domingo, 5 de janeiro de 2014

Um caso filosofico-criminoso: mil e uma noites de um filosofo academico - Jose Maria Slva (Jornal Opcao)

Jornal Opção, Edição 2009 de 5 a 11 de janeiro de 2014
Análise
Rachel Sheherazade: a mulher que aterroriza a esquerda
Autor de vários livros adotados em faculdades de Pedagogia, o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. desejou, como votos para 2014, que a âncora do jornalismo do SBT seja estuprada — não por ser misógino, mas por ser membro de uma universidade quase totalitária
Reprodução/SBT
Rachel Sheherazade, âncora do SBT: vítima de incitação
à violência, ainda não teve o apoio de grupos feministas
José Maria e Silva
Volta e meia os institutos de pesquisa avaliam o grau de confiança da população nas principais instituições do País, como partidos políticos, igrejas, sindicatos, empresas, organizações não governamentais, polícia, Corpo de Bombeiros, Correios, Congresso Nacional, etc. Até a credibilidade de Deus é posta em questão: as pesquisas também querem saber se as pessoas acreditam ou não n’Ele. Curiosamente, só os intelectuais e as universidades nunca são avaliados – é como se fossem mais infalíveis do que Deus. Parece não passar pela cabeça dos pesquisadores de opinião que alguém possa não confiar num professor universitário. De fato, se fosse feita uma pesquisa de opinião para avaliar o grau de confiança da população nas universidades e nos intelectuais, o índice de aprovação seria altíssimo. O que é um perigo.

Os intelectuais não são imunes ao erro e estão longe de ser um exemplo de moralidade. Se as pessoas comuns soubessem do que os intelectuais são capazes, especialmente quando ungidos pela suposta santidade da ciência, elas ficariam estarrecidas. Basta dizer que o terrorismo moderno é, sem dúvida, uma criação da intelectualidade universitária, que não só apoia a ação de grupos terroristas como sempre foi a fonte de seus principais líderes. Que o diga a luta armada brasileira, feita com braços arregimentados nas universidades. Quando os guerrilheiros do grupo colombiano M-19 tomaram a embaixada da República Dominicana em Bogotá, em fevereiro de 1980, e fizeram cerca de 60 reféns, inclusive embaixadores, os universitários colombianos promoveram manifestações de apoio aos terroristas nas imediações da embaixada.

Hoje, o “terrorismo intelectual”, para usar uma expressão do jornalista e ensaísta francês Jean Sévillia, está cada vez mais ousado, disfarçando-se de ciência de ponta quando não passa da mais baixa mistura de ideologia marxista e instintos primitivos. Uma de suas versões mais sorrateiras é a suposta luta contra o preconceito, por meio da ditadura do “politicamente correto”. Para­doxalmente, o terrorista intelectual também é capaz de fingir que se insurge contra essa ditadura em nome da liberdade de expressão, sendo que, na prática, faz o contrário. Um exemplo de terrorismo intelectual que se enquadra justamente nesse último aspecto do fenômeno são os agressivos ataques à jornalista Rachel Sheherazade, âncora do telejornal “SBT Brasil”. Uma das fontes desses ataques é o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., autor de vários livros e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Na quinta-feira, 26 de dezembro, no Facebook do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. foi postada a seguinte mensagem: “Meus votos para 2014: que Rachel Sherazedo seja estuprada”. Logo em seguida, foi postada outra mensagem com o mesmo teor: “Votos para 2014: que a Rachel Sherazedo abrace bem forte, após ser estuprada, um tamanduá”. Alertada por um amigo, Shehera­zade denunciou os ataques em seu Twitter: “Caso grave de incitação ao crime, promovido pelo Sr. Paulo Ghiraldelli ou quem se faz passar por ele. Compartilhem!” Em seguida, questionou diretamente o próprio filósofo: “Sr. Ghiraldelli, liberdade de expressão termina onde começam calúnia, difamação, ameaça, incitação ao crime! Vai aprender isso num tribunal!”. E, no dia 30, a jornalista postou no Twitter: “Mis­são cumprida: esta manhã fui à delegacia competente representar penalmente contra meu agressor ou quem se faz passar por ele. Agora, é só aguardar as providências legais e a providência divina. Tenho a certeza de que cumpri meu papel de cidadã”.

Diante da pronta reação da jornalista, o filósofo recuou. Numa mensagem enviada diretamente para o Twitter de Sheherazade, Ghiraldelli tentou se justificar: “Prezada Rachel Sheherazade, não sou favorável a qualquer incitação à violência contra mulher, menos ainda à imprensa. Posso me explicar?” Reparem que, já nessa curta mensagem, Ghiraldelli tropeça na gramática e na ética e mostra que nada entende de direitos humanos, apesar de fingir defendê-los. Para o filósofo, uma incitação à violência contra a mulher é menos grave do que uma incitação à violência contra a imprensa. É como se instituições abstratas não fossem feitas de seres humanos concretos e fosse possível preservá-las descartando as pessoas. Por esse esconso critério de Paulo Ghiraldelli Jr., uma ditadura sanguinária que fuzilasse gente seria preferível a uma ditadura autoritária que apenas empastelasse jornais. Felizmente, para a família Mesquita, o ditador Getúlio Vargas não achou que poderia fuzilar os donos do “Estadão”, já que mantivera o jornal circulando mesmo sob intervenção.

Paulo Ghiraldelli negou ser o autor dos votos de que Rachel Sheherazade seja estuprada em 2014. Ele alegou que seu Facebook foi invadido por “hackers” e apagou as mensagens de incitação à violência contra a jornalista. Mas o filósofo deve ter fugido das aulas de lógica. Se não é o autor das mensagens injuriosas contra Sheherazade, Ghiraldelli não pode se limitar a pedir desculpas a ela por um crime que alega não ter cometido – até para demonstrar sua alegada inocência, seu dever é prontificar-se a ajudar a jornalista a descobrir o criminoso que a atacou. Para isso, tão logo se deu conta da invasão, além do pedido de desculpas e de apagar as mensagens, ele próprio deveria ter recorrido à polícia para descobrir quem foi que o usou para atacar a âncora do SBT. Todavia, o filósofo fez o contrário: ele tentou – e continua tentando – se passar por vítima, não só do suposto “hacker” que teria invadido seu perfil, mas também da “direita” e até da própria Rachel Sheherazade, a verdadeira vítima nessa história, uma vez que tem sido alvo recorrente de ataques da esquerda.
O desespero do filósofo contraditório
Paulo Ghiraldelli Jr. é um dos que atacam sistematicamente a âncora do SBT apesar de ter tentado negar esse fato na entrevista que concedeu à “Folha de S. Paulo” em 28 de dezembro, em reportagem de Anahi Martinho. Ghiraldelli, segundo o jornal, negou ser o autor das postagens e disse que ficou surpreso com a reação da jornalista: “Eu não tenho absolutamente nada contra aquela moça. Conheço o trabalho dela, sei quem ela é, mas jamais escrevi nenhuma frase contra ela” – declarou à “Folha”, num surto de amnésia. O jornal acrescenta: “Demonstrando irritação com a polêmica e a reação do público, ele afirmou não temer um processo na Justiça. ‘Minha carreira de 40 anos e meus livros não valem nada? O que vale é um Twitter que nem posso comprovar se fui eu que escrevi ou não? Se eu for processado, vou lá no tribunal, respondo. Se for condenado, pago uma cesta básica e pronto. Não vai acontecer absolutamente nada. É o milésimo processo que eu vou tomar’, disse.” Ainda segundo a “Folha”, Paulo Ghiraldelli “também negou ser o autor de outras postagens antigas ironizando Shehera­zade, encontradas em suas contas no Twitter e Facebook”.

As declarações de Paulo Ghiral­delli são tão contraditórias que não parecem saídas da boca de um filósofo. Ao mesmo tempo em que diz não ser autor dos ataques à jornalista, ele zomba da Justiça ao dizer que sua condenação, se ocorrer, não passará do pagamento de cestas básicas. Mas, valendo-se do Twitter, ele mandou uma sequência de mensagens para a âncora do SBT que revelam certo desespero: “Prezada Rachel Sheherazade, eu retirei minha conta do ar, em respeito a você, agora peço que tire o post do ar para não incitarmos torcidas. Não há nenhuma justiça nos julgamentos a priori, nas denúncias a partir de meios inseguros. Isso é linchamento público. Repudio. Gostaria que tirasse do seu Face a conclamação contra mim, pois trata-se de injustiça. Eu estou pedindo desculpas públicas”. Reparem na distorção dos fatos promovida pelo filósofo: de algoz de Rachel Sheherazade, ele tenta se passar por sua vítima, acusando a jornalista de linchá-lo publicamente, quando ela está apenas se defendendo dos ataques sórdidos que sofreu. É uma ignomínia que um filósofo e professor universitário – sustentado com dinheiro público – tenha esse tipo de comportamento.

Nas declarações à “Folha de S. Paulo”, o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. manteve essa estratégia de criminalizar Rachel Sheherazade: “Quando recebi o recado dela no Twitter, duvidei que era ela de verdade. Sou um simples professor de filosofia, um coitado, completamente desconhecido do mundo. E de repente uma jornalista da televisão querendo me caçar? A maneira com que ela me abordou não foi normal”. Ele disse que jamais faria piadas com conteúdo violento: “Eu não gosto desse tipo de brincadeira [sobre estupro]. Não é do meu feitio. Embora não ache que se deve censurar humorista, caçar gente por aí”. Como fica claro, Paulo Ghiraldelli, que se define como “o filósofo da cidade de São Paulo”, resolveu concorrer com o “Porta dos Fundos” e está se autonomeando “humorista”, numa tentativa desesperada de escapar da Justiça. Espero que a Faculdade de Pedagogia da Universidade Federal de Goiás e demais cursos de pedagogia do País retirem de suas respectivas bibliografias de graduação e pós-graduação os livros desse humorista confesso.
Extermínio verbal de Sheherazade

Convém citar mais dois trechos da reportagem da “Folha de S. Paulo”, pois ambos são emblemáticos da miséria moral e intelectual em que vivemos. Eis o primeiro trecho: “Mesmo negando ser o autor de todas as postagens contra Shehe­razade, Ghiraldelli lançou mão de outro argumento para se defender. Ele disse que não há lei que possa incriminá-lo por desejar o mal de alguém. ‘Vamos supor que tivesse sido eu. Primeiro que não tem o nome dela. E ainda que ela vista a carapuça, nada me impede legalmente de desejar mal a uma pessoa. Jogar praga não é crime’, defendeu-se.” Eis o segundo trecho: “A âncora [Rachel Sheherazade] é conhecida por seus editoriais controversos e de teor conservador à frente da bancada do SBT. Ela já criticou o Bolsa Família, defendeu o deputado e pastor Marco Feliciano (PSC-SP) e recentemente fez uma declaração sobre o esquecimento de Jesus no Natal”.

Ghiraldelli não só precisa conhecer melhor as leis do País como também deveria aplicar na prática seus possíveis conhecimentos de antropologia e sociologia. Ele sabe que cada indivíduo exerce, em diferentes espaços e tempos, os mais variados papéis sociais. Em sua vida privada, Paulo Ghiraldelli Jr. provavelmente é o eterno “Paulinho” de seus pais, o “benzinho” ou “amorzinho”, sei lá, de sua esposa, o “Paulo” dos amigos, o “seu” Paulo da vizinhança, etc. Mas, na universidade, na imprensa e na internet, ele é o professor e filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., que se orgulha de ter cerca de 40 anos de profissão e mais de 30 livros publicados, alguns deles adotados em universidades de todo o País. E “jogar praga”, obviamente, não faz parte do papel social de um filósofo e professor, do qual se espera um comportamento racional, condizente com a ciência de seu tempo, na qual não há espaço para as superstições populares. Figuras públicas precisam entender que redes sociais não são as velhas cercas que separam quintais e serviam para as vizinhas fofocarem. Logo, o professor universitário não “jogou praga” na jornalista do SBT – ele incitou a prática de crime contra ela, incorrendo no artigo 286 do Código Penal, tornando-se passível de pena de detenção de três a seis meses de prisão ou multa.

E não é a primeira vez que ele age assim. Desde que Rachel Shehera­zade despontou na televisão brasileira com suas contundentes – e elegantes – críticas ao pensamento de esquerda, Paulo Ghiraldelli passou a atacá-la sistematicamente no Facebook e no Twitter. Ou todas aquelas postagens atacando a jornalista foram obra de invasores? Ghiraldelli precisa tomar cuidado com o uso indiscriminado que tem feito dessa desculpa esfarrapada ou corre o risco de ser processado pelo Facebook e o Twitter, pois não é possível que essas redes sociais sejam assim tão inseguras a ponto de colocarem em maus lençóis um professor universitário que navega na internet há anos e sabe como se proteger minimamente. Entre diversas postagens contra Sheherazade que já apareceram nos perfis de Ghiral­delli convém destacar a que data de 28 de março de 2013, garimpada por Felipe Moura Brasil, blogueiro de “Veja”: “Evanjegue não lava a xana! Então... Rachel Cheira­zedo”. Esses dizeres foram estampados sobre uma foto do rosto da apresentadora, seguida por outras postagem que lhe serve de legenda: “Essa é a Rachel, o braço de Feliciano na TV. Ela incita o racismo, a xenofobia e a crueldade com animais”.

Agora, convém reler o trecho da reportagem da “Folha de S. Paulo” em que Rachel Sheherazade é descrita como a âncora que “é conhecida por seus editoriais controversos e de teor conservador”. Marilena Chauí chama de “desgraça” a classe média que lhe paga o salário, mas nunca foi classificada como “filósofa controversa”, mesmo sendo mais devota do PT do que da própria filosofia. Já Rachel Sheherazade é tida como “controversa” por defender a liberdade de expressão de um deputado democraticamente eleito, criticar um mero programa governamental como o Bolsa-Família e até pelo fato de dizer que Jesus está sendo esquecido no Natal – um fato que pode ser constatado por qualquer ateu. Ou é possível negar que o espírito religioso dessa festa há muito cedeu lugar para o seu caráter comercial? Se uma âncora de TV diz isso, ela está dizendo algo de “controverso”? Controverso é o “kit gay” ser distribuído para crianças nas escolas e não o pensamento de quem condena essa prática imoral, como faz Rachel Sheherazade, expressando o pensamento da esmagadora maioria da população brasileira, ainda não contaminada pelo vírus da imoralidade acadêmica.
Universidade em ritmo de barbárie

Os ataques do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. à jornalista Rachel Sheherazade não são um caso isolado – eles são um sintoma da barbárie que tomou conta das universidades brasileiras, num sentido diverso daquele que o filósofo José Arthur Giannotti emprestava ao tema quando o tratou num livro com esse título publicado em 1986. Paulo Ghiraldelli não é um desconhecido professor como fingiu ser na reportagem da “Folha de S. Paulo”. Ele é o principal discípulo brasileiro do filósofo pragmatista norte-americano Richard Rorty (1931-2007), que tem considerável influência nas universidades brasileiras, com cerca de 30 dissertações e teses defendidas sobre sua obra e vários livros traduzidos e publicados em português. Além de ser um dos responsáveis pela divulgação do filósofo norte-americano no Brasil, Paulo Ghiraldelli Jr., juntamente com Michael Peters, organizou o livro “Richard Rorty: Education, Philosophy, and Politics” (“Richard Rorty: Educação, Filosofia e Política”), publicado nos Estados Unidos em 2001.

Paulo Ghiraldelli Jr., segundo informa em seu currículo Lattes, é “filósofo e escritor”. Tem doutorado em filosofia pela USP e doutorado em filosofia da educação pela PUC-SP. Tem mestrado em filosofia pela USP e mestrado em filosofia e história da educação pela PUC-SP. Fez sua livre-docência na Unesp e o pós-doutorado na Uerj, com a tese “Corpo: Filosofia e Educação”. Em seu currículo, ele informa ainda que “foi pesquisador nos Estados Unidos e na Nova Zelândia; é editor internacional e participante de publicações relevantes no Brasil e no exterior; possui mais de 40 livros em filosofia e educação; trabalha como escritor e tem presença constante na mídia imprensa, falada e televisiva” – o que depõe contra sua afirmação à “Folha de S. Paulo” de que não passa de um “simples professor de filosofia”, um “coitado”, “desconhecido do mundo”. Também Dirige o Centro de Estudos em Filosofia Americana (Cefa) é é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Mas engana-se quem pensa que Rachel Sheherazade foi escolhida como alvo de Paulo Ghiraldelli por ele ser misógino. Em um ponto ele tem razão: sua carreira intelectual, ao menos retoricamente, se alinha com o feminismo, as minorias, a liberdade de expressão. Ocorre que, mesmo se apresentando como alguém que não é de “esquerda” nem de “direita” e, sim, uma espécie de libertário, Paulo Ghiraldelli Jr. é como a filósofa Marilena Chauí, que acredita que só existe ética de esquerda. Por isso, ele não perdoa Rachel Sheherazade, que ousa discordar do pensamento hegemônico de esquerda, sobretudo num veículo de grande impacto, como a televisão. A âncora do SBT não é exatamente uma porta-voz da direita, como afirma Ghiraldelli. Ela apenas exprime o bom senso da maioria da população, que, mesmo de forma inconsciente, não aceita o totalitarismo de esquerda que quer destruir todos os valores morais da sociedade. Por isso, a esquerda quer eliminar Rachel Sheherazade do debate público. É a liberdade de expressão sendo acossada, mais uma vez, pela esmagadora capacidade de pressão da esquerda

sábado, 4 de janeiro de 2014

A Guerra dos Mascates: de novo? Olinda e Recife agora sao Brasil e Argentina? - Paulo Roberto de Almeida

A Guerra dos Mascates

 Paulo Roberto de Almeida 

            O romance homônimo de José de Alencar, um dos mais importantes escritores do Brasil oitocentista, reporta-se ao conflito entre Olinda e Recife, no início do século XVIII. A luta opôs as famílias proprietárias de engenhos do interior aos habitantes de Recife, onde residiam os “mascates”, como eram designados os comerciantes portugueses. A disputa era uma mistura de poder econômico e poder político, pois que os comerciantes do Recife pretendiam fugir à autoridade de Olinda, então sede da capitania. Depois de alguns entreveros, os recifenses solicitaram e obtiveram da Corôa liberdade de jurisdição para sua cidade, então uma simples vila portuária.
            Estamos assistindo a uma nova guerra dos mascates, mas ela não se dá em torno de um projeto de liberdade política ou jurisdicional, mas por incapacidade concorrencial, como revelado na disputa dos fabricantes argentinos contra seus “irmãos” brasileiros, supostamente aliados e parceiros da mesma união aduaneira e do mesmo projeto de mercado comum. Desde vários anos, os industriais argentinos, sustentados por suas autoridades políticas, movem uma guerra de posições contra a entrada de produtos brasileiros em seu território, numa flagrante ilegalidade em relação aos princípios do tratado de Assunção (1991), que criou o Mercosul.
O mais incrível nessa disputa, feita de golpes baixos e de medidas arbitrárias, é que o protecionismo dos argentinos está sendo apoiado pelas próprias autoridades brasileiras, num total desrespeito aos interesses dos empresários brasileiros, que investiram e se prepararam para disputar espaços do que seria um território “liberado”. Com efeito, as medidas ilegais e abusivas dos novos mascates estão em dissonância com as normas da zona de livre comércio que deveria existir desde o primeiro dia de janeiro de 1995, aprovada na conferência de Ouro Preto, de dezembro de 1994.
            Sim, o leitor leu corretamente: a zona de livre comércio (ZLC), isto é, a liberdade de circulação de mercadorias, deveria estar em vigor há quase 20 anos, e se ela continua a ser, ainda hoje, essa cortina furada que todos sabemos que é, tal se deve à incapacidade dos países membros de implementar o que eles mesmos acordaram na capital paraguaia em 1991. Ora, não apenas a união aduaneira não se completou, mas a ZLC continua sendo uma promessa, mirífica ao que parece. Se o governo FHC ainda ameaçava retaliar contra restrições similares que vinham sendo impostas contra os interesses brasileiros por parte do governo Menem, as administrações posteriores brasileiras não esboçam sequer um sinal de reação, achando que sendo leniente com essas ilegalidades pode “fortalecer” o Mercosul .
De fato, a Argentina tem pleno direito de, atendendo às normas do GATT e da OMC, de introduzir salvaguardas não discriminatórias contra a importação de quaisquer produtos que possam estar provocando perdas insuportáveis aos produtores locais, desde que ela prove que as dificuldades derivam dessas importações. Ela não o fez, e sequer se preocupou em argumentar na OMC que as medidas de defesa comercial eram justificadas e necessárias. Mas ela nunca poderia fazê-lo no quadro do Mercosul. Ela transferiu ao Brasil o ônus da incapacidade concorrencial dos seus produtores industriais, impondo aos nossos fabricantes uma discriminação que não encontra respaldo nos acordos do Mercosul. Ora, em lugar de protestar e de colocar uma reclamação contra as medidas ilegais da Argentina, seja no âmbito dos mecanismos de solução de controvérsia da OMC, seja no âmbito do próprio Mercosul, o que fazem as autoridades brasileiras encarregadas do setor?
Nada, absolutamente nada. Ou melhor, ainda demonstram “compreensão”, aderindo à falsa tese argentina das “assimetrias estruturais”. Elas pensam estar, assim, “reforçando” o Mercosul, quando se está, na verdade, minando-lhe os fundamentos, a ponto de torná-lo inviável e não operacional. Trata-se de um equívoco incomensurável, desde os tempos em que David Ricardo formulou sua teoria das vantagens comparativas, no início do século XIX. Como todos sabem, a base essencial de qualquer relação de comércio é, precisamente, a existência de “assimetrias estruturais” entre países, que só assim conseguem confrontar suas especializações respectivas. Sem isso não haveria comércio.

É preocupante constatar que se fazem concessões comerciais sem barganhas, não apenas aos argentinos, mas a vários outros “parceiros” comerciais, em nome de ilusórios ganhos políticos. No caso da Argentina, porém, a leniência brasileira já provocou perdas de milhões de dólares aos nossos industriais. Será que o Brasil vai continuar fazendo concessões indevidas à Argentina? Talvez tenham razão os industriais paulistas: em lugar de conservar a ficção do Mercosul, melhor fazê-lo retroceder a uma ZLC. Antes que vire uma zona…

O Brasil pelo metodo confuso: Mendes Fradique, um escritor de atualidade - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil pelo método confuso

Paulo Roberto de Almeida 

A História do Brasil pelo Método Confuso foi escrita por Mendes Fradique (na verdade o médico capixaba José Madeira de Freitas) entre o final da Primeira Guerra Mundial e o início dos anos 1920, tendo saído primeiro em caráter esparso na imprensa carioca, antes de virar livro. Foi um imediato sucesso, mas mergulhou em seguida num injusto anonimato até ser resgatado por uma edição bem cuidada a cargo da historiadora Isabel Lustosa (Companhia das Letras, 2004).
Nesse livro, Mendes Fradique recolhe os mais diversos elementos do non sense e da paródia para compor um volume que deveria, atualmente, ser adotado como leitura obrigatória pelos nossos dirigentes políticos e líderes de partidos, levados que são estes personagens da vida pública a se tomarem muito a sérios no desempenho das funções de comando do país. Trata-se, como o próprio título indica, de uma reconstituição da história pátria com grandes doses de humor e uma inspiração elevada: ridicularizar atos, fatos, atores e personagens imaginários e da literatura, tudo confundido numa grande salada político-humorística. Em suma, trata-se de uma grande leitura para os dias que correm, haja visto, por exemplo, o espetáculo das alianças políticas que se desenham nas próximas eleições, juntando gregos e goianos numa Babel de siglas partidárias.
Apenas um exemplo da imaginação geográfica do nosso médico escritor: o Brasil, segundo Mendes Fradique seria um dos países mais originais do globo. Do ponto de vista astronômico, ele está situado no mundo da lua, tendo como limites geográficos: “ao sul, o Borges de Medeiros; a leste, o cabo submarino; a oeste, o Acre. Não tem Norte”. Será que ele continua sem norte? Como superfície, “foi sempre um país muito superficial”. “O ponto culminante do Brasil é o Sr. Rui Barbosa”. Quanto à economia, uma característica da época não parece ter mudado muito ainda hoje: “O comércio mais ativo era o de princípios, de opiniões, de votos, de caráter e até o de alma”.
De fato, a julgar pelo comércio de apoios recíprocos que fazem hoje em dia os políticos e os partidos, tudo leva a crer que o mesmo comércio de votos e de opiniões que existia nos tempos da Velha República continua a marcar a vida política brasileira. Mendes Fradique dizia que “toda a gente era negociante” e que “até a própria Justiça tinha uma venda”. Os habitantes da terra tinham o seu próprio decálogo, que comportava regras tão edificantes quanto estas: o bocado não é para quem o faz, é para quem o come; ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão; em terra de cego, quem tem um olho é rei; venha a nós: tudo, ao vosso reino: nada; o futuro a Deus pertence; água passada não move moinho, e algumas outras desse gênero. Melhor que isso, só a Constituição do país, que tinha uma grande lei: a do menor esforço. Quanto ao Conselheiro Acácio, ele cunhou uma frase que bem parecia refletir a alma nacional (aliás até hoje): “Todo cidadão tem o direito de cometer um ou dois desatinos antes de criar vergonha”.
Incrível atualidade a de Mendes Fradique. Ele lamentava as derrotas de Rui Barbosa em todos os pleitos de que tinha participado o grande jurista e internacionalista, achando, provavelmente, com o Conselheiro Acácio, que “cada povo tem o governo que merece”. Mas, o senso da maioria traduz, talvez, um bom senso: “Presidente da República, Rui Barbosa seria um mau chefe de Estado: não se monta uma locomotiva para puxar um carrinho de mão”. Avançamos em matéria de artes e técnicas, mas em matéria de tecnologia política estamos aparentemente estacionados nos mesmos costumes que fizeram os jovens tenentes se levantarem contra o presidente Artur Bernardes: a corrupção política e os conchavos partidários, por cima dos interesses na Nação.
O mais incrível e surpreendente é que o partido que mais prometeu, durante anos, reformar costumes políticos pornográficos como a compra de votos, de almas e de consciências, atira-se sem nenhuma vergonha às mesmas práticas vilipendiadas e condenadas quando era oposição. Deve ser algum mal atávico desta terra, o que nos remete, uma vez mais, a um dos argumentos preferidos de Mendes Fradique: “não devemos deturpar amanhã o que podemos deturpar hoje”. As mesmas pessoas que consideravam ser o congresso formado por dois terços de “picaretas”, refestelam-se hoje em banquetes e conchavos com esses picaretas, elogiando-lhes as qualidades e traçando planos conjuntos para a continuidade dos velhos hábitos.

A versão sarcástica e caótica da história do Brasil de Mendes Fradique não está muito distante da versão real e alegadamente séria dessa mesma história. Ela talvez até lhe fique atrás, em imaginação e colorido. Alguns personagens parecem diretamente saídos das páginas deste livro dos anos 1920: o mesmo oportunismo político, as mesmas frases ocas, as mesmas promessas vazias, o mesmo surrealismo nas palavras e nos atos, enfim, a vida imitando a ficção. Seria este o país Lavoisier?

O Estado a que chegamos - Paulo Roberto de Almeida

O Estado a que chegamos…
Paulo Roberto de Almeida  
Vou ser conciso, direto e brutal: o Estado brasileiro representa, hoje, o principal obstáculo a um processo sustentável e satisfatório de desenvolvimento econômico. Este é um fato (e uma verdade), ainda que muitos possam considerá-lo como mera opinião pessoal, mas minha afirmação poderia ser facilmente corroborada por um sem número de dados objetivos do ponto de vista tributário, orçamentário, financeiro, regulatório, em aspectos macro e micro, como alocação “sub-ótima” de recursos pelos agentes, etc.
Não pretendo entrar em polêmicas inúteis com eventuais defensores do Estado (deste Estado ou de qualquer Estado), mas diria apenas, para início de debate, que o atual governo não é responsável por esta situação lamentável, que apenas constitui a culminação de um processo atávico e perverso de acumulação “primitiva” (no sentido de rude, mesmo) de disfunções estatais que foram lentamente sendo “depositadas” em camadas burocráticas geológicas e que hoje comprometem gravemente as possibilidades de crescimento sustentável. Mas o governo atual tem, sim, a responsabilidade pela continuidade de uma certa visão do mundo que tende a sustentar e prolongar esse estado de coisas.
Sendo reiteradamente direto e mesmo brutal, eu diria também que o governo (este e os seus predecessores) é o principal responsável pelo fato de a economia não funcionar de modo satisfatório. Esta é uma responsabilidade indeclinável, mas ela deve ser igualmente partilhada pelas três esferas da administração, uma vez que os políticos federais, estaduais e municipais, assim como funcionários de alto escalão dos três poderes devem ser solidariamente responsabilizados por essas disfunções históricas do Estado brasileiro.
Não pretendo fazer longas digressões, tentando explicar como cheguei a essas duas constatações. Vou limitar-me a reafirmar que o peso do Estado brasileiro – o Estado a que chegamos, como diria o barão de Itararé – representa, sem qualquer dúvida, um peso morto sobre os ombros dos agentes econômicos e sobre o conjunto da sociedade (com poucos elementos de satisfação, segundo a opinião corrente). Tal como ele (não) funciona atualmente, o Estado brasileiro continuará, infelizmente, a obstaculizar o processo de desenvolvimento do país pelo futuro previsível. Esta é a parte ruim da história.
A parte ainda pior é que, mais uma vez infelizmente, não há perspectivas de que essa situação possa ser revertida no curto ou no médio prazo. Ou seja, temos apenas a certeza, pelo futuro previsível, de que a única certeza no nosso horizonte é a perspectiva de esforços privados não correspondidos no plano estatal, lágrimas implícitas por parte dos agentes econômicos e gemidos sem fim por parte do público em geral. Se isto pode servir de consolo, eu diria que um começo de solução a este problema trágico – já que é o nosso futuro e o de nossos filhos e netos que está em causa – não será encontrado fora do Estado, ainda que isto deva ser feito aos trancos e barrancos, quase a fórceps.
Não será feito fora do Estado e muito menos sem o Estado ou contra o Estado, porque, mais uma vez infelizmente, o Estado, também pelo futuro previsível, tornou-se o centro indeclinável e incontornável da economia e da política no Brasil. Aos que consideram este tipo de constatação uma manifestação incurável de neoliberalismo explícito e de anti-estatismo de princípio, eu diria simplesmente o seguinte: não estou preocupado com ideologias, mas apenas com constatações empíricas. A esse respeito, podemos lembrar que poucos países desenvolvidos – e certamente não os mais dinâmicos – têm no Estado o centro de gravidade absoluto da vida econômica nacional, como ocorre hoje no Brasil, onde ele é o referencial incontornável de qualquer ajuste, medida, iniciativa, suspiro e gemido da vida nacional.
Esclareço, mais uma vez, não se trata aqui de uma opinião ou impressão subjetiva, mas de um fato sociológico contra o qual podemos nos revoltar, lamentar, protestar, mas também com o qual temos de nos conformar e, em seguida, contra o qual temos de nos confrontar.
Se o Brasil quiser se desenvolver, com distribuição de riqueza, progresso tecnológico e justiça social, o Estado tem de – isto é imperativo – deixar de ser o centro absoluto da vida nacional. Um ogro que absorve dois quintos do produto bruto sem reverter serviços proporcionais para a sociedade é claramente disfuncional para fins de desenvolvimento socioeconômico. Isto tampouco é uma opinião: é uma constatação elementar que surge límpida do exame dos indicadores econômicos e sociais do último quarto de século (período no qual paramos de crescer, mas as raízes da “involução” tinham sido desenhadas bem antes).
Aos que, mais uma vez, seria tentados a ver nessas afirmações demonstrações explícitas de neoliberalismo, eu apenas pediria que deixassem de tapar o sol com a peneira e olhassem a realidade dos fatos. A perda de vigor econômico no Brasil foi concomitante com a passagem de uma carga fiscal de aproximadamente 10% para 37% do PIB (e crescendo) e o contínuo decréscimo da relação capital-produto no processo brasileiro de desenvolvimento, sem que os elementos de disfuncionalidade se resumam, todavia, ao aspecto fiscal da história ou à perda de vigor dos investimentos. Não: o solapamento e a inviabilização do processo de desenvolvimento são o resultado de dezenas de ações desenvolvimentistas, distributivistas e regulatórias acumuladas ao longo de anos, senão décadas, um esforço contínuo, constante e crescente de fabricação do ogro. Ele agora está aí: é o Estado a que chegamos (e não adianta reclamar da boca para fora: todos nós fomos, somos e continuaremos a ser responsáveis solidários por esse gigantesco empreendimento de construção da desconstrução econômica).
Àqueles, também, que repetem sem cansar a velha cantilena da “ausência de um projeto de Nação” e que continuam a condenar um imaginário “modelo perverso de desenvolvimento”, clamando em consequência, na augusta generalidade das idéias vazias, pela necessidade de um outro (tão indefinível quanto fantasmagórico) “modelo de desenvolvimento”, eu apenas diria que eles precisam, por uma vez, dedicar-se seriamente ao dever de casa. Sim, pois que, pelo menos desde a minha infância (mas deve ter ocorrido antes também), aí pelos anos 1950, eu ouço falar dessa tal necessidade, com intelectuais e políticos se sucedendo nessa tarefa de Sísifo puramente intelectual, e nenhum deles, uma única inteligência nacional, foi capaz, até agora, de sequer desenhar os contornos desse “projeto nacional de desenvolvimento”.
Como isso foi possível? Deve ser por algum obstáculo mental coletivo, pois não é possível que tantas cabeças juntas não tenham conseguido oferecer um contorno sequer desse tal “projeto”. Muitos intelectuais ditos “orgânicos” (talvez seja por isso que eles custam mais caro que os normais) continuam a dizer que o Brasil carece de um projeto de desenvolvimento. Eles são eternos candidatos a oferecer tal projeto, que fica sempre na fase de anúncio, sem que sejamos apresentados ao dito cujo, em carne e osso, aliás, como se fosse algum Santo Graal desenvolvimentista, que fica escondido em alguma caverna das montanhas, necessitando bravos e intrépidos cavaleiros para resgatá-lo de algum limbo indefinível, só acessível aos iniciados da douta religião desenvolvimentista.
Como nota final, ainda dirigida ao leitor que considera que estou sendo um neoliberal impenitente, eu apenas pediria que não tentasse concordar comigo no diagnóstico. Eu pediria simplesmente que ele forneça uma explicação alternativa, credível, a esta exposição sobre a disfuncionalidade fundamental do Estado brasileiro para fins de desenvolvimento da Nação. Atenção, porém: se a explicação para o desastre for do tipo “é porque o Estado não fez isto e mais aquilo”, eu aí retorquiria o seguinte: não vale ser tautológico e reincidente no crime. Mas, se você preferir seguir um economista como Celso Furtado que, quando perguntado sobre as razões que impediam o Brasil de crescer, respondeu que era devido a “uma combinação de juros altíssimos com uma concentração de renda brutal”, eu voltaria a responder: mas você está concordando comigo em que o Estado é o principal obstáculo ao crescimento pois que juros elevados e concentração de renda sempre foram e são diretamente produzidos pelo Estado, historicamente e mais ainda nos dias que correm.

Hartford, 4/01/2014

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