segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Monet em Kuala Lumpur - Ary Quintella

Monet em Kuala Lumpur

by aryquintella

Existe no Rio de Janeiro, em Ipanema, na rua Francisco Otaviano, um edifício chamado “Monet Manet”. Junta-se a numerosos irmãos seus que, por todo o Brasil, homenageiam pintores, acredito que sobretudo franceses. Tomemos como exemplo Henri Matisse, a quem devoto grande admiração. Se eu decidir que só posso ser feliz se morar em um prédio com seu nome, terei escolhas disponíveis em numerosas cidades brasileiras, como mostra esta lista não exaustiva: São Luís, Guarapari, Passo Fundo, Fortaleza, Maringá, Ribeirão Preto, Taguatinga, João Pessoa, Mogi das Cruzes, Araguaína, Cuiabá, Belo Horizonte. Em São Paulo, encontrei ao menos dois: no Itaim Bibi e em Indianápolis. No Rio de Janeiro, três: no Méier, no Leblon e no Recreio dos Bandeirantes.

O patriotismo, contudo, está salvo. Os “Portinari” e os “Di Cavalcanti” estão presentes em toda parte no Brasil.

No campo da literatura, noto alguns “Stendhal”.  Quanto a “Marcel Proust”, somente em Ipanema há dois, um na rua onde hoje mora minha mãe, a avenida Rainha Elizabeth, e o outro ali perto, na rua Alberto de Campos. O nome de Proust é considerado enobrecedor, é um conceito de sofisticação intelectual, e não devemos pensar que aqueles que batizaram os dois prédios necessariamente leram o autor. Queriam, é de se imaginar, transmitir alguma ideia de elegância. Felizmente, a bandeira nacional é salva uma vez mais, e constato que “Machado de Assis” é corriqueiro em prédios por todo o Brasil, por exemplo na Avenida Atlântica.

Muito poderia ser escrito sobre os nomes de edifícios residenciais do Rio. O assunto mereceria um tratado de sociologia. É impressionante a quantidade de títulos nobiliárquicos em fachadas. Quem é, por exemplo, a “Princesa Myriam” em um prédio na Lagoa, frente ao qual passo sempre quando estou no Rio? A filha do construtor, talvez? Ou a personagem de algum filme da década de 1970, hoje obscuro? Não é, em si, um nome feio. Possui sabor exótico, com sua referência incompreensível. Por que existe, em São Paulo, um edifício chamado “Conde Versalhes”? Não “Conde de Versalhes” — e nunca viveu ninguém que detivesse esse título — mas “Conde Versalhes”. Já no Leblon, como se o bairro já não fosse percebido como chique e caro o suficiente, pode-se morar no “Conde de Versailles”. Por que essa obsessão em inventar um título de nobreza francês inexistente? Como se não tivéssemos tido marqueses e barões suficientes no Brasil. Mas Versalhes é um conceito que fala por si, e tudo o que diga respeito ao palácio só pode ser imaginado como elegante e cobiçável.

Prefiro quando os nomes atribuídos são de origem indígena. Pelo menos, fazem algum sentido. Meu pai, quando morreu, morava há muitos anos no “Marapendi”, na rua Bulhões de Carvalho. Vejo que, em tupi, isso significa “rio do mar raso”. É bonito; é brasileiro.

“Monet Manet”, decididamente, não é brasileiro. É, pelo menos, artístico, e possui um valor universal. Quando vejo o prédio, porém, sempre me pergunto: “por que os dois?”. Teria bastado um. Fico com a sensação de que houve hesitação da parte de quem escolheu o nome. Não terá sabido definir qual dos dois pintores preferia, ou qual deles é mais acertado preferir. “Monet Manet”, embora estranho, é eufônico. Há nele uma simetria, algo a que nunca resisto. Dois artistas franceses, mais ou menos contemporâneos, ambos com sobrenome de cinco letras, onde apenas uma vogal é diferente. Eu teria preferido que Manet viesse na frente porque, ao seguir a ordem alfabética, o nome “Manet Monet” teria demonstrado um certo rigor mental.

Pesquisando, descubro que tanto Édouard Manet quanto Claude Monet são razoavelmente populares no Brasil. Em várias cidades, há prédios com seus nomes, em diferentes combinações. A denominação “Jardins de Monet” é relativamente comum, ao menos em cidades paulistas. É poética, mas me entristece. Joga no meu rosto que eu nunca fui a Giverny. Várias vezes planejei conhecer o… jardim de Monet, mas o temor de encontrar lá multidões sempre me fez desistir.

O edifício da Francisco Otaviano não é o único a misturar nomes de pintores. Se você é belo-horizontino, pode morar no “Van Gogh e Manet”, no bairro São José. Se for de Niterói, há a opção do “Monet e Renoir”, em Icaraí. Pode-se inverter os nomes também, e se você quiser dar primazia a Renoir, contei três “Renoir e Monet” na cidade de São Paulo. Renoir parece ser extremamente popular. Em todo o Brasil, de Norte a Sul, de Oeste a Leste, são inúmeras as homenagens a ele. Quem decidir, por alguma razão insana, conhecer todos os prédios brasileiros ostentando seu nome passará a vida nisso.

É porém o “Monet Manet” em Ipanema que me interessa mais, porque a Francisco Otaviano é rua de passagem e são já muitos anos vendo esse nome, quando passo por ali. Manet, desde o final da adolescência, exerce forte poder de atração sobre mim. Nos museus, procuro insistentemente por suas telas. Meu interesse por Monet começou alguns anos mais tarde e cresceu gradualmente. Em 2018, fui ao Musée de l´Orangerievisitar uma exposição sobre como os seus quadros de nenúfares, os Nymphéas, influenciaram o abstracionismo americano. Em parte, quis ir à exposição porque um dos artistas expostos era Joan Mitchell, morta em 1992, sobre cuja obra um amigo, o pintor americano Jeff Kowatch, me falara em Bruxelas poucos dias antes. 

Há muitos anos eu não visitava o museu. Mais do que os quadros dos artistas americanos, o que me impressionou na exposição foram as grandes telas de Monet, parte da coleção permanente, que residem nas duas salas ovais. Fiquei frente a elas até a Orangerie fechar.

Desde minha chegada a Kuala Lumpur, em janeiro de 2020, entendi melhor outra série do pintor, as representações da catedral de Rouen. De 1892 a 1894, Monet retratou a fachada da catedral cerca de 30 vezes, estudando como o horário, o clima, a época do ano modificavam a luz que caía sobre ela e as diferenças que isso criava para sua representação. Até eu viver na Malásia, a série da catedral não me interessava particularmente. Via aquilo como um exercício repetitivo. Há muitos anos, estive em Rouen, e lá mal pensei no artista. Minha curiosidade principal era ver a praça onde, em 1431, Jeanne d´Arc foi queimada viva aos 19 anos. Ela é para mim, desde sempre, uma das figuras históricas mais misteriosas e intrigantes, e ao mesmo tempo admiráveis.

Para entender a razão pela qual passei, em Kuala Lumpur, a apreciar a relação de Monet com a catedral de Rouen, é preciso saber as circunstâncias em que a pandemia me faz viver na Malásia.

Às vezes, amigos no Brasil me perguntam se eu tenho podido viajar. A resposta é negativa.  As fronteiras da Malásia estão fechadas desde março de 2020. Obviamente, não é uma prisão. Eu poderia ir ao exterior. Teria porém de fazer quarentena ao voltar, e provavelmente no meu local de destino também. Em Singapura, que seria minha prioridade, eu teria de cumprir a quarentena sozinho em um hotel, não na casa da minha mulher; para quem vem da Malásia, a quarentena exigida lá é, no momento, de duas semanas.

Seriam várias as providências burocráticas para conseguir sair e entrar de volta, aonde quer que eu fosse. Os testes de Covid necessários, para partir e regressar, teriam de ser feitos dentro de uma janela precisa de dois ou três dias, e o resultado teria de estar já disponível antes do embarque. Viajar ao exterior é hoje, portanto, se não uma impossibilidade absoluta, ao menos uma gigantesca amolação. Por isso, há quase um ano e meio não atravesso as fronteiras terrestres, marítimas ou aéreas da Malásia.

Para a circulação dentro do país, as regras variam de acordo com a situação sanitária vigente. Sair da capital é proibido desde janeiro, a não ser por razões imprescindíveis de saúde ou trabalho. Não durmo fora de Kuala Lumpur desde setembro do ano passado, quando passei uns poucos dias de férias na praia em Terengganu, experiência que narrei em minha IV Carta da Malásia, A Viagem a Balbec.

Duas vezes, estive em Malaca desde então, apenas para passar o dia. Na primeira, fiz uma visita oficial ao governador, em que ele me narrou a perda econômica sofrida por seu estado com a ausência dos turistas estrangeiros e a redução do turismo interno. Na segunda, no começo de janeiro, antes de entrar em vigor a proibição de viagens para quem mora em Kuala Lumpur, mostrei Malaca à minha mulher, quando ela veio passar a virada do ano.

Há três meses, a capital está em confinamento total. É a segunda vez desde o ano passado. Minha última ida a um restaurante foi em maio. Não entro em um cinema desde fevereiro de 2020. Vigoram severas restrições à vida social, e desde maio não posso visitar amigos ou recebê-los em casa.

Para mim, nada disso é problemático. É o resultado da pandemia. É a vida de hoje. Aceito-a bem; e procuro sobreviver para poder, no futuro talvez próximo, presenciar dias de mais aventuras. Evito pensar no fato de que não vejo a minha filha desde o final de 2019 e que, no último ano e meio, vi a minha mulher apenas uma vez.

Meu cotidiano é limitado ao escritório e ao supermercado. Desde 1º de junho, nenhum outro estabelecimento comercial pode abrir. Nem mesmo as livrarias; nem mesmo a barbearia. Meu lazer, portanto, tem sido necessariamente passado em casa.

Moro no vigésimo andar de um edifício que olha para o parque desenhado por Roberto Burle Marx. Na diagonal, do outro lado do parque, estão as Torres Petronas, símbolo de Kuala Lumpur. Como Monet com a catedral de Rouen, admiro as torres gêmeas sob diferentes condições de meteorologia, em momentos diversos do dia e da noite. Com sol. Com chuva. Com vento. Com muita luz. Na penumbra. Só não posso examiná-las com neve e frio, porque em Kuala Lumpur todo dia é um dia de verão.

Em 2020, publiquei um texto, Proust e as Petronas, evocando como, uma vez, voltando a Kuala Lumpur, de dentro do táxi na autoestrada vi, de longe, isoladas, as duas torres. As Petronas, então, me fizeram pensar em Proust e na sua descrição do campanário da igreja de Combray em Du côté de chez Swann, quando o narrador o vê do trem. Essa imagem é associada à minha primeira visão, criança, da catedral de Chartres, percebida da estrada, à distância.

Percebi nesse dia como as Petronas haviam crescido dentro de mim. Antes de chegar à Malásia, eu não compreendia a fama das torres. Em fotografia, elas parecem menos impactantes do que ao vivo. Agora que elas se tornaram parte da minha paisagem cotidiana, eu não me canso de olhar para elas. Dependendo da luz, determinados detalhes de sua arquitetura se destacam ou ficam imperceptíveis. É raro eu passar mais do que três ou quatro dias sem fotografá-las.

Em julho, publiquei um álbum de fotografias, As torres mágicas, apenas para poder compartilhar imagens das Petronas. Selecionando 16 representações diferentes, notei como as torres gêmeas mudam de aparência, dependendo do momento, do clima e da luz.

Em um sábado à tarde, em maio, contornando a pé o parque para ir ao supermercado, fui surpreendido por uma chuva fortíssima, acompanhada de trovoadas. O céu escureceu. Abriguei-me sob um toldo. As Petronas estavam frente a mim, no final do caminho para pedestres que me restava fazer até o centro comercial embaixo delas, onde fica o supermercado. Forneciam, por trás da chuva, iluminadas, uma visão impressionante de imponência, fantasmagoria e beleza. Eu nunca as vira assim. Entendi então a motivação de Monet diante da fachada sempre em mutação da catedral de Rouen.

Sozinho sob aquele toldo, sem nenhuma outra pessoa à vista, eu estava recebendo uma experiência que seria para sempre apenas minha. Ninguém mais veria as torres, naquele momento, com aquela chuva forte, e aquela iluminação. Outras tardes viriam, outro aguaceiro; outras pessoas passariam por ali e veriam as Petronas filtradas por uma parede de água. Nunca mais, porém, o céu encoberto revelaria as torres daquela mesma maneira, com aquela mesma tonalidade, com a chuva caindo naquele ângulo, com o parque e o caminho tão vazios como naquela hora.

Dentro de mim, começava a surgir o sentimento de gratidão e felicidade.  As torres se transformavam, de segundo em segundo, em uma visão cada vez mais bela. Era algo magnífico que aquele cenário fosse montado apenas para um espectador.

A solidão natural ao ser humano, colocada em evidência pelo isolamento social da pandemia, pareceu-me, ali, não mais motivo de tristeza, mas de contentamento. O belíssimo espetáculo a que eu assistia era exclusivamente para mim. Não haveria replicação para outro indivíduo. O teatro diante de meus olhos ilustrava, de uma forma aceitável, prazerosa, a realidade — que em outras circunstâncias pode ser desagradável — da incomunicabilidade de cada vida.

Passados alguns minutos, minha percepção mudou. Decidi que não era necessário receber sozinho aquela sensação. A solidão e o isolamento não precisavam ser absolutos.

Tirei o celular do bolso. Focalizei as torres. Bati a foto. Meio-minuto depois, ela estava nas minhas redes sociais.

Abandonando o toldo, caminhei em direção às Petronas, sob a chuva talvez já não tão forte. Enquanto eu andava, lembrei de Monet e de suas dezenas de representações da catedral de Rouen. Comecei a idealizar o que viria a ser uma simples postagem na minha página pessoal, As torres mágicas.

Pois mágicas é o que elas verdadeiramente são. Ano passado, elas me revelaram o quanto a obra de Proust faz parte, desde sempre, da minha vida. No recente sábado de temporal, elas incrementaram o poder de sua magia.  Permitiram-me entender Monet. Aproximaram-me espiritualmente do pintor.

Sem que eu tenha talento algum para as artes plásticas, sem que eu saiba sequer desenhar, as Petronas conseguiram fazer de mim o Monet de Kuala Lumpur.

Esta Carta da Malásia, a XI, foi publicada primeiro na revista de ideias Estado da Arte, em 17 de julho


'This is not Saigon' (no, it's worse) - Stephen Collinson and Caitlin Hu (CNN Meanwhile in America)

 

CNN Meanwhile in America, August 16, 2021

 

 

 

Stephen Collinson and Caitlin Hu

'This is not Saigon'

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There is no end to the torment of the people of Afghanistan and Haiti. Both nations, desperately poor and plagued by violence, experienced brief glimpses of hope in recent decades, as foreign aid and muscle arrived with the hope of peace and rebuilding. But the agony of each deepened this weekend. Afghanistan is again largely under the boot of the Taliban as America’s 20-year misadventure ends in a rushed exit. And Haiti, hit by another murderous earthquake and still reeling from the assassination of its president, seems no better equipped to save itself than it was in 2010. 

 

 

 

What was it all for?

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The Taliban is back in Kabul. Afghans are once again sliding into a new dark age of repression and persecution of women. And the United States is beating a humiliating retreat, becoming the latest superpower humbled in Central Asia’s graveyard of empires. 

 

The most immediate consequence of the militia’s blitzkrieg across Afghanistan is a political disaster for President Joe Biden who ordered all American troops out but failed to orchestrate an orderly withdrawal.

 

Pessimists have warned about a Saigon-style helicopter retreat from the US embassy for a while now. But most didn’t really think it could happen. Until Sunday. 

 

It now looks almost impossible that the US will succeed in extracting all the Afghans who acted as translators and fixers and in other roles for its forces over 20 years — and who face an awful fate if they are left behind. Former President Ashraf Ghani’s flight and the melting away of Afghan forces trained with billions of US and allied dollars without a fight — finally exposed the myths that Washington had allowed it to believe about "success" in the country. 

 

Ironically, those failures served to prove Biden’s rationale for leaving — that no amount of US blood and treasure could ever make Afghanistan a functioning, unified nation — at least the one dreamed of by US foreign policy planners. Like Iraq and Libya, Afghanistan has found out that in the modern era, America’s zeal to get into wars is only exceeded by its rush to get out of them, no matter the mess that is left behind.  Also spare a thought for the families of Afghan civilians killed by misdirected US fire. Or the relatives of Americans and allied troops from Canada, Britain, Italy, Australia and elsewhere who perished or left limbs on Afghan battlefields. 

 

America’s global reputation is meanwhile in for a shredding. The President who just toured Europe promising that “America is back” after the poison of the Trump years is presiding over a humiliating defeat. And Biden’s vows to fight for global democracy are now undermined by his own abandonment by a US-backed democratic government in Kabul. 

 

It’s not all Biden’s fault. He’s just carrying the can for the messy exit. Four US administrations tried covert warfare, bombing blitzes, occupation, nation building, troop surges, counter-insurgencies and troop drawdowns on Washington’s arbitrary timetables. It all led up to today. 

 

The question “what was it all for” is best answered by another one: Was US intervention ever going to end any other way? 

Helicópteros sobre Cabul, 2021, como em Saigon, 1975, apenas que agora é muito pior - The Washington Post

 


The Washington Post
Today's WorldView
 
 

A história da codificação do Direito, de Fábio Siebeneichler de Andrade - Arnaldo Godoy (Conjur)

 

Embargos Culturais

A história da codificação do Direito, de Fábio Siebeneichler de Andrade

Por 

Em "Da codificação, crônica de um conceito"[1] o autor, Fábio Siebeneichler de Andrade, sugere pistas para a identificação das motivações políticas, filosóficas e instrumentais que orientam os processos de codificação do direito. Entende-se, na leitura desse belíssimo livro, que do ponto de vista político a codificação atende a projetos de centralização. Além do que, do ponto de vista filosófico, a codificação pretenderia demonstrar que o direito positivo seria uma construção normativa dos valores do direito natural. O código, nesse sentido, seria o direito natural legislado. E ainda, instrumentalmente, a codificação seria indício de segurança jurídica e de certeza na aplicação do direito. 

O autor sustenta esse argumento seccionando o livro em três partes. Discorre sobre os processos históricos de codificação, em seguida avalia uma suposta crise dos códigos, em forma do argumento da descodificação, concluindo com prognósticos sobre o futuro da codificação. Acredita nos códigos. Explicita a origem da expressão. O codex remete-nos a uma tabuleta de madeira, mais tarde untada com cera, na qual se escrevia. Agrupados, tinha-se formato que nos lembra o livro atual, em contraposição ao volume, no qual as anotações eram dispostas em forma de rolo. Textos normativos eram registrados em um codex, e a expressão então designou essa forma de fixar a norma jurídica. 

O código, como concebido contemporaneamente, é documento jurídico no qual há planejamento lógico e agrupamento sistêmico, no argumento do autor. Nesse sentido, fora de propósito entendermos o Código de Hamurábi, a Lei das 12 Tabuas ou qualquer outro documento normativo antigo como código, ainda que o façamos por força de tradição de registro literário. Na concepção contemporânea de código, associada a padrões do iluminismo, tem-se mecanismo de enfrentamento do problema da dispersão das fontes do direito. O código pretende apreender uma totalidade temática, disciplinando-a como sistema. Permite a busca da coerência do ordenamento jurídico, fulminando lacunas e resolvendo antinomias. O código, basicamente, facilita o acesso às normas. É fórmula para a obtenção da unidade e da segurança do direito. 

No argumento do autor, o código decorre de um planejamento lógico e de um agrupamento sistêmico. É construído mediante um método geométrico e dedutivo, no qual os artigos são expostos como teoremas vitais. Em uma perspectiva histórica, o código é agente da estatização do direito privado, afirmando poder político, que se revela como seu garantidor de aplicação. Realiza-se o plano político de Rousseau, para quem há uma primazia da fonte legislativa sobre a autoridade tradicional. 

Fábio Siebeneichler de Andrade retoma a tradição do direito romano, imprescindível para que entendamos a dinâmica conceitual de um código, ainda que não se possa falar com certeza da codificação do direito antigo, incluído o Código de Justiniano. Esse último figura como método, a exemplo das Institutas e das divisões propostas, especialmente em direito natural, das gentes e civil, a par de pessoas, coisas e ações.  O autor explora a tradição medieval dos glosadores e dos comentadores, que fixaram um método de estudo. É o mos italicum, que remonta a Bártolo de Sasoferrato e aos juristas eruditos da Escola de Bolonha. Há também reflexões em torno do jusnaturalismo racionalista e à compreensão dos fatores políticos da codificação.

O autor centra o livro nas grandes codificações europeias, especialmente quanto ao papel de Napoleão n contexto da redação de seu código. Informa-se que Napoleão participou das sessões nas quais os textos eram discutidos, intervindo 84 vezes, quando usou da palavra e argumentou, especialmente no tema do divórcio. Há explicações quanto à famosa polêmica Savigny contra Thibaut, relativa à necessidade de redação de um código civil para a Alemanha. Essa polêmica configura-se como um dos momentos mais tensos na construção do direito alemão no século 19, projetando-se seus efeitos para debates em outros países, até cotidianamente. Essa disputa revelou tensão entre o racionalismo iluminista e o historicismo que marcou o romantismo alemão, traduzida por dissensos que havia em torno do direito romano. Savigny era contrário à codificação. Thibaut a defendia. Venceu esse último, com a promulgação do Código, em 1900. 

Fábio Siebeneichler de Andrade trata em seguida da codificação do direito privado no Brasil. Destaca a influência das Ordenações, retoma o artigo 179, XVIII, da Constituição de 1824 (que determinava a confecção de um código civil), lembra o esforço de Teixeira de Freitas (e sua Consolidação), bem como as atuações de Nabuco de Araújo, de Joaquim Felício dos Santos (Apontamentos), de Coelho Rodrigues, chegando ao projeto de Clóvis Beviláqua e ao subsequente debate entre Rui Barbosa e Barata Ribeiro, limitado a problemas de gramática e de estilo. O leitor pode ampliar o contexto temporal da discussão, com a leitura da História do Novo Código Civil, de Miguel Reale. O autor também sintetiza a história de outras constituições latino-americanas, a exemplo da Argentina e do Chile. 

Trata, na parte final, dos processos de descodificação, que revelam a crise dos códigos, cujos temas são capturados pela ascensão do direito público, mais especificamente pela constitucionalização do direito privado. Ao mesmo tempo, desenvolvem-se microssistemas normativos, que na visão do autor expressam instâncias de particularismo jurídico. Defendendo a função harmonizadora dos códigos, Fábio Siebeneichler de Andrade conclui que o modelo — código — representa uma categoria normativa "altamente representativa que por estar associada ao princípio da continuidade sempre estará a (co) ordenar o direito privado". 

[1] Essa resenha foi publicada originariamente na Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 24, ano 7, pp. 371-3, São Paulo: RT, julho-setembro 2020.


domingo, 15 de agosto de 2021

O Grande Capital já não aguenta mais Bolsonaro - Marcos Strecker (ISTOÉ)

 PIB dá a resposta

Marcos Strecker

ISTOÉ, 13/08/21

 

Nomes de peso da economia manifestam a maior insatisfação com Bolsonaro desde sua chegada ao poder. O agravamento da crise deve aumentar o afastamento

 


INDIGNADO Guilherme Leal, da Natura, diz que questionar as eleições é “totalmente inaceitável” (Crédito: Adriano Vizoni)


O governo Bolsonaro perde popularidade em praticamente todos os segmentos e vê sua sustentação política evaporar. Mas, até o início do ano, ainda contava com a boa vontade dos empresários, que confiavam na agenda liberal de Paulo Guedes e na promessa de retomada econômica. Esse apoio sofreu fissuras desde o início do ano, quando ficou evidente que o descalabro na compra de vacinas iria frear a recuperação dos negócios. E o afastamento chegou a um ponto de quase ruptura com a escalada do governo contra as urnas eletrônicas.

 

“Os investidores daqui e de fora que querem apostar na retomada do País estão cada vez mais desconfiados”



“Essa escalada precisa acabar para que a gente volte a gerar renda” Fernando Pimentel, presidente da Abit (Crédito:Divulgação)

 


Eduardo Sirotsky Melzer, sócio-fundador da EB Capital (Crédito:Carol Carquejeiro)

 

 

Esse foi o duro recado transmitido pelo manifesto “Eleições Serão Respeitadas”, lançado no dia 5 por empresários, banqueiros e economistas, que começou com centenas de nomes e em pouco tempo ultrapassou seis mil assinaturas. Não é comum a presença de grandes representantes do PIB no debate político, mas essa discrição foi superada pela urgência do momento. Guilherme Leal, fundador da Natura e copresidente do Conselho de Administração da empresa, mostrou ser uma das vozes mais indignadas. Ele considerou “totalmente inaceitável” que lideranças questionem a realização das eleições. “Essa escalada precisa acabar para que a gente volte a gerar renda”, defendeu o presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), Fernando Pimentel. Fábio Barbosa, ex-presidente do Santander e da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), notou que o manifesto “tem impacto por ser uma manifestação de empresários que normalmente não se manifestam”. Ele foi um dos coordenadores do movimento, que começou com poucas dezenas de pessoas ligadas ao Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP) antes de ganhar a adesão massiva.

 

“Tenho arrepios, como boa parte do mercado, de ver esse arremedo de nacional-populismo crescendo no País” 

 

 

Daniel Goldberg, sócio da Farallon (Crédito:CLAUDIO BELLI)

 

O manifesto reuniu nomes de peso como Luiz Carlos Trabuco, presidente do Conselho de Administração do Bradesco, Pedro Moreira Salles e Roberto Setúbal (Itaú Unibanco), Luiza e Frederico Trajano (Magalu), Walter Schalka (Suzano), Ricardo Lacerda (BR Partners) e José Olympio Pereira (Credit Suisse Brasil). Em março, empresários já haviam divulgado um manifesto cobrando o governo por medidas efetivas de combate à Covid, que ficou conhecido como a “carta dos 500”. Mas, ao contrário dessa iniciativa, que serviu para forçar o governo a acelerar a compra de vacinas, o manifesto pró-democracia, lançado no mesmo momento em que o TSE e o STF passaram a tomar medidas concretas para conter as investidas antidemocráticas, não conseguiu conter a radicalização do governo. Depois que a PEC do voto impresso foi derrubada na comissão especial da Câmara, no dia 6, a matéria voltou ao plenário por pressão do presidente, que organizou um desfile de tanques para aumentar a pressão sobre os parlamentares na última terça-feira. Mesmo com uma nova derrota nesse dia, Bolsonaro voltou a levantar suspeitas sobre as urnas eletrônicas.

 

“O ano de 2022 é uma zona de incerteza. O que está em jogo não é mais a economia, mas a democracia” 

 

Ana Carla Abrão, economista (Crédito: Ruy Baron/Valor )

 

Além da indignação com a ameaça antidemocrática, o combustível para a insatisfação é a percepção de que o governo Bolsonaro leva a economia a um impasse. Guedes já não consegue mais convencer que vai manter uma pauta coerente de respeito aos bons fundamentos econômicos, pois os programas eleitoreiros de Bolsonaro viraram a prioridade. A paralisia com as privatizações, o calote nos precatórios, a reforma açodada do Imposto de Renda, a pauta antiambiental e a crise energética que colocou o País na iminência de novos apagões são fatores que afastam os empresários dos braços do governo. Isso é sentido especialmente no setor de fundos de investimentos, que lida com as expectativas futuras e com a visão que players do exterior.

 

“Tenho arrepios, como boa parte do mercado, de ver esse arremedo de nacional-populismo crescendo no País. Essa combinação de blindados na rua, insinuações nas redes sociais e intimidação por meio de milícias digitais me lembra episódios tenebrosos do passado”, diz o empresário Daniel Goldberg, que é sócio da Farallon, uma das maiores gestoras de fundos do mundo, com US$ 20 bilhões em ativos. “Este governo ataca permanentemente as instituições democráticas, ao invés de endereçar os problemas verdadeiros e urgentes que o País enfrenta”, acrescenta Marcos Lederman, ex-diretor do banco Credit Agricole e sócio-fundador da JointVest. “Mais do que inadequada, a situação traz instabilidade ao Brasil, porque os investidores daqui e de fora que querem apostar na retomada do País estão cada vez mais desconfiados”, concorda Eduardo Sirotsky Melzer, da EB Capital, gestora com R$ 3,5 bilhões em ativos no País. A falta de paciência cresce. A perpetuação da crise em três frentes – institucional, sanitária e econômica – pode deteriorar ainda mais o ambiente de negócios e selar o divórcio do PIB com o presidente. Essa ruptura ainda não aconteceu, mas o tom do manifesto foi de ultimato. “O ano de 2022 já é uma zona de incerteza, com a alta da inflação, o desemprego, as preocupações fiscais e o Auxílio Brasil, que é mais um jeito de turbinar votos do que uma ajuda para quem precisa. A questão é que o que está em jogo não é mais a economia, mas a defesa da democracia”, resume Ana Carla Abrão, head do escritório da Oliver Wyman no Brasil.


Bolsonaros planejam tumulto nas eleições de 2022 - João Filho (The Intercept)

 Conspiradores a céu aberto, sem qualquer vergonha de desmantelar a democracia, nos EUA ou no Brasil.

Nova visita de Eduardo Bolsonaro a Bannon escancarou: vai ter tumulto nas eleições de 2022

Não tem mais dúvida sobre qual será a tática de Bolsonaro: a mesma usada por Trump. 03 foi aos EUA aprender tudinho.

Foto: Reprodução/Twitter

Jair Bolsonaro levou mais de um mês para reconhecer a vitória de Joe Biden nas eleições americanas. Por mais de 30 dias, afirmou que Trump havia sido vítima de fraude eleitoral. Em abril, o governo brasileiro enviou uma carta para Biden em um tom diplomático. Houve quem exaltasse a conversão do presidente ao pragmatismo diplomático, mas esqueceram que Bolsonaro é Bolsonaro.

Quatro meses depois, o presidente retomou o chorume conspiratório. Disse a um representante de Biden que acreditavaem fraude nas eleições americanas, o que deixou o interlocutor atônito. Bolsonaro deixou claro ao governo americano que considera Biden um presidente ilegítimo.

Na mesma semana em que soltou essa bomba na diplomacia, Eduardo Bolsonaro largou seu mandato em uma semana importante na Câmara para cumprir uma agenda particular nos EUA, onde se reuniu com a nata do golpismo da extrema direita americana. Após se encontrar com Trump, a quem ainda chama de “presidente”, foi convidado para falar em uma conferência cujo tema principal eram fraudes eleitorais, organizada pelo empresário Mike Lindell. O evento foi um verdadeiro intercâmbio entre golpistas, que dividiram suas experiências de enganar a população sobre as eleições.

O deputado foi apresentado para a plateia como o “terceiro filho do Trump dos trópicos” e iniciou o discurso elencando uma série de mentiras já conhecidas sobre o processo eleitoral brasileiro. Bastante à vontade entre os seus pares golpistas, Eduardo chegou a fazer uma provocação à plateia: “Vou contar uma história. Imaginem um país no qual, no dia da eleição, autoridades começam a contar os votos minuto a minuto e depois pausam por algumas horas. E quando eles retomam a contagem, adivinhem, quem estava em segundo lugar agora está em primeiro”.

O deputado levou a plateia a acreditar que ele se referia aos EUA, mas depois explicou se tratar da Bolívia: “Se vocês pensaram em qualquer outro país, vocês devem saber que esse país está no mesmo nível da Bolívia quando falamos de eleições”. Eduardo ainda encontrou tempo para criticar o presidente do TSE, Luis Roberto Barroso, a quem seu pai chamou recentemente de “filho da puta”, e ainda apresentou vídeos das constrangedoras motociatas e trechos das lives bizarras de Bolsonaro.

Os organizadores desse evento são dois dos maiores golpistas nos EUA: Steve Bannon e Mike Lindell. Como se sabe, Bannon é uma espécie de Olavo de Carvalho com influência internacional. Já Lindell, empresário milionário, é uma versão piorada do véio da Havan. Ambos seguem empenhados em difundir as teorias da conspiração sobre as últimas eleições americanas. Durante a conferência, Bannon afirmou que Bolsonaro vencerá Lula no Brasil, a menos que as urnas eletrônicas o roubem. Lindell concordou. Bannon disse ainda que Lula é o “esquerdista mais perigoso do mundo, um criminoso, um comunista que é apoiado por toda a imprensa norte-americana” Ao final do evento, Bannon afirmou que a eleição brasileira de 2022 será a “mais importante da história da América do Sul”.

Além de promover golpes pelo mundo, Bannon também é um ladrão. Ele foi preso por roubar a grana de uma vaquinha online feita por ele para arrecadar fundos para a construção do muro fascistoide na fronteira com o México prometido pelo presidente americano durante a campanha. Como Trump não cumpriu a promessa de que os mexicanos pagariam pelo muro, Bannon recorreu à xenofobia dos eleitores trumpistas para arrecadar fundos. Obviamente tratava-se de um golpe. O muro não foi construído, e Bannon desviou parte da grana para o seu bolso.

‘Mesmo que Bolsonaro não seja reeleito, o bolsonarismo continuará vivo’.

Bannon foi preso e só se livrou da pena graças a Donald Trump, que lhe concedeu o perdão no seu último dia de mandato. Como se sabe, as táticas utilizadas pela extrema direita no mundo estão todas presentes na cartilha de Bannon. As declarações diárias, polêmicas, negacionistas, absurdas, conspiratórias e contraditórias são uma estratégia de guerrilha de narrativa que constam nela. Colocar as eleições sob suspeita figura entre as recomendações.

No ano passado, o guru americano escolheu Eduardo Bolsonaro para ser o líder do The Movement na América Latina, uma organização dedicada a defender os interesses dos ultra reacionários espalhados pelo mundo. A tentativa de golpe orquestrada por Trump nos EUA contou com a participação de Eduardo. Ele foi o único estrangeiro presente no chamado “conselho de guerra”, que organizou a invasão ao Capitólio. Horas antes da invasão, Eduardo postou uma foto ao lado de Lindell e o apresentou com a usual finesse bolsonarista: “ex-drogado e hoje um empresário de sucesso nos EUA”.

Foto: Reprodução/Instagram

Mike Lindell é um excêntrico presidente de uma fabricante de travesseiros que gosta de aparecer nas propagandas da sua empresa. É como Luciano Hang. Além de banido do Twitter por divulgar mentiras sobre fraude eleitoral, o republicano também conseguiu a proeza de ser banido de uma conferência entre governadores republicanos.

O empresário está sendo processado pela empresa Dominion Voting Systems, que o acusou de difamação pelas alegações infundadas de fraude eleitoral envolvendo urnas eletrônicas nas eleições americanas. A empresa pede mais de US$ 1 bilhão em indenização na justiça, o que pode levar o milionário picareta à falência. Recentemente, a CNN fez uma reportagem desmontando a teoria conspiratória de Lindell – ele afirma que as urnas americanas foram hackeadas pela China para eleger Biden. A reportagem provou que a alegação é mentirosa, já que as urnas e todo o sistema de votação eletrônico não estão conectados à internet.

Trump está há sete meses fora da Casa Branca, mas ele e seus aliados seguem investindo em promover golpes de estado nos EUA e no exterior. Na semana passada, durante a visita ao Brasil, o representante de Biden disse a Bolsonaro que a Casa Branca confia no sistema eleitoral do Brasil e que não há indícios de fraude nas eleições brasileiras. O americano afirmou também que os EUA acreditam ser importante não minar a confiança dos eleitores no processo eleitoral.

A presença de Eduardo Bolsonaro no evento golpista de Bannon e Lindell causou ainda mais constrangimento à diplomacia brasileira. Os EUA pareciam dispostos a esquecer as falsas acusações de Bolsonaro com relação às eleições americanas, tentando criar pontes de diálogo com o governo brasileiro. Mas presença do filho do presidente em evento golpista, ao lado de bandidos que conspiram contra o governo americano, foi um balde de água fria nessa tentativa de aproximação.

Trump perdeu a eleição, mas conseguiu manter acesa a chama da desconfiança sobre o processo eleitoral acesa nos EUA. Boa parte da população acredita que houve fraude. O bolsonarismo já está preparando o terreno para fazer o mesmo no Brasil caso saia derrotado das urnas. As pesquisas indicam que 20% dos brasileiros não confiam nas urnas, apesar da absoluta falta de indícios de fraude.

Mesmo que Bolsonaro não seja reeleito, o bolsonarismo continuará vivo. E eles continuarão a usar o know-how de Bannon e a investir nas conspirações contra a democracia.


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