertissement intelectual.
Raramente escrevo textos para contentar ou servir alguém, e jamais escrevo algo com o qual não estou de acordo, o que não quer dizer que eu também não possa me divertir com essas pequenas distrações de um cotidiano mais sério. Sempre me divirto fazendo esse tipo de coisa, pois tudo é motivo para uma digressão a mais na extensa cadeia das minhas escrevinhações.
Pois o minitratado pretendido sobre o anonimato se deve obviamente ao fato que recebo incontáveis mensagens anônimas em meus blogs, algumas simpáticas, outras questionáveis (para usar um termo neutro), outras francamente dispensáveis. Se não destoar muito do espírito dos blogs, acabo publicando, mesmo quando se trata de crítica ou discordância em relação ao que escrevi. Um blog tem essa função, precisamente, oferecer um espaço para a livre expressão do pensamento.
Infelizmente, alguns comentários anônimos são extremamente curtos, e a gente fica sem saber o que pretendia exatamente o seu autor. Como, por exemplo, um sintético Anônimo que deixou um comentário sobre esta minha postagem:
sexta-feira, 12 de março de 2010
1779) A pedagogia freireana: nossa contribuicao ao atraso do mundo...
Cito: “Oferecemos ao mundo um PRA, com seu arsenal de inutilidades e pensamentos levianos!”
Como se vê, nada de muito esclarecedor ou útil a um debate importante sobre o tema desse post, que se referia ao papel deletério desse ícone da idiotice pedagógica que é o equivocadamente cultuado Paulo Freire, o representante máximo de nosso atraso educacional.
Mas entendo que o Anônimo em questão nunca teve a intenção de comentar de fato a substância da postagem e, sim, a de criticar o “postador”, no caso eu mesmo, com o que ele se desvia dos meus critérios requeridos para incorporação de comentários, ou seja, de que eles sejam pertinentes e tragam alguma contribuição para o distinto público leitor, se ouso me expressar assim.
Segundo esse Anônimo eu trago ao mundo um arsenal de inutilidades e pensamentos levianos. Curioso que ele se dê ao trabalho de me ler, o que revela um espírito crítico pelo menos deficiente, já que se ocupando de bobagens e inutilidades. Esse Anônimo faria melhor em ocupar o seu tempo com coisa mais inteligente, em lugar de ficar aqui procurando sarna para coçar sabe-se lá que parte de seu corpo indolente, já que ele parece incapaz de expressar de modo mais claro ou completo o seu pensamento (se é o caso de usar este substantivo...)..
Em todo caso, eu gostaria de agradecer a este Anônimo comentarista, pois ele me oferece a oportunidade de antecipar ao meu previsto minitratado sobre o Anonimato, redigindo este minúsculo texto sobre esse tema, que ocupa, digamos assim, quase metade do volume de comentários em meus posts.
Certos comentaristas em meus blogs estão de fato interessados nos temas, e colocam observações inteligentes, correções a meus pontos de vista, complementos à informação em questão, enfim, fazem aquilo que se espera de um comentarista. Muitos, provavelmente mais da metade, são anônimos, o que pode querer dizer várias coisas: se trata de pessoas ocupando cargos na burocracia do Vaticano onde também trabalho, enfim, uma Santa Casa carente de liberdades democráticas mais amplas, já que as pessoas evitam – e são induzidas a evitar – comentários abertos sobre seu objeto de trabalho, seu ganha-pão tradicional por temor de alguma retaliação indevida (e autoritária, como sempre acontece); outros querem justamente ter a liberdade de participar de um debate sem ter a necessidade de revelar sua identidade, para se sentirem mais livres, leves e soltos na expressão de seu pensamento real, que por vezes é puramente especulativo, ou até contrário ao que normalmente se espera de um profissional de sua condição pública; outros, ainda, querem justamente atacar meus posts ou meus argumentos – o que também é legítimo –, sem precisar se explicar sobre as razões de seus gestos; e existem também aqueles que comparecem com certo despeito, talvez até mesmo alguma raiva, pela liberdade que eu me concedo de ficar escrevendo tanta coisa – muita bobagem, reconheço – sem pedir permissão a nenhuma dessas autoridades que supostamente nos governam (e imagino que eles também sejam colegas de infortúnio intelectual...).
Existem alguns que o fazem por timidez, outros por covardia, outros ainda que atuam por maledicência, ou espírito ranzinza, gente frustrada que talvez gostasse de fazer o que eu faço e que se julga então no dever de me atacar – mesmo de forma tão superficial e incompreensível como o post de comentário negativo acima transcrito – para talvez compensar alguma frustração qualquer.
Enfim, existem anônimos de todos os tipos, inclusive aqueles que mesmo assim são flamenguistas ou corintianos, ou que não abandonam crenças ultrapassadas, há muito tempo na lata de lixo da história, como diria um ilustre marxista.
Pois bem, quero dizer a todos esses anônimos que freqüentam meus espaços de interação que eu os estou “observando”, se ouso dizer, para tirar minhas conclusões sobre sua atividade interessante, e sem dúvida enriquecedora dos meus blogs. Gostaria de lhes prometer que, assim que eu conseguir algum tempo livre, vou escrever meu “minitratado sobre o anonimato” en bonne et due forme, as appropriate, como diriam franceses e britânicos. Vai chegar o dia, não se inquietem. Por enquanto fiquem apenas com este minúsculo ensaio sobre um dos assuntos mais sérios do chamado cyberspace, o que permite (quase) todas as transgressões e liberdades.
Aliás, já está na hora de alguém propor uma associação de Anônimos Anônimos, ou seja, gente que se reúne sem revelar a identidade, apenas para discutir, cripticamente se for o caso, as diversas facetas de uma profissão florescente, uma atividade que requer certa coragem para sair do anonimato anônimo para se lançar no anonimato público. Enfim, anônimos anônimos, uni-vos, pois vocês não tem nada a perder, a não ser a vergonha de ser um membro dessa imensa confraria.
Meu minitratado virá, mesmo sob risco de algum outro Anônimo classificar minhas iniciativas como um arsenal de inutilidades. Não se pode contentar todos ao mesmo tempo.
Abraços Anônimos, se ouso dizer...
Brasília, 19 de março de 2010.
Paulo Roberto de Almeida
Há muito tempo pretendia escrever um minitratado sobre o anonimato, mais uma peça de relativa inutilidade substantiva, apenas para me distrair e para fazer companhia a meus outros minitratados (um primeiro sobre as reticências, outro sobre as entrelinhas, um terceiro sobre as interrogações, e um adicional, que aliás não sei se já foi terminado, sobre as exclamações). Não se inquietem os curiosos, pois tenho vários outros no pipeline, ou pelo menos nos meus circuitos mentais, e a coleção deve ser enriquecida com algum besteirol gratificante, cuja única função, pelo menos para mim, é servir a meu próprio divertissement intelectual.
Raramente escrevo textos para contentar ou servir alguém, e jamais escrevo algo com o qual não estou de acordo, o que não quer dizer que eu também não possa me divertir com essas pequenas distrações de um cotidiano mais sério. Sempre me divirto fazendo esse tipo de coisa, pois tudo é motivo para uma digressão a mais na extensa cadeia das minhas escrevinhações.
Pois o minitratado pretendido sobre o anonimato se deve obviamente ao fato que recebo incontáveis mensagens anônimas em meus blogs, algumas simpáticas, outras questionáveis (para usar um termo neutro), outras francamente dispensáveis. Se não destoar muito do espírito dos blogs, acabo publicando, mesmo quando se trata de crítica ou discordância em relação ao que escrevi. Um blog tem essa função, precisamente, oferecer um espaço para a livre expressão do pensamento.
Infelizmente, alguns comentários anônimos são extremamente curtos, e a gente fica sem saber o que pretendia exatamente o seu autor. Como, por exemplo, um sintético Anônimo que deixou um comentário sobre esta minha postagem:
sexta-feira, 12 de março de 2010
1779) A pedagogia freireana: nossa contribuicao ao atraso do mundo...
Cito: “Oferecemos ao mundo um PRA, com seu arsenal de inutilidades e pensamentos levianos!”
Como se vê, nada de muito esclarecedor ou útil a um debate importante sobre o tema desse post, que se referia ao papel deletério desse ícone da idiotice pedagógica que é o equivocadamente cultuado Paulo Freire, o representante máximo de nosso atraso educacional.
Mas entendo que o Anônimo em questão nunca teve a intenção de comentar de fato a substância da postagem e, sim, a de criticar o “postador”, no caso eu mesmo, com o que ele se desvia dos meus critérios requeridos para incorporação de comentários, ou seja, de que eles sejam pertinentes e tragam alguma contribuição para o distinto público leitor, se ouso me expressar assim.
Segundo esse Anônimo eu trago ao mundo um arsenal de inutilidades e pensamentos levianos. Curioso que ele se dê ao trabalho de me ler, o que revela um espírito crítico pelo menos deficiente, já que se ocupando de bobagens e inutilidades. Esse Anônimo faria melhor em ocupar o seu tempo com coisa mais inteligente, em lugar de ficar aqui procurando sarna para coçar sabe-se lá que parte de seu corpo indolente, já que ele parece incapaz de expressar de modo mais claro ou completo o seu pensamento (se é o caso de usar este substantivo...)..
Em todo caso, eu gostaria de agradecer a este Anônimo comentarista, pois ele me oferece a oportunidade de antecipar ao meu previsto minitratado sobre o Anonimato, redigindo este minúsculo texto sobre esse tema, que ocupa, digamos assim, quase metade do volume de comentários em meus posts.
Certos comentaristas em meus blogs estão de fato interessados nos temas, e colocam observações inteligentes, correções a meus pontos de vista, complementos à informação em questão, enfim, fazem aquilo que se espera de um comentarista. Muitos, provavelmente mais da metade, são anônimos, o que pode querer dizer várias coisas: se trata de pessoas ocupando cargos na burocracia do Vaticano onde também trabalho, enfim, uma Santa Casa carente de liberdades democráticas mais amplas, já que as pessoas evitam – e são induzidas a evitar – comentários abertos sobre seu objeto de trabalho, seu ganha-pão tradicional por temor de alguma retaliação indevida (e autoritária, como sempre acontece); outros querem justamente ter a liberdade de participar de um debate sem ter a necessidade de revelar sua identidade, para se sentirem mais livres, leves e soltos na expressão de seu pensamento real, que por vezes é puramente especulativo, ou até contrário ao que normalmente se espera de um profissional de sua condição pública; outros, ainda, querem justamente atacar meus posts ou meus argumentos – o que também é legítimo –, sem precisar se explicar sobre as razões de seus gestos; e existem também aqueles que comparecem com certo despeito, talvez até mesmo alguma raiva, pela liberdade que eu me concedo de ficar escrevendo tanta coisa – muita bobagem, reconheço – sem pedir permissão a nenhuma dessas autoridades que supostamente nos governam (e imagino que eles também sejam colegas de infortúnio intelectual...).
Existem alguns que o fazem por timidez, outros por covardia, outros ainda que atuam por maledicência, ou espírito ranzinza, gente frustrada que talvez gostasse de fazer o que eu faço e que se julga então no dever de me atacar – mesmo de forma tão superficial e incompreensível como o post de comentário negativo acima transcrito – para talvez compensar alguma frustração qualquer.
Enfim, existem anônimos de todos os tipos, inclusive aqueles que mesmo assim são flamenguistas ou corintianos, ou que não abandonam crenças ultrapassadas, há muito tempo na lata de lixo da história, como diria um ilustre marxista.
Pois bem, quero dizer a todos esses anônimos que freqüentam meus espaços de interação que eu os estou “observando”, se ouso dizer, para tirar minhas conclusões sobre sua atividade interessante, e sem dúvida enriquecedora dos meus blogs. Gostaria de lhes prometer que, assim que eu conseguir algum tempo livre, vou escrever meu “minitratado sobre o anonimato” en bonne et due forme, as appropriate, como diriam franceses e britânicos. Vai chegar o dia, não se inquietem. Por enquanto fiquem apenas com este minúsculo ensaio sobre um dos assuntos mais sérios do chamado cyberspace, o que permite (quase) todas as transgressões e liberdades.
Aliás, já está na hora de alguém propor uma associação de Anônimos Anônimos, ou seja, gente que se reúne sem revelar a identidade, apenas para discutir, cripticamente se for o caso, as diversas facetas de uma profissão florescente, uma atividade que requer certa coragem para sair do anonimato anônimo para se lançar no anonimato público. Enfim, anônimos anônimos, uni-vos, pois vocês não tem nada a perder, a não ser a vergonha de ser um membro dessa imensa confraria.
Meu minitratado virá, mesmo sob risco de algum outro Anônimo classificar minhas iniciativas como um arsenal de inutilidades. Não se pode contentar todos ao mesmo tempo.
Abraços Anônimos, se ouso dizer...
Brasília, 19 de março de 2010.
terça-feira, 16 de março de 2010
1885) Brasil, Brics, Europa - Lourdes Sola
A Europa inacabada e o B de Brics
Lourdes Sola
O Estadao de S.Paulo, 16 de março de 2010
O noticiário internacional tem coberto temas que convergem num sentido muito preciso: pautam a agenda da política externa do próximo governo. Aos problemas da zona do euro somaram-se a visita da secretária de Estado americana, Hillary Clinton, o périplo do presidente Lula pela região e a postura ativamente omissa do Brasil na questão dos direitos humanos em Cuba e no Irã. São temas que iluminam os testes de estresse por que passam duas modalidades distintas de integração regional, a da Europa e a da América Latina. Também realçam um contraponto: é no plano político que o lugar do B de Brics permanece uma questão em aberto. Em parte, porque o Brasil passou a ser um dos atores coadjuvantes no cenário global. Vale dizer, nossas responsabilidades estão mudando de natureza e de escala, paralelamente às mudanças no eixo de poder econômico global. Mas também porque o sentido dessas mudanças não está introjetado e decantado pelas autoridades pertinentes. Ainda se curvam a um tipo de pluralismo inaceitável: subordinam os direitos humanos (e a democracia) a uma ideia de "soberania" ou "legalidade" circunscrita ao Estado cubano ou ao iraniano.
É no plano político que os grandes ativos do Brasil e suas responsabilidades internacionais são inexplorados. Somos o único dos Brics sem armas nucleares. Somos parte do Sul, pelos níveis intoleráveis de justiça distributiva. Mas o caminho para superá-los, tal como nossa trajetória econômica, reflete o alinhamento da sociedade, e do eleitor-consumidor, com os valores do "Norte": pela via democrática, do compromisso com o constitucionalismo e por meio de um mix único entre Estado e mercado, como agentes de transformação social e econômica. Padrão consolidado nos anos 90. É nesse registro que os rumos da zona do euro nos interessam. Lá, como cá, "as grandes transformações" econômicas, boas ou adversas, definem as encruzilhadas, não os rumos: só propiciam os incentivos para as decisões estratégicas dos políticos eleitos.
O que está em jogo na Europa é a própria ideia de Europa, como a conhecemos hoje, ou seja, como resultado de uma construção política, idealizada pelos arquitetos do Tratado de Roma (1957): Jean Monet, Robert Schuman, Paul Henri Spaak e Alcide De Gasperi. A matriz da nova identidade europeia foi uma visão estratégica e algo utópica: construir uma comunidade de interesses econômicos e de recursos políticos para exorcizar a devastação de duas guerras, do Holocausto e da Guerra Civil na Espanha. Eles operaram simultaneamente em duas frentes. Na econômica, a integração substituiria o nacionalismo expansionista, baseado nas desvalorizações competitivas da taxa de câmbio. No plano político, o compromisso com um papel proativo de exportação da democracia para os vizinhos, reféns de ditaduras. Estes valores foram codificados nas condicionalidades políticas para acesso à União, as quais embutem uma concepção de democracia representativa, regulada pelo constitucionalismo liberal, de molde social-democrático, ou seja, solidário. Daí, as condições de um piso salarial mínimo e a redução das desigualdades regionais em cada país, tendo por referência os elevados padrões médios da União. Daí também a construção de uma rede de sustentação financeira - os "fundos estruturais" a custo quase zero - para as áreas subdesenvolvidas dos países em democratização, os do Sul e, depois, os pós-comunistas.
Por isso, a leitura economicista da União Europeia, a partir da União Aduaneira, é parcial e socialmente conservadora. Não faz jus ao sentido de missão que inspirou os governantes eleitos da Bélgica, da França, da Itália, do Luxemburgo, dos Países Baixos e da Alemanha Ocidental a darem início à construção da Europa. Saltam aos olho as qualidades de statemanship que deram corpo a essa visão, aprofundada por seus continuadores, Willy Brandt, François Mitterrand. Em suma, a construção da nova identidade europeia não ocorreu a reboque de interesses econômicos, mas, ao contrário, o interesse econômico em integrar a Europa explica a aderência dos setores não-democráticos do Sul à democracia. É o caso do setor financeiro na Espanha.
Essa ideia de Europa está em jogo, em virtude do que o Tratado de Maastricht e a unificação monetária significaram: um ato de delegação política de parte dos países membros e de seus respectivos eleitorados, pelo qual abdicaram de sua soberania monetária, transferida para o Banco Central Europeu. Em troca da preservação de sua soberania fiscal, a partir de padrões convergentes de autodisciplina. No longo prazo, a preservação da ideia matriz e da moeda comum forte, que a simboliza, depende de mais um giro do impulso unitário, ou seja, a construção da Europa como federação política. Isso requer um novo ato de delegação política, agora, a da soberania fiscal em benefício de entidades regulatórias supranacionais. A ideia de um Fundo Monetário Europeu se inscreve nesse cenário.
No curto prazo, isso depende de um processo de persuasão dos eleitorados nacionais e também de visão estratégica e qualidades de statemanship das lideranças políticas da Alemanha e da França. Será impossível, porém, realizar esse tipo de calibragem político-econômica sem outra "grande transformação", de corte keynesiano, em escala europeia. Por um lado, a reestruturação econômica e a disciplina fiscal que se requerem dos Piigs não podem ser contracionistas, nem pautadas por um tom punitivo por parte dos pesos pesados. Por outro, é fundamental que a Alemanha - país superavitário e cujo setor privado é o grande credor da Europa, graças aos níveis de poupança de sua sociedade - abra seus mercados, consumindo mais. A ser assim, continuará a fazer jus aos valores que moldaram sua liderança na construção da Europa: moeda forte e integração.
PROFESSORA DA USP, EX-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE CIÊNCIA POLÍTICA, É DIRETORA DO GLOBAL DEVELOPMENT NETWORK, DO INTERNATIONAL INSTITUTE FOR DEMOCRACY E DO CONSELHO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS
Lourdes Sola
O Estadao de S.Paulo, 16 de março de 2010
O noticiário internacional tem coberto temas que convergem num sentido muito preciso: pautam a agenda da política externa do próximo governo. Aos problemas da zona do euro somaram-se a visita da secretária de Estado americana, Hillary Clinton, o périplo do presidente Lula pela região e a postura ativamente omissa do Brasil na questão dos direitos humanos em Cuba e no Irã. São temas que iluminam os testes de estresse por que passam duas modalidades distintas de integração regional, a da Europa e a da América Latina. Também realçam um contraponto: é no plano político que o lugar do B de Brics permanece uma questão em aberto. Em parte, porque o Brasil passou a ser um dos atores coadjuvantes no cenário global. Vale dizer, nossas responsabilidades estão mudando de natureza e de escala, paralelamente às mudanças no eixo de poder econômico global. Mas também porque o sentido dessas mudanças não está introjetado e decantado pelas autoridades pertinentes. Ainda se curvam a um tipo de pluralismo inaceitável: subordinam os direitos humanos (e a democracia) a uma ideia de "soberania" ou "legalidade" circunscrita ao Estado cubano ou ao iraniano.
É no plano político que os grandes ativos do Brasil e suas responsabilidades internacionais são inexplorados. Somos o único dos Brics sem armas nucleares. Somos parte do Sul, pelos níveis intoleráveis de justiça distributiva. Mas o caminho para superá-los, tal como nossa trajetória econômica, reflete o alinhamento da sociedade, e do eleitor-consumidor, com os valores do "Norte": pela via democrática, do compromisso com o constitucionalismo e por meio de um mix único entre Estado e mercado, como agentes de transformação social e econômica. Padrão consolidado nos anos 90. É nesse registro que os rumos da zona do euro nos interessam. Lá, como cá, "as grandes transformações" econômicas, boas ou adversas, definem as encruzilhadas, não os rumos: só propiciam os incentivos para as decisões estratégicas dos políticos eleitos.
O que está em jogo na Europa é a própria ideia de Europa, como a conhecemos hoje, ou seja, como resultado de uma construção política, idealizada pelos arquitetos do Tratado de Roma (1957): Jean Monet, Robert Schuman, Paul Henri Spaak e Alcide De Gasperi. A matriz da nova identidade europeia foi uma visão estratégica e algo utópica: construir uma comunidade de interesses econômicos e de recursos políticos para exorcizar a devastação de duas guerras, do Holocausto e da Guerra Civil na Espanha. Eles operaram simultaneamente em duas frentes. Na econômica, a integração substituiria o nacionalismo expansionista, baseado nas desvalorizações competitivas da taxa de câmbio. No plano político, o compromisso com um papel proativo de exportação da democracia para os vizinhos, reféns de ditaduras. Estes valores foram codificados nas condicionalidades políticas para acesso à União, as quais embutem uma concepção de democracia representativa, regulada pelo constitucionalismo liberal, de molde social-democrático, ou seja, solidário. Daí, as condições de um piso salarial mínimo e a redução das desigualdades regionais em cada país, tendo por referência os elevados padrões médios da União. Daí também a construção de uma rede de sustentação financeira - os "fundos estruturais" a custo quase zero - para as áreas subdesenvolvidas dos países em democratização, os do Sul e, depois, os pós-comunistas.
Por isso, a leitura economicista da União Europeia, a partir da União Aduaneira, é parcial e socialmente conservadora. Não faz jus ao sentido de missão que inspirou os governantes eleitos da Bélgica, da França, da Itália, do Luxemburgo, dos Países Baixos e da Alemanha Ocidental a darem início à construção da Europa. Saltam aos olho as qualidades de statemanship que deram corpo a essa visão, aprofundada por seus continuadores, Willy Brandt, François Mitterrand. Em suma, a construção da nova identidade europeia não ocorreu a reboque de interesses econômicos, mas, ao contrário, o interesse econômico em integrar a Europa explica a aderência dos setores não-democráticos do Sul à democracia. É o caso do setor financeiro na Espanha.
Essa ideia de Europa está em jogo, em virtude do que o Tratado de Maastricht e a unificação monetária significaram: um ato de delegação política de parte dos países membros e de seus respectivos eleitorados, pelo qual abdicaram de sua soberania monetária, transferida para o Banco Central Europeu. Em troca da preservação de sua soberania fiscal, a partir de padrões convergentes de autodisciplina. No longo prazo, a preservação da ideia matriz e da moeda comum forte, que a simboliza, depende de mais um giro do impulso unitário, ou seja, a construção da Europa como federação política. Isso requer um novo ato de delegação política, agora, a da soberania fiscal em benefício de entidades regulatórias supranacionais. A ideia de um Fundo Monetário Europeu se inscreve nesse cenário.
No curto prazo, isso depende de um processo de persuasão dos eleitorados nacionais e também de visão estratégica e qualidades de statemanship das lideranças políticas da Alemanha e da França. Será impossível, porém, realizar esse tipo de calibragem político-econômica sem outra "grande transformação", de corte keynesiano, em escala europeia. Por um lado, a reestruturação econômica e a disciplina fiscal que se requerem dos Piigs não podem ser contracionistas, nem pautadas por um tom punitivo por parte dos pesos pesados. Por outro, é fundamental que a Alemanha - país superavitário e cujo setor privado é o grande credor da Europa, graças aos níveis de poupança de sua sociedade - abra seus mercados, consumindo mais. A ser assim, continuará a fazer jus aos valores que moldaram sua liderança na construção da Europa: moeda forte e integração.
PROFESSORA DA USP, EX-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE CIÊNCIA POLÍTICA, É DIRETORA DO GLOBAL DEVELOPMENT NETWORK, DO INTERNATIONAL INSTITUTE FOR DEMOCRACY E DO CONSELHO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS
1884) Crescimento econômico no Brasil contemporaneo
Do competente economista Ricardo Bergamini, recebo esta pequena síntese:
Taxa Média/Ano de Crescimento Econômico Real no Período de 1964 a 2009 em Percentuais do PIB
Períodos - Taxas médias anuais
1964/84 - 6,29
1985/89 - 4,39
1990/94 - 1,24
1995/02 - 2,31
2003/09 - 3,57
Ou seja:
1 – Nos 21 anos dos governos militares, o Brasil teve um crescimento econômico real médio de 6,29% ao ano.
2 – Nos 5 anos do governo Sarney, com moratória internacional e hiperinflação, o Brasil teve um crescimento econômico real médio de 4,39% ao ano.
3 – Nos 5 anos dos governos Collor e Itamar, o Brasil teve um crescimento econômico real médio de 1,24% ao ano.
4 – Nos 8 anos do governo FHC, o Brasil teve um crescimento econômico real médio de 2,31% ao ano.
5 – Nos 7 anos do governo Lula, o Brasil teve um crescimento econômico real médio de 3,57% ao ano.
Fonte de dados: IBGE
Taxa Média/Ano de Crescimento Econômico Real no Período de 1964 a 2009 em Percentuais do PIB
Períodos - Taxas médias anuais
1964/84 - 6,29
1985/89 - 4,39
1990/94 - 1,24
1995/02 - 2,31
2003/09 - 3,57
Ou seja:
1 – Nos 21 anos dos governos militares, o Brasil teve um crescimento econômico real médio de 6,29% ao ano.
2 – Nos 5 anos do governo Sarney, com moratória internacional e hiperinflação, o Brasil teve um crescimento econômico real médio de 4,39% ao ano.
3 – Nos 5 anos dos governos Collor e Itamar, o Brasil teve um crescimento econômico real médio de 1,24% ao ano.
4 – Nos 8 anos do governo FHC, o Brasil teve um crescimento econômico real médio de 2,31% ao ano.
5 – Nos 7 anos do governo Lula, o Brasil teve um crescimento econômico real médio de 3,57% ao ano.
Fonte de dados: IBGE
segunda-feira, 15 de março de 2010
1883) Cuba: uma pedra no sapato de certas diplomacias...
Sempre se podem encontrar argumentos, de qualquer tipo, para justificar, e "explicar", qualquer política, menos dizer o que pensam, realmente, certos dirigentes...
Lula confunde, em Cuba, nos EUA, no Irã
Sergio Leo
Valor Econômico, 15/03/2010
Deve ser para evitar maior confronto com o governo dos Estados Unidos que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva evita dizer em público o que pensam muitos integrantes do governo sobre Cuba: o país, único experimento socialista sobrevivente da Guerra Fria nas Américas, foi, durante a história recente, alvo de todo tipo de sabotagem por parte dos governos americanos, de atentados contra Fidel Castro ao embargo econômico contra a ilha, condenado em todo o continente. Mas, quem sabe, Lula evita o argumento porque nem mesmo ele pode justificar os recentes - e indefensáveis - ataques que fez aos dissidentes cubanos.
Provocado a se manifestar sobre a morte de um dissidente em greve de fome e sobre as prisões de opositores ao regime, Lula pode ter pensado na dificuldade do regime cubano, em manter a estabilidade política de um país pobre com governo contrário aos interesses dos EUA. Se considerasse essa situação motivo suficiente para evitar ataques abertos ao governo de Raúl Castro, poderia esquivar-se da pergunta, mas não: criticou os presos. O fato concreto, como diria o próprio Lula, é que, com a repressão em Cuba, os irmãos Castro e o apoio de Lula sabotam não só o bom senso, mas até a tentativa do governo Barack Obama de distensão nas relações com a ilha.
Obama mostrou, desde o início do governo, disposição para relaxar os constrangimentos impostos a Cuba e aos cubanos. Quem conhece os mecanismos da política americana é capaz de imaginar a dificuldade do novo governo dos EUA, já às voltas com problemas sérios como as guerras herdadas dos republicanos e a necessidade de uma reforma de saúde, para ganhar no Congresso aprovação a medidas de aproximação com Cuba. É muito maior que no Brasil o poder do Congresso nos EUA, e é forte a influência da comunidade cubana exilada.
Uma Cuba menos policialesca contra a dissidência interna, disposta a soltar dissidentes presos por crime de opinião, daria bons argumentos a Obama, na discussão política americana, para, num gesto de reciprocidade, avançar na retirada do embargo econômico, que oprime a ilha e prejudica até interesses de empresas americanas dispostas a fazer negócios com o regime de Fidel e Raúl Castro. Lula poderia ajudar nesse esforço, mas o endosso cego e surdo à ação stalinista contra a oposição só reforça a linha dura na ilha e desmoraliza as credenciais democráticas do presidente brasileiro.
Curiosamente, as relações entre Brasil e Estados Unidos, até na contenciosa questão do programa nuclear iraniano, são bem mais amistosas do que parecem acreditar os comentaristas brasileiros que usam o fígado, não o cérebro, para analisar a política externa do Brasil. No Executivo americano, pelo menos, há respeito - ainda que acompanhado de incômodo - aos argumentos levantados pelo Brasil para negar o apoio às sanções contra o Irã defendidas pela Casa Branca.
Os EUA compreendem que o Brasil, ele próprio engajado em um programa nuclear com fins pacíficos, relute em condenar os programas dos outros. E, principalmente, o governo dos EUA reconhece que a posição brasileira é motivada não por antiamericanismo, mas pela avaliação de que sanções contra o Irã só isolariam o país e fortaleceriam os radicais, no país, deixando pouco espaço para os moderados. Se transpostos a Cuba, os argumentos levantados no Planalto para o Irã, mais motivos teria Lula para interceder pelos dissidentes, ou, pelo menos, não buscar justificativas para a repressão cubana. No entanto, o presidente brasileiro preferiu comparar os dissidentes a delinquentes comuns. Mas não é essa a questão levantada pelos EUA sobre o Irã.
O que americanos, franceses, alemães dizem do Brasil, no caso iraniano é que os brasileiros chegaram um pouco tarde nessa negociação e podem atrapalhar. É considerada ingênua a ideia do governo em Brasília, de que gestões políticas e diplomáticas podem atrair o Irã a um acordo para tornar mais transparente seu programa e dar garantia de que não o usará para fins militares. Isso já foi tentado, pela França, sem resultado.
Nem Cuba nem Irã são, porém, um impedimento ao esforço (real) dos governos dos EUA e Brasil de fazer uma parceria no continente. Foi reconhecido em Washington o papel legítimo do Brasil como interlocutor do regime iraniano, a quem Lula transmitiu preocupações semelhantes às dos EUA e da Europa em relação à defesa dos direitos humanos e a condenação ao uso bélico da energia nuclear. O Brasil é um mercado atraente, em um momento em que Obama se empenha em um programa para dobrar as exportações americanas em cinco anos, e um aliado de peso num continente complicado como o sul-americano.
Há uma faceta importante da diplomacia - especialmente nos Estados Unidos: a diplomacia parlamentar. Fazer política externa mirando o público interno é quase inevitável, e Lula, com certas declarações unidimensionais de agrado a Cuba, Venezuela e Irã, parece cobiçar a aliança incondicional da esquerda brasileira para as próximas eleições. Deveria levar em conta, porém, que, assim, degrada a credibilidade alcançada por seu governo moderado no mundo político internacional, e, com isso, mina as condições políticas, nos EUA, para firmar o apoio da administração americana. Prejudica brigas parlamentares importantes que Obama se mostrou disposto a travar, como o fim da tarifa punitiva ao etanol brasileiro, só para dar um exemplo evidente.
Há cabeças nos EUA capazes de compreender as sutilezas do jogo diplomático que o maniqueísmo de certos analistas brasileiros não deixa transparecer no debate político brasileiro. Há uma disputa surda de influência na América do Sul e, mais recentemente, na América Central e Caribe, entre duas esquerdas, a pragmática e moderada de Lula, e a revolucionária e confrontacional de Hugo Chávez. Essa disputa se estende a Cuba, onde o endurecimento de Lula em relação aos Castro deixaria livre o espaço à radicalização de Chávez. A pressão discreta de Lula para uma transição gradual de Cuba às liberdades democráticas é reconhecida em Washington. Mas derrapadas como o ataque aos dissidentes cubanos são difíceis de entender. Ou de engolir.
Sergio Leo é repórter especial e escreve às segundas-feiras
E-mail: sergio.leo@valor.com.br
Lula confunde, em Cuba, nos EUA, no Irã
Sergio Leo
Valor Econômico, 15/03/2010
Deve ser para evitar maior confronto com o governo dos Estados Unidos que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva evita dizer em público o que pensam muitos integrantes do governo sobre Cuba: o país, único experimento socialista sobrevivente da Guerra Fria nas Américas, foi, durante a história recente, alvo de todo tipo de sabotagem por parte dos governos americanos, de atentados contra Fidel Castro ao embargo econômico contra a ilha, condenado em todo o continente. Mas, quem sabe, Lula evita o argumento porque nem mesmo ele pode justificar os recentes - e indefensáveis - ataques que fez aos dissidentes cubanos.
Provocado a se manifestar sobre a morte de um dissidente em greve de fome e sobre as prisões de opositores ao regime, Lula pode ter pensado na dificuldade do regime cubano, em manter a estabilidade política de um país pobre com governo contrário aos interesses dos EUA. Se considerasse essa situação motivo suficiente para evitar ataques abertos ao governo de Raúl Castro, poderia esquivar-se da pergunta, mas não: criticou os presos. O fato concreto, como diria o próprio Lula, é que, com a repressão em Cuba, os irmãos Castro e o apoio de Lula sabotam não só o bom senso, mas até a tentativa do governo Barack Obama de distensão nas relações com a ilha.
Obama mostrou, desde o início do governo, disposição para relaxar os constrangimentos impostos a Cuba e aos cubanos. Quem conhece os mecanismos da política americana é capaz de imaginar a dificuldade do novo governo dos EUA, já às voltas com problemas sérios como as guerras herdadas dos republicanos e a necessidade de uma reforma de saúde, para ganhar no Congresso aprovação a medidas de aproximação com Cuba. É muito maior que no Brasil o poder do Congresso nos EUA, e é forte a influência da comunidade cubana exilada.
Uma Cuba menos policialesca contra a dissidência interna, disposta a soltar dissidentes presos por crime de opinião, daria bons argumentos a Obama, na discussão política americana, para, num gesto de reciprocidade, avançar na retirada do embargo econômico, que oprime a ilha e prejudica até interesses de empresas americanas dispostas a fazer negócios com o regime de Fidel e Raúl Castro. Lula poderia ajudar nesse esforço, mas o endosso cego e surdo à ação stalinista contra a oposição só reforça a linha dura na ilha e desmoraliza as credenciais democráticas do presidente brasileiro.
Curiosamente, as relações entre Brasil e Estados Unidos, até na contenciosa questão do programa nuclear iraniano, são bem mais amistosas do que parecem acreditar os comentaristas brasileiros que usam o fígado, não o cérebro, para analisar a política externa do Brasil. No Executivo americano, pelo menos, há respeito - ainda que acompanhado de incômodo - aos argumentos levantados pelo Brasil para negar o apoio às sanções contra o Irã defendidas pela Casa Branca.
Os EUA compreendem que o Brasil, ele próprio engajado em um programa nuclear com fins pacíficos, relute em condenar os programas dos outros. E, principalmente, o governo dos EUA reconhece que a posição brasileira é motivada não por antiamericanismo, mas pela avaliação de que sanções contra o Irã só isolariam o país e fortaleceriam os radicais, no país, deixando pouco espaço para os moderados. Se transpostos a Cuba, os argumentos levantados no Planalto para o Irã, mais motivos teria Lula para interceder pelos dissidentes, ou, pelo menos, não buscar justificativas para a repressão cubana. No entanto, o presidente brasileiro preferiu comparar os dissidentes a delinquentes comuns. Mas não é essa a questão levantada pelos EUA sobre o Irã.
O que americanos, franceses, alemães dizem do Brasil, no caso iraniano é que os brasileiros chegaram um pouco tarde nessa negociação e podem atrapalhar. É considerada ingênua a ideia do governo em Brasília, de que gestões políticas e diplomáticas podem atrair o Irã a um acordo para tornar mais transparente seu programa e dar garantia de que não o usará para fins militares. Isso já foi tentado, pela França, sem resultado.
Nem Cuba nem Irã são, porém, um impedimento ao esforço (real) dos governos dos EUA e Brasil de fazer uma parceria no continente. Foi reconhecido em Washington o papel legítimo do Brasil como interlocutor do regime iraniano, a quem Lula transmitiu preocupações semelhantes às dos EUA e da Europa em relação à defesa dos direitos humanos e a condenação ao uso bélico da energia nuclear. O Brasil é um mercado atraente, em um momento em que Obama se empenha em um programa para dobrar as exportações americanas em cinco anos, e um aliado de peso num continente complicado como o sul-americano.
Há uma faceta importante da diplomacia - especialmente nos Estados Unidos: a diplomacia parlamentar. Fazer política externa mirando o público interno é quase inevitável, e Lula, com certas declarações unidimensionais de agrado a Cuba, Venezuela e Irã, parece cobiçar a aliança incondicional da esquerda brasileira para as próximas eleições. Deveria levar em conta, porém, que, assim, degrada a credibilidade alcançada por seu governo moderado no mundo político internacional, e, com isso, mina as condições políticas, nos EUA, para firmar o apoio da administração americana. Prejudica brigas parlamentares importantes que Obama se mostrou disposto a travar, como o fim da tarifa punitiva ao etanol brasileiro, só para dar um exemplo evidente.
Há cabeças nos EUA capazes de compreender as sutilezas do jogo diplomático que o maniqueísmo de certos analistas brasileiros não deixa transparecer no debate político brasileiro. Há uma disputa surda de influência na América do Sul e, mais recentemente, na América Central e Caribe, entre duas esquerdas, a pragmática e moderada de Lula, e a revolucionária e confrontacional de Hugo Chávez. Essa disputa se estende a Cuba, onde o endurecimento de Lula em relação aos Castro deixaria livre o espaço à radicalização de Chávez. A pressão discreta de Lula para uma transição gradual de Cuba às liberdades democráticas é reconhecida em Washington. Mas derrapadas como o ataque aos dissidentes cubanos são difíceis de entender. Ou de engolir.
Sergio Leo é repórter especial e escreve às segundas-feiras
E-mail: sergio.leo@valor.com.br
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