quarta-feira, 5 de março de 2025

Regimes políticos e economia - Tiago Cavalcanti (Valor Econômico)

Regimes políticos e economia

Tiago Cavalcanti

Valor Econômico,  quarta-feira, 5 de março de 2025


Pesquisa dois dias após o 8 de janeiro registra que 36,8% das pessoas apoiavam um golpe de Estado no Brasil

 

A rápida e desafiadora transformação econômica e social da China sob um regime político centralizado tem se dado em paralelo à ascensão de políticos “anti-establishment”, que se colocam acima das instituições, nos EUA e em países da Europa. Com isso, avança o fortalecimento da visão de que o modelo político predominante no Ocidente representa um obstáculo para o desenvolvimento econômico.

Na essência deste argumento, está a conjectura de que a chamada democracia liberal impõe processos decisórios lentos devido à necessidade de maiorias e convergências institucionais, dificultando a implementação de reformas estruturais. Além disso, políticos eleitos podem priorizar medidas populistas de curto prazo em vez de políticas econômicas sustentáveis com retornos apenas no longo prazo. Em contraste, regimes baseados no centralismo do poder têm melhores condições de agir rapidamente, promovendo transformações aceleradas e investimentos em projetos com altos retornos no curto e longo prazo.

Por outro lado, existe a hipótese de que a democracia liberal, modelo dominante na ordem institucional dos Estados Unidos e dos países europeus a partir da segunda metade do século XX, seja um fator de grande peso positivo para o desenvolvimento econômico. Isto porque gera estabilidade institucional, segurança jurídica e transparência, fatores essenciais para viabilizar investimentos privados. De acordo com alguns pesquisadores, este modelo reduziria riscos de decisões arbitrárias, favorecendo políticas econômicas mais sustentáveis. Ademais, ao buscar maior participação popular, incentivaria investimentos em educação, saúde e infraestrutura, pilares do desenvolvimento de um país. Neste modelo, a liberdade de imprensa tem papel fundamental ao ajudar na fiscalização da sociedade, reduzindo a corrupção e aumentando a eficiência do setor público.

Se o voto universal estivesse em vigor no início do seculo XX, a extrema pobreza estaria extinta em 1960

É importante ressalvar que a democracia liberal nos EUA e na Europa é relativamente um sistema político jovem, a exemplo de que apenas a partir de 1965 os negros americanos ganharam efetivamente o direito ao voto e o direito ao sufrágio feminino na Suíça foi permitido apenas em 1971. No entanto, o que a evidência empírica mostra a respeito dos impactos do modelo institucional político do Ocidente sobre o desenvolvimento dos países? Seria o caso da China uma exceção?

Em um influente artigo de 2019, publicado no Journal of Political Economy, Daron Acemoglu, Prêmio Nobel de Economia do ano passado, com colaboradores, investiga, em uma amostra de 175 países, exatamente como a democracia liberal influenciou o progresso econômico dos países.

Usando diferentes técnicas estatísticas, os economistas estimam o impacto sobre a economia da expansão deste modelo ao redor do mundo entre 1960 e 2010. As estimações corroboram a hipótese de que a democracia liberal impulsionou positivamente o desenvolvimento econômico dos países. Os resultados indicam que, na média, um país que fez a transição para este modelo, no período analisado, alcançou uma renda per capita aproximadamente 20% maior no longo prazo do que um país que permanece sob um regime centralizado.

Os pesquisadores mostram ainda que a democracia liberal contribui para o crescimento ao aumentar o investimento, incentivar reformas econômicas estruturais, melhorar a educação, a saúde e reduzir a instabilidade social. Portanto, os resultados corroboram a hipótese de que o modelo ocidental prevalecente proporcionou estabilidade institucional e ajudou em reformas que incentivaram a provisão de bens públicos.

E quais são as lições para o Brasil? Segundo a Polícia Federal (PF), há fortes indícios de que o ex-presidente Jair Bolsonaro orquestrou um golpe de Estado após a eleição do presidente Lula em 2022. A investigação da PF tem provas de que reuniões foram realizadas no Palácio do Planalto e na residência oficial da Presidência para discutir estratégias para reverter o resultado da eleição de 2022. Conversas gravadas e depoimentos de comandantes do Exército estão sendo utilizados como provas contra o ex-presidente e alguns de seus aliados.

Sem entrar no mérito da operação “Hora da Verdade” da PF, uma pesquisa recente do instituto AtlasIntel mostrou que 36,3% dos brasileiros eram favoráveis a um golpe de Estado após o segundo turno das eleições presidenciais de 2022, quando o presidente Lula derrotou Jair Bolsonaro. Esse número é parecido com a entrevista de 10 de janeiro de 2023, dois dias após a invasão e depredação da sede dos Três Poderes em Brasília. Nesta entrevista de 2023, 36,8% das pessoas apoiavam um golpe de Estado no Brasil.

Em um trabalho recente que realizei com Pedro Cavalcanti Ferreira, Filipe Fiedler, Luciene Pereira e Cezar Santos, investigamos, por meio de um modelo econômico em que os indivíduos votam na distribuição dos gastos públicos em educação nos diferentes níveis de ensino, como a restrição ao voto influenciou profundamente a nossa história. Mostramos que, se o sufrágio universal tivesse sido implementado no início do século XX, em vez do final dos anos 1980, teríamos investido uma parcela significativamente maior dos nossos gastos educacionais no ensino fundamental e médio, em detrimento do ensino superior. Nesse caso, a extrema pobreza estaria praticamente extinta em 1960, enquanto, ainda hoje, mais de 20% da população do país vive em condições de extrema pobreza.

Alguns pensadores argumentam que a democracia liberal tem um valor intrínseco. Alexis de Tocqueville, influente no pensamento liberal americano, afirmou no século XIX que a liberdade individual e a igualdade de condições na política são princípios fundamentais deste modelo. A liberdade de expressão e a descentralização administrativa são, para o pensador francês, essenciais para preservar a institucionalidade e garantir a prosperidade social e econômica a longo prazo. O trabalho empírico de Acemoglu com coautores sustenta fortemente esta hipótese.

Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia de 1998, afirmou, em artigo de 1999, que, em um futuro distante, as pessoas terão dificuldade em não considerar a democracia liberal como a forma de governança preeminentemente aceitável. Dado o percentual de apoio ao golpe de Estado no Brasil, parece que a previsão do Prêmio Nobel de Economia de 1998 ainda está longe de ser concretizada.

Diplomacia equivocada - Aristoteles Drummond (Hoje em Dia)

Diplomacia equivocada

Aristóteles Drummond

Hoje em Dia, 24 de fevereiro de 2025

https://www.hojeemdia.com.br/opiniao/opiniao/diplomacia-equivocada-1.1054504

 

O Brasil construiu desde o Império até o mandato de Fernando Henrique Cardoso um forte prestígio internacional com base na qualidade de seus diplomatas e da orientação sábia que, no final do Império e início da República, se deve ao patrono da carreira, o Barão do Rio Branco.

Normalmente o alto conceito do nosso diplomata maior é atribuído aos acordos que fixaram com habilidade e competência nossos limites com os vizinhos e vivermos sem nenhum problema na questão, como é comum em quase todos os países sul-americanos. Foi o talento do barão, mas foi também o prestígio que tinha no mundo, entre as grandes nações que garantiu a credibilidade de seus pareceres, alguns acolhidos em fóruns internacionais ou na mediação de outros países. Mas foi mais do que isso.

A personalidade admirada e respeitada permitiu que o Barão exercesse importantes postos sem abrir mão do título recebido do Imperador, do qual muito se orgulhava.

Entre as diretrizes legadas aos nossos diplomatas, estava a recomendação de que deveríamos sempre priorizar as relações com o Prata – Argentina, Uruguai e Paraguai – e com Washington. No mais, evitar tomar partido em litígios entre nações amigas. Como a seu tempo não havia Internet, nem aviões intercontinentais, achava a Europa importante, mas muito distante para ter prioridade em relação aos vizinhos e ao grande aliado do norte.
Um olhar sobre os quadros do Itamaraty desde sempre impressiona pela qualidade, pela presença de gerações da mesma família no serviço diplomático e nos homens que marcaram sua época, formados ou com passagem ocasional relevante no Ministério das Relações Exteriores. São casos de não diplomatas, como General Dionísio, Oswaldo Aranha, Raul Fernandes, Francisco Negrão de Lima e Vicente Rao; todos brasileiros relevantes. E as famílias com gerações na Casa de Rio Branco, como os Mello Franco, Thompson Flores e Corrêa do Lago.

A Academia Brasileira, desde sua fundação com Joaquim Nabuco, e Domício da Gama, teve na sua composição pelo menos dez por cento de diplomatas, alguns entre os maiores de seu tempo em outras áreas, como o caso de Roberto Campos.

No mais, muitos de nossos diplomatas tiveram importância nos postos bem maior do que as do nosso país. Luís de Sousa Dantas, por exemplo, em Paris, onde foi embaixador por 22 anos, tem placa de reconhecimento na cidade.

Logo, esse alinhamento com o eixo Moscou-Pequim, essa militância antiamericana, essa absurda crise com Israel, que sempre distinguiu o Brasil e os brasileiros, foge à tradição da nossa diplomacia e à formação de nossos diplomatas, até bem pouco tempo recrutados nos melhores meios acadêmicos e culturais do país.

Uma pena a destruição deste patrimônio com tradição na nossa história. 

 

Aristóteles Drummond

É jornalista e presidente da Associação Comercial do Estado do Rio de Janeiro.

RETORNO AO FUTURO: A Ordem Internacional no Horizonte 2000 (1988) - Paulo Roberto de Almeida

RETORNO AO FUTURO: A Ordem Internacional no Horizonte 2000

 

Paulo Roberto de Almeida *

Trabalho apresentado no Seminário de Estudos “Europa e Brasil no limiar do ano 2000”, do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (Lisboa, 3-5/11/1988)

Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro: Ano XXXI, 1988/2, n. 123-124, pp. 63-75). Relação de Trabalhos n. 164; Relação de Publicados n. 049. Disponível em Academia.edu (https://www.academia.edu/128029204/164_Retorno_ao_Futuro_A_Ordem_Internacional_no_Horizonte_2000_1988_).

 

 

Sumário:

1. Profecia e História

2. O Declínio Imperial

3. Do Poder Soberano à Soberania Econômica

4. A Transição do Socialismo ao Capitalismo

5. O Fim da Guerra Fria

 

 

1. PROFECIA E HISTÓRIA

        As análises prospectivas, segundo seus críticos, têm o hábito de pecar duplamente: pelo que contêm e, também, pelo que deixam de conter. Trata-se, aparentemente, de um "pecado original" da futurologia, partilhado em igual medida pelas diversas variantes do gênero. Quer abordando o futuro pela ótica estatística e quantitativa, quer fazendo-o segundo os padrões do ensaio interpretativo, muitas dessas análises tendem a atribuir importância desproporcional a elementos secundários ou, inversamente, a negligenciar fatores potencialmente estratégicos.

        Em qualquer hipótese, porém, elas frequentemente revelam-se incapazes de impedir sua própria esclerose precoce quando confrontadas, alguns anos depois, à realidade que supostamente deveriam descrever. O processo de envelhecimento é ainda mais rápido quando o cenário projetado pretende prevenir a eclosão (ou alertar sobre a intervenção) de riscos e catástrofes considerados "iminentes": colapsos nas bolsas de ações, crise financeira mundial, revolução no mercado dos produtos de base ou - por que não? - eclosão da Terceira Guerra Mundial. Mesmo análises mais bem comportadas de trends futuros costumam revelar-se doucement naïves quando o futuro bate à porta. A razão é ao mesmo tempo uma pergunta: modelos econométricos, projeções de computador ou induções geniais terão algum dia o poder de antecipar, em todos seus detalhes, o caminho que tomará o carro de Cronos?

        O curto "ciclo de vida" da maior parte das análises prospectivas não é apenas devido às deficiências metodológicas intrínsecas a toda projeção futura de tendências do presente. É preciso referir-se também a um defeito mais grave, ainda que mais prosaico: os exercícios de futurologia soem constituir uma fixação inconsciente (e muitas vezes arbitrária) dos preconceitos políticos e das preferências pessoais de seus autores. O uso "adequado" da imaginação permite quase sempre, aos que se dedicam a essa espécie de "leitura das estrelas", acomodar estimativas contraditórias sobre a evolução das sociedades, quando não imaginar cenários políticos fantasiosos com base em forças e tendências conjunturalmente dominantes. 


(...) 

* Paulo Roberto de Almeida é diplomata brasileiro, atualmente servindo na Delegação em Genebra.  As opiniões expressas no presente artigo representam exclusivamente as de seu autor e não podem ser interpretadas como reproduzindo, no todo ou em parte, qualquer posição do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro. 


Ler a íntegra deste ensaio, historicamente datado, neste link: 

 https://www.academia.edu/128029204/164_Retorno_ao_Futuro_A_Ordem_Internacional_no_Horizonte_2000_1988_


Um ornitorrinco no Itamaraty (2020) - Paulo Roberto de Almeida

 Reproduzindo algo que nos envergonhou durante um largo parêntese deprimente no Itamaraty: 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Um ornitorrinco no Itamaraty - Paulo Roberto de Almeida

 Alguns questionaram a capa de uma coletânea de "crônicas" de cronista misterioso, sobre o Itamaraty bolsolavista, cujo animal representado, o ornitorrinco, não figura em nenhuma das crônicas do nosso resistente do Itamaraty. 

A ilustração tinha sido feita para eventualmente ilustrar a capa de meu livro, a partir de um de seus capítulos, mas que acabou adotando outro título: O Itamaraty num labirinto de sombras. 

Abaixo reproduzo o artigo original, que não deixa de ser uma espécie de distinção, pois que esse animal é o mais estranho de todos, como pode acontecer em outros habitats, com certos seres bizarros...

Paulo Roberto de Almeida

Um ornitorrinco no Itamaraty

 

Paulo Roberto de Almeida

 

O ornitorrinco – nome científico: ornithorhyncus anatinus; em inglês, duckbilled platipus; em francês, ornythorinque; em alemão, Schnabeltier; em grego, platypodas – é um animal absolutamente único na natureza: mamífero, como os primatas, exibe, no entanto, um bico de pato, sendo, como esta ave, um palmípedo, o que já estava evidente pelo seu nome em grego. Os ornitorrincos vivem em paragens distantes do resto do mundo, botam ovos, mas alimentam os seus descendentes, não pelo leite extraído de mamilos, mas por meio de glândulas. A despeito de se parecer com um castor, o ornitorrinco não possui dentes, e não usa os sentidos tradicionais para caçar o seu alimento – olfato, audição ou visão – e sim por meio de vibrações elétricas, o que fica evidente por certo tremelicar no comportamento desse animal bizarro. 

Eles têm certa dificuldade em caminhar, apesar dos pés de pato, o que os leva a passar a maior parte do tempo enfurnados em alguma caverna, que constroem para si mesmos. Com toda a sua aparência inocente, ele pode ser um animal perigoso, pois tem um veneno terrível nos esporões de suas patas, o que é suficiente para matar outros pequenos animais. Mais curioso ainda, o ornitorrinco não possui estômago, o que os cientistas acreditam ser o longo resultado do processo evolutivo, o que acabou criando uma ligação direta entre o esófago e o intestino; tem também uma pele impermeável, o que o habilita a conviver em diferentes ambientes sem problemas aparentes, entre a terra e a água, com desenvolturas diferentes em cada um desses meios.

Na classificação zoológica, trata-se da única espécie de seu gênero, sendo ainda monotípica, ou seja, não tem subespécies ou variedades reconhecidas. Os cientistas ocidentais, no século XVIII, ao receberem um primeiro exemplar, trazido por visitantes da distante Austrália, pensaram tratar-se de uma fraude, ou seja, um animal semelhante a um castor, ao qual tinha sido costurado um bico de pato, e por isso, um desses cientistas denominou-o de Ornithorhynchus paradoxus. Verificou-se também que sua temperatura média era de apenas 32 graus, bem abaixo dos 37 normais nas espécies placentárias. O fato de ser um dos poucos, talvez o único dos mamíferos venenosos o torna, uma vez mais um animal absolutamente estranho entre os membros do seu gênero dos monotremados. 

Será que ele se sente solitário na natureza, pois que diferente de todos os outros animais? Provavelmente, mas ele não deve discutir esse tipo de questão filosófica. Em todo caso, para o que nos interessa, o Brasil do presidente Bolsonaro também é um país solitário no mundo, praticamente sozinho em determinadas políticas que o fazem sentir-se como um continente à parte, à deriva dos demais, talvez uma jangada de pedra, à maneira de José Saramago. Vive uma fase de transformações culturais que poderia ser apropriadamente chamada de EA, a Era dos Absurdos. Nada é tão mais conforme a essa designação do que a sua política externa e a sua diplomacia, aparentemente sob a condução, mas apenas aparente, de Ernesto Araújo. Ele é o verdadeiro ornitorrinco num governo feito de vários outros animais estranhos. 

Registre-se que as bizarrices começaram antes mesmo da posse do governo, pois que o chanceler, em plena campanha presidencial – o que, em princípio, deveria refrear ardores políticos de funcionários de Estado –, já deblaterava, num blog simbolicamente chamado Metapolítica 17: contra o globalismo, contra colegas que teriam se deixado seduzir pelo marxismo, o petismo, pelo esquerdismo, de modo geral. Depois de algumas décadas de carreira, ele já deveria ter aprendido que os diplomatas não são marxistas ou esquerdistas, e sim carreiristas, embora alguns sejam oportunistas (como, aliás, ele próprio, que se forjou uma identidade olavista para conquistar o cargo). Levantou sua lança contra o multilateralismo, contra um desconhecido “climatismo”, contra um mais estranho ainda “comercialismo”, mas sobretudo – para satisfazer o guru expatriado da Virgínia que o empurrou para cima – contra essa paranoia de conspiracionistas malucos que se chama “globalismo”, o que é propriamente estarrecedor para um diplomata. 

Desde o primeiro dia do governo, antes mesmo de assumir formalmente, já tinha declarado seu servilismo ao império, apoiando a instalação de uma base dos EUA no Brasil, no que foi imediatamente rechaçado pelos militares. Depois da posse – em latim, grego e tupi-guarani, sem expor sua “política externa para o povo” –, eles continuaram a controlar seu ímpeto adesista na tentativa de juntar-se ao projeto eleitoreiro de Trump, de forçar uma mudança de regime na Venezuela, incorporando o vice-presidente Mourão numa das reuniões do Grupo de Lima, para obstar qualquer aventura militar contra a ditadura chavista. Mas ordenou a imediata retirada do Brasil do Pacto Global das Migrações, uma imitação canhestra da postura xenófoba de líderes de extrema direita, quando esse acordo não ameaça em nada a “soberania” de um país que possui muitos mais emigrantes do que imigrantes. A suprema bizarrice foi atribuir ao asfalto a elevação dos termômetros usados pela “turma” do aquecimento global. Essa foi forte!

Uma obsessão doentia por agradar o seu chefe fez com que ofendesse o então candidato nas primárias argentinas, ambos alertando contra a emigração maciça dos hermanos ao Brasil se ganhasse a “esquerdalha”. O chefe, por sua vez, conseguiu brigar contra importantes chefes de governo da Europa, com a retirada de importantes suportes financeiros a programas de sustentabilidade ambiental e mais de uma vez a ministra da agricultura teve de amenizar posturas dos dois que ameaçavam as relações comerciais com a China e com países muçulmanos. Outro exemplo recente foi mais uma tentativa de agradar o chefe ao pretender demonstrar que a “maioria” do G20 não aplica políticas de isolamento na luta contra o Covid-19, o que eventualmente pode torná-lo cúmplice de uma das mais temerárias atitudes de um chefe de Estado no mundo. Ian Bremmer, do Eurasia Group, chegou a dizer que, perto de Bolsonaro, Trump parece um Churchill. 

Se esse é o critério, o ornitorrinco do Itamaraty tem como padrão o chanceler do governo militar Juracy Magalhães, para quem “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Na verdade, a Casa de Rio Branco não conhece precedentes ao estranho animal que intimida pela truculência os colegas diplomatas...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 29 de março de 2020

Que país é este? – Affonso Romano de Sant’Anna (via Maurício Dias David)

 POEMA DE HOJE – Que país é este? – Affonso Romano de Sant’Anna

(grato a Maurício David, pela transcrição)

 

Que país é este? – Affonso Romano de Sant’Anna

Poucas vezes um poema explicou tão bem um país e poucas vezes um poeta explicou tão bem o seu poema… Excepcionalmente, não colocamos o poema todo, apenas as duas primeiras partes das sete de que ele se compõe.

 

QUE PAÍS É ESTE? [1980], Affonso Romano de Sant’Anna


1
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.

Uma coisa é um país,
outra um regimento.

Uma coisa é um país,
outra o confinamento.

Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno “Avante”
— e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso”
e éramos maiores em tudo
— discursando rios e pretensão.

Uma coisa é um país,
outra um fingimento.

Uma coisa é um país,
outra um monumento.

Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.

Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca da especiosa raiz? ou deveria
parar de ler jornais
e ler anais
como anal
animal
hiena patética
na merda nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
comendo o que as traças descomem
procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso
que nos impeliu a errar aqui?

Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos
nacionais, como qualquer santo barroco
a rebuscar
no mofo dos papiros, no bolor
das pias batismais, no bodum das vestes reais
a ver o que se salvou com o tempo
e ao mesmo tempo
– nos trai


2

Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.

Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.

Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.

Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,

semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,

sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,

vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,

senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,

bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,

a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,

cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,

pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.

Este é um país de síndicos em geral
este é um país de cínicos em geral
este é um país de civis e generais.

Este é o país do descontínuo
onde nada congemina

e somos índios perdidos
na eletrônica oficina

Nada nada congemina:
a mão leve do político
com nossa dura rotina,

o salário que nos come e
nossa sede canina,

e a esperança que emparedam
a nossa fé em ruína,

nada nada congemina:
a placidez desses santos
e a nossa dor peregrina,

e nesse mundo às avessas
– a cor da noite é obsclara
e a claridez, vespertina.

 

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Memória

Escritor Affonso Romano de Sant'anna morre aos 87 anos

PublishNews, Redação, 05/03/2025

Com mais de 60 livros publicados, Affonso sofria de Alzheimer desde 2017 e foi casado com a também autora Marina Colasanti

Rubens Paiva continua aqui – Elio Gaspari (O Globo)

 quarta-feira, 5 de março de 2025

Rubens Paiva continua aqui – Elio Gaspari

O Globo, 5/03/2025


Com Walter Salles empunhando o Oscar, ouve-se Guimarães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas (...) O mundo é mágico”

 

Os oficiais que, em janeiro de 1971, prenderam, espancaram e mataram Rubens Paiva podiam tudo. Tanto podiam que empulharam o país por décadas, impingindo-lhe uma patranha, segundo a qual ele havia sido resgatado por parceiros. Perderam. Nos últimos minutos do domingo, “Ainda estou aqui” levou o Oscar de Melhor Filme Internacional.

Perderam para a memória de Eunice Paiva, sua viúva, para o livro escrito por seu filho, Marcelo, para a arte de Walter Salles, para Fernanda Torres e a equipe do filme. Perderam para a memória dos povos, num momento em que o Brasil se uniu numa torcida semelhante à das vitórias da seleção brasileira de futebol. Podiam tudo — e perderam.

Rubens Paiva estava na cerimônia do Oscar, num momento em que os Estados Unidos vivem um mau momento, mas a memória dos povos prevalece, muitas vezes com a arte. Nessa hora, vale lembrar o comportamento de dois diplomatas americanos naqueles dias: John Mowinckel e Richard Bloomfield, ambos lotados na embaixada, no Rio.

Mowinckel era expansivo e tinha um passado incrível. Em 1944, desembarcou na Normandia e, em junho, num jipe com o escritor Ernest Hemingway, entrou em Paris. Horas depois, ele libertou o hotel Crillon, e o outro tomou o bar do Ritz. No Rio, Mowinckel era figura fácil em boas festas e servia consomê gelado com uísque na sua barraca na praia de Ipanema, em frente ao Country Club.

Bloomfield, calvo e reservado, cuidava dos assuntos econômicos da embaixada. Uma das filhas de Rubens Paiva telefonou-lhe, contando que o pai havia sido preso. Em 2005, ele recordaria sua reação: “Eu respondi que era um diplomata e não podia fazer nada. Até hoje lembro a decepção dela. Eu não podia fazer outra coisa”.

Mas fez. No dia seguinte, procurou o chefe da estação da CIA no Rio e contou-lhe o caso. “É tarde”, ouviu. A CIA sabia que Rubens Paiva estava morto. No dia 8 de fevereiro, quando o Exército sustentava que Rubens Paiva havia fugido, ele encontrou-se com Eunice Paiva e relatou a conversa num memorando ao embaixador William Rountree.

Três dias depois do encontro de Bloomfield com Eunice, Mowinckel escreveu a Rountree dizendo que “algo deve ser feito para punir ao menos alguns desses responsáveis — punir por julgamento público”. Pelo lado americano, depois da eleição de Jimmy Carter, em 1976, o jogo virou.

Pelo lado brasileiro, até hoje, nada, salvo o constrangimento imposto ao general reformado José Antônio Belham. Como major, ele comandava o DOI do Rio, onde Rubens Paiva foi assassinado. Há uma semana, militantes do Levante Popular da Juventude foram para a porta de sua casa com a palavra de ordem “Ainda Estamos Aqui”.

Bloomfield e Mowinckel nada podiam fazer porque Rubens Paiva estava morto e também porque a embaixada americana tinha relações fraternais com a tigrada, valendo-se de seu braço militar. Tão fraternais que, em dezembro de 1971, ao visitar os Estados Unidos, o presidente Emílio Médici fez um único pedido ao colega Richard Nixon: a promoção a general do adido militar, coronel Arthur Moura, um americano de ascendentes açorianos. Foi atendido.

Com Walter Salles empunhando o Oscar, ouve-se Guimarães Rosa: “As pessoas não morrem, ficam encantadas (...) O mundo é mágico”.


A War Built on Fiction: China’s Baseless Claim over Taiwan - Miles Yu (The Washington Times)

A War Built on Fiction: China’s Baseless Claim over Taiwan

Washington has never acknowledged China’s “one-China principle.”

Miles Yu

The Washington Times

For decades, the Chinese Communist Party has pushed the tired claim that Taiwan is an inseparable part of China and that the U.S. has somehow pledged to endorse this fantasy. But this argument falls apart under even the slightest scrutiny. It has no real historical, legal, or factual legitimacy.

The CCP’s justification for its aggression toward Taiwan is nothing more than smoke and mirrors — held up by brute force, propaganda and diplomatic intimidation.

Despite Beijing’s constant drumbeat about Taiwan being a “renegade province,” the truth is simple: The People’s Republic of China has never ruled Taiwan. Not for a single day.

Since 1949, Taiwan has operated under the governance of the Republic of China (ROC), commonly known as Taiwan. The CCP has never controlled its land, its people or its institutions.

And the so-called “Taiwan independence movement” that Beijing rails against? It’s a bogeyman created to justify its own expansionist ambitions.

Taiwan’s government — across all political lines — has consistently upheld that Taiwan is a fully functioning, self-governing, democratic nation. Taipei doesn’t need to declare independence because it already is an independent state: the Republic of China in Taiwan. With an elected leadership, a thriving economy and a military that will defend its sovereignty, Taiwan is a nation in every meaningful sense, no matter how much Beijing fumes about it.

The CCP likes to claim that Washington supports its “One-China Principle” through what are known as “The Three Communiques.” But that’s just not true. Washington has only ever acknowledged that China makes this claim — it has never agreed with it.

The U.S. position remains firmly rooted in the Taiwan Relations Act and “Six Assurances” given to Taipei, which explicitly reject any recognition of Chinese sovereignty over Taiwan. These policies also affirm America’s commitment to Taiwan’s defense.

The message is clear: Taiwan’s future must be determined peacefully, through mutual agreement, and without coercion. If China tries to take Taiwan by force, it will be violating international norms and threatening global stability.

To justify its claim, Beijing plays fast and loose with history, pointing to past Chinese dynasties as proof that Taiwan belongs to China. But history doesn’t work that way.

Taiwan’s past rulers have included the Dutch, Spanish, Japanese, and, at times, certain Chinese regimes. If ancient history were the standard for sovereignty, China would have to answer for its own long periods of foreign rule by the Mongols and Manchus.

The modern world defines sovereignty based on international law and self-determination — not cherry-picked historical claims. And Taiwan’s 23 million citizens have made their stance abundantly clear: They reject CCP rule.

Beijing also contends that its pursuit of Taiwan is about protecting China’s territorial integrity, but its own actions betray this claim. Since 1949, China has voluntarily ceded vast swaths of land to other ideologically aligned nations, including communist Russia and Mongolia, without making a fuss.

If territorial unity were really the goal, why didn’t China fight for those lands? The truth is, the CCP’s Taiwan obsession isn’t about sovereignty.

China’s own diplomatic history is riddled with contradictions. It refuses to acknowledge “One China, One Taiwan,” yet it had no problem recognizing both East and West Germany. It ignored its impoverished ally North Korea to recognize South Korea in 1992. These inconsistencies reveal the CCP’s foreign policy for what it is: sheer opportunism.

At its core, China’s aggression toward Taiwan isn’t about national unity — it’s about undermining the U.S. and the global democratic order. The CCP views itself as locked in an ideological battle with the free world, with America as its main adversary. Taiwan, a thriving democracy, a crucial player in global commerce and tech revolution, and a key U.S. partner, stands as a direct challenge to Beijing’s authoritarian model. That’s why the CCP is so determined to bring it under control.

Time and again, the CCP has deliberately escalated tensions in the Taiwan Strait to pressure the U.S. and boost its own global influence.

From the artillery bombardments of Taiwan-controlled islands in the 1950s to the 1995-96 missile crisis and today’s near-daily military provocations, China has repeatedly tested Washington’s resolve. Each crisis has had the same goal: to undermine U.S. credibility and weaken its commitment to Taiwan and the broader democratic order in Asia.

Today, China is still playing the same game — using military intimidation to push the U.S. into a weaker negotiating position. By ramping up tensions around TaiwanChina hopes to coerce Washington into backing off its support for Taipei and, in turn, weakening its global leadership.

But there’s another more calculated motive: Taiwan’s world-leading semiconductor industry. Taiwan is home to giants like TSMC, which dominates high-end microchip production — an industry the entire global economy depends on. If China seizes control of Taiwan, it wouldn’t just be a blow to democracy. It would give Beijing a stranglehold over a critical technology sector, accelerating its march toward global dominance.

China’s aggression isn’t about preserving national unity — it’s about stopping an alternative Chinese identity from thriving beyond the CCP’s control.

Taiwan is living proof that a Chinese society can be free, prosperous, and democratic without the CCP’s iron grip. That’s why Taiwan matters—not just to its own people but to the world.

Read in The Washington Times.


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