domingo, 16 de março de 2025

Marcelo Guterman revisita o calote de Collor

 

35 anos do confisco

16 de março de 1990. Há exatos 35 anos, após a posse festiva do primeiro presidente eleito por voto popular desde a eleição de Jânio Quadros, em 1960, todos aguardavam a “bala de prata” que Collor tinha na agulha para matar o “tigre da inflação”.

Escaldados por nada menos do que 4 planos de estabilização de preços nos 4 anos anteriores (Cruzado, Cruzado 2, Bresser e Verão), os brasileiros sabiam que viria algum tipo de congelamento de preços. Por isso, os empresários correram para se proteger, remarcando os preços preventivamente. A inflação, que já vinha alta durante o melancólico fim do governo Sarney, explodiu no início de 1990 (vide gráfico). Atenção crianças, os números se referem à inflação MENSAL, não anual.

No final, o congelamento de preços veio, mas foi o de menos: durou apenas 45 dias, só para dar tempo de organizar a bagunça. Ao contrário do Cruzado, o Plano Collor tinha outra coluna vertebral: o confisco do dinheiro.

A ideia é um entendimento literal do monetarismo: a inflação é causada pelo excesso de dinheiro perseguindo poucos bens e serviços disponíveis. Assim, se não houver meio circulante suficiente, a inflação morre por asfixia. É mais ou menos como acreditar que Deus literalmente fez o mundo em 6 dias, e descansou no sétimo: entende-se a alegoria como uma descrição literal da realidade.

No caso do monetarismo tupiniquim, os idealizadores do Plano Collor viam o meio circulante como uma realidade em si, e não como a tradução de fenômenos micro e macroeconômicos. Acabar com a disponibilidade de moeda sem acabar com o fenômeno que, no final, exige a criação de mais moeda, é o equivalente a esvaziar a bacia e colocá-la de volta debaixo da torneira: será uma questão de tempo para que encha e transborde novamente. No Plano Collor, a alegoria trocou de lugar com a realidade.

O principal problema do Plano Collor, no entanto, não foi o diagnóstico incorreto do fenômeno inflacionário. Os sucessivos congelamentos anteriores também erraram no diagnóstico, mas seus efeitos no tempo desapareceram, restando apenas o folclore de um tempo ingênuo em que acreditávamos que as maquininhas de etiqueta de preços eram as grandes responsáveis pela carestia. Na verdade, se algum efeito de longo prazo houve, foi benéfico: depois dessas experiências, poucos brasileiros ainda acreditam que congelamento de preços resolve alguma coisa. Este foi, sem dúvida, um avanço civilizatório.

O grande problema do Plano Collor foi demonstrar que o governo pode fazer qualquer coisa impensável, inclusive confiscar a sua poupança. Fernando Collor, ao aprovar o plano, certamente não pensou no tipo de mensagem que estaria deixando para as gerações seguintes. Uma parte do prêmio que o governo é obrigado a pagar para emitir a sua dívida é justamente o receio de que, no futuro, alguém poderá fazer o mesmo. Afinal, por que não?

O Plano Collor tinha como objetivo “enxugar a liquidez” da economia. No entanto, indiretamente, significou um calote da dívida pública. 80% de todo o dinheiro aplicado no overnight e fundos de investimentos (que financiava o déficit público) ficou retido, e seria devolvido 18 meses depois, em 12 suaves prestações, corrigidas pela inflação mais 6% ao ano de juros. Tratava-se de um alongamento do prazo da dívida e mudança na remuneração, uma forma clássica de dar um calote.

Os que defendem a tese de que a dívida pública doméstica não pode ser objeto de calote, esquecem-se do Plano Collor, que fez exatamente isso. Collor decidiu trocar uma hiperinflação (que é o resultado de finanças públicas completamente fora de controle) por um calote. Ambos têm o mesmo efeito, reduzir a dívida pública impagável.

O Plano Collor foi acompanhado de medidas louváveis, eclipsadas que foram pelo confisco: extinção de 24 estatais, redução ou eliminação de impostos de importação, liberalização do câmbio, medidas gerais de redução do Estado. Collor foi um Milei on stereoids: além de adotar a mesma agenda liberalizante do argentino, fez o confisco. Talvez se tivesse começado somente pelo lado liberalizante, seu governo tivesse alguma chance de ter dado certo. Seu voluntarismo além de todas as medidas o derrotou.

É simbólico que o primeiro dia do primeiro presidente democraticamente eleito no Brasil em 30 anos tenha sido marcado por um calote. Nada representa mais a nossa atávica dificuldade em respeitar instituições.

Blog do Marcelo Guterman é uma publicação apoiada pelos leitores. 



A intencionalidade do mal: uma digressão sobre Trump - Paulo Roberto de Almeida

A intencionalidade do mal: uma digressão sobre Trump

Paulo Roberto de Almeida

A famosa reportagem de Hannah Arendt na New Yorker sobre o julgamento de Eichmann em Israel, a propósito do qual ela foi muito criticada por inventar o duvidoso conceito de “banalidadade do mal” para o reles funcionário da máquina de matar nazista, responsável pelo Holocausto, decididamente não se aplica a Donald Trump, seja como pessoa, seja como magnata venal, seja como presidente acidental.

Em Trump nada é banal, nada é corriqueiro ou ocasional, tudo é intencional e todos os seus gestos foram devidamente (mal) calculados.

Ele não cumpre ordens, como o vulgar burocrata nazista o fazia. Eichmann era certamente um dedicado servo da máquina nazista de matar e a ela se aplicou com zelo, talvez até por gosto, pois fazia parte de um grande e racional empreendimento, concebido exatamente para aquela finalidade.

Trump faz o mal com gosto, apuro e intencionalidade. Ele tem uma forte necessidade, íntima, deliberada, irresistível, de chocar, de provocar, de provar que pode fazer, ordenar e executar tudo o que está fora dos padrões habituais da sociedade americana. Ele precisa mostrar que é poderoso e provar, de uma vez por todas, mais do que da primeira vez (inconformado com a rejeição de 2020), que é capaz de chocar e de confrontar as elites habituais, políticas, empresariais, intelectuais, que ele é quem manda, e para isso tem de desmantelar o que existe e de oferecer seus mais loucos desejos.

Nada foi mais revelador de sua personalidade doentia do que o vídeo feito por IA sobre a Riviera trumpista que seria construída na Faixa de Gaza, enfim limpa e liberta dos “resíduos” palestinos: dinheiro jorrando do céu, garotas de programa, luxúria, prazer e esbórnia de mau gosto, tudo o que parece conforme à personalidade vulgar do mentecapto que chegou aonde queria. (A ajuda de Putin foi preciosa e providencial.)

Não, Trump ainda não terminou sua obra, e nada nela será banal, como não pode ser banal a construção do mal. Trump é um personagem de romance distópico, mas nem Orwell poderia ter imaginado o enredo.

Será único na história dos Estados Unidos e de grande parte da comunidade internacional. 

O mundo não será como antes, em face da não-banalidade do mal que Trump está e continuará causando, antes de tudo e de todos para a pobre Ucrânia e para os ucranianos. 

Paulo Roberto Almeida

Brasília, 16/03/2025


O Furacão Trump na escala 5 - Fernando Dourado Filho e Paulo Roberto de Almeida

Family business e outras

Fernando Dourado Filho

“1 - Não sou expert nas relações sinistras de Trump com Moscou, e jamais imaginei que elas pudessem incluir uma espécie de perdão por uma brutal investida russa no território ucraniano.

2 - Conheço bem a Rússia que Trump descobriu quando lá esteve, no período da Glasnost e da Perestroika de Gorbachev. O que viria pela frente seria apetitoso para sua lendária voracidade. 

3 - Apetitoso porque para um empreendedor de perfil predatório como ele, os desmandos da era Yeltsin ofereciam um momento propício para seus devaneios. Sob o czar bêbado, tudo era possível. 

4 - Ora, de par com um falcão local certo, ele poderia erguer a sonhada torre com seu nome na capital do velho império. Daí as viagens sucessivas que fez à Rússia com Ivanka, a tcheca primeira mulher.

5 - A criação desses laços legítimos num homem de negócios, cujo lado hedonista está fartamente documentado e, evidentemente, de posse de Putin, fizeram de Trump um joguete nas mãos do Kremlin. 

6 - Como sabido, a Torre Trump ainda não saiu. Mas a idéia não o abandonou. Sem medo de fazer da presidência um family business, Trump se obstina febrilmente em ir atrás do sonho. 

7 - Socorrido por Investidores russos para se livrar de uma quebra iminente,  para Donald tudo é simples: catapultar negócios às expensas do cargo é natural, ele releva quaisquer conflitos de interesse. 

8.- Agora o jogo está escancarado. Para ele, Putin significa centenas de bilhões em oportunidades para os americanos - incluindo seu grupo. Por que se importar com a Ucrânia e o Donbass? 

9 - Putin não poderia ter recebido presente maior do que a investidura de um rematado pateta em Washington. Jogando a OTAN às calendas e rearmando a Europa, Trump quer ser o pacificador.

10 - Casado agora com uma eslovena, tudo o que lhe interessa é ressuscitar a velha agenda e retomar negócios com o gigante que virou pária por uns tempos. Business First, reza a etiqueta dele. 

11 - Dizer que o jovem Trump foi recrutado para Moscou nos idos dos anos 80, seria puxar demais o elástico. O KGB não admitiria narcisistas patológicos, por preciosos que fossem um dia.

12 - Mas algo de nostálgico calou fundo na alma rasa de Trump naquela visita, que foi além das orgias filmadas no hotel Ukraina. O perdão americano à Rússia é indecente. Putin só sorri.” (FDF)

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Nota PRA:


Trump não é um agente russo, ou melhor, do KGB de Putin, no sentido convencional do termo, como argumenta Fernando Dourado Filho. O KGB-FSB nunca confiaria num idiota ignorante e trapalhão como Trump, pois precisa de agentes “confiáveis”, resolutos e decididos, o que Trump notoriamente não é. Agentes de um serviço de inteligência podem ser ideologicamente motivados, o que não é o caso dele, ou fazer o serviço por dinheiro (o que poderia ser o seu caso), pessoas psicologicamente desequilibradas, frustradas com seu país ou sociedade, chantageadas por diversos motivos.

Não, Trump não é um simples agente; ele é algo muito pior: um grande idiota útil a serviço dos interesses russos e especificamente putinescos, por confusas motivações pessoais, devido a seu narcisismo exacerbado, sua ambição desmedida de provar à nata da elite política e empresarial americana, que no fundo sempre o desprezou, que ele poderia ser alguém que conseguiria deixar um profundo impacto na vida, nos negócios, no papel internacional do seu país, para assim passar à História como um grande homem (machista, obviamente), e parece estar conseguindo: está destruindo os EUA e o Ocidente como entidades dotadas de valores e princípios, para não colocar nada em seus lugares e papeis histórico-institucionais. Putin percebeu isso e o selecionou para ser uma joguete em suas mãos. Mas nem mesmo Putin poderia imaginar que o idiota dos anos 90 e início dos 2000 pudesse ir tão longe no trabalho de sapa e de desmantelamento de tudo o que havia de relevante nos EUA, na OTAN, no Ocidente. Trump é um bulldozer com comando parcial de Putin, mas este não precisa guiá-lo metodicamente como se faz com os agentes profissionais. Ele consegue fazer sozinho o trabalhos de vários bulldozers erráticos. Certamente vai entrar para a história universal da infâmia.


O impasse - Paulo Roberto de Almeida

 Os Democratas têm vergonha e não querem proclamar ao mundo que sua grande nação está sendo “dirigida” por um completo imbecil. 

Os Republicanos, que foram seduzidos e submetidos, tampouco querem admitir que deu tudo errado e que agora são caudatários de um idiota total.

Poucas vezes na história um país inteiro hesita em reconhecer que todos, absolutamente todos estão entregues a um cretino fundamental, o Grande Mentecapto.

Existe algum projeto, alguma ideia, behind the chaos? - Paulo Roberto de Almeida

Existe algum projeto, alguma ideia, behind the chaos?

Paulo Roberto de Almeida

Uma pergunta simples: qual mundo, exatamente, Trump pretende criar?

Os grandes vilões da História, os autocratas que provocaram grandes rupturas na ordem internacional, ou em seus próprios países, aqueles mataram milhões, em grandes guerras, guerras civis, massacres e repressões internas, possuíam projetos para as sociedades e os impérios que pretendiam criar, manter ou ampliar. 

Napoleão, Bismarck, os Habsburgos, os Hohenzollerns, Romanovs, Lenin, Stalin, Mussolini, Hitler, Mao, Putin, todos tinham grandes projetos, alguns escreveram copiosamente a respeito, até citando algum filósofo ou historiador de referência, ou seja, não eram apenas homens de guerra ou autocratas ignorantes, tinham lido, tinham livros.

Alguém sabe exatamente o que move Trump, alguma grande ou objetiva ideia atrás do MAGA, ele leu livros sobre a história americana, sobre a Europa, Rússia, China?

Alguém já ouviu pelo menos três frases, minimamente racionais, coerentes, com começo, meio e fim, sobre como e por que ele pretende implodir o mundo atual e criar um outro? Qual exatamente?

Não é nem a “destruição criadora” de Schumpeter, sobre quem ele nunca deve ter ouvido falar.

Anomia, entropia, buraco negro, ele também não tem a mínima ideia do que sejam. “Eu vim para destruir”, deve ser o slogan de sua bandeira!

Paulo Roberto Almeida

Brasília, 16/03/2025


Militares: os donos da República? - Guilherme Rodrigues

 Questões sobre a ordem militar

 

Por GUILHERME RODRIGUES*

O golpe de Estado aparece para as forças militares como apenas mais uma de suas atribuições, dada uma pretensa situação de “desordem” permanente em que a sociedade brasileira se encontra

 

Há uma colocação muito precisa feita por Heráclito Sobra Pinto a respeito dos militares brasileiras em que o jurista diz: “Tendo proclamado a República, [os militares] julgaram-se donos da República, e nunca aceitaram não serem os donos da República.” A colocação, popularizada hoje pelo podcast Medo e delírio em Brasília, não poderia ser mais precisa no que diz respeito ao pretenso papel que as forças armadas atribuíram a si mesmas desde o golpe de Estado que inaugurou a República em 1889.

Este foi, porém, apenas o primeiro de muitas tentativas de golpes, sendo que alguns foram de fato bem-sucedidos, afinal de contas, tal prática parece ser o modus operandi que tal facção armada da política brasileira usou durante cerca dos últimos 150 anos – chega a ser farsesco acompanhar esta história nos livros e teses que dissertaram sobre os militares no Brasil. Isso, contudo, não é tão cômico se nos lembrarmos o nível indescritível de violência que foi operado em tais atividades, para além de, claro, a prática cotidiana militar que é, em suma, violenta.

Ao tratar, portanto, dos militares no Brasil seria o caso de reiterar tal dado a todo momento, quer dizer, que sua tutela no Estado sempre foi feita com muita coerção, em todos os níveis imagináveis. E, tão alinhados à história da República, seria também o caso de recordar como seu pensamento está organicamente alinhado a uma certa veio positivista, que fez fama na intelectualidade brasileira na segunda metade do século XIX – não à toa o lema inscrito na bandeira da República: “ordem e progresso”.

Tal tradição viu com muito maus olhos toda e qualquer marca que pudesse ser associada ao passado do país, numa busca incessante por apagamento e esquecimento dos traços profundamente enraizados dos tempos coloniais — ainda que se saiba muito bem como tais marcas não somente subsistem até hoje, mas, em verdade, formam a profundidade e a superfície do tecido social. Os esforços de modernização dos positivistas levaram ao famoso bota-abaixo na cidade do Rio de Janeiro do início do século passado, destruindo lugares como o primeiro colégio de jesuítas de Manoel da Nóbrega (que ficava no extinto morro do Castelo) e a casa de Machado de Assis na antiga rua do Cosme Velho.

Mas não é só isso: as políticas de embranquecimento, junto às leis de vadiagem estavam todas atreladas a tal imaginário positivista de modernização, que carregava a militaresca “ordem” contra as tradições entendidas como selvagens, primitivas, bárbaras – que, em verdade, se associavam fundamentalmente às formas de vida das camadas mais vulneráveis da população, como os antigos escravizados e os indígenas.[i]

O uso da força brutal da coerção das massas se articula com o discurso eugenista, com as estruturas ideológicas deste positivismo; e a instituição das forças armadas, mergulhada completamente nesta formação, não somente adere ao pensamento como dá materialidade à ordem necessária para sua realização, a saber, o apagamento por meio do desaparecimento, assassinato, tortura, exílio, ocultamento de pessoas e tradições inteiras. O golpe de Estado aparece para as forças militares como apenas mais uma de suas atribuições, dada uma pretensa situação de “desordem” permanente em que a sociedade brasileira se encontra, pela presença ostensiva de grupos que tingem de manchas uma suposta unidade nacional que nunca existiu; o aparato militar usa de sua força armada, então, para empurrar goela abaixo uma ordem em nome de um progresso que avança por cima de pessoas, de histórias, de casas e de cidades inteiras.

Dos inúmeros exemplos que se pode levantar, gostaria de relembrar aqui o caso de Canudos, pela força pedagógica que a destruição do arraial da Bahia em 1897 tem em sentido de ilustrar tal atribuição dos militares; e, curiosamente, é um homem de formação positivista, num livro de estrutura e argumento positivistas que vai sugerir uma crítica profunda não somente aos militares em plena Primeira República, no calor do momento, mas à própria ideia de progresso, de civilização e de modernidade da qual sua própria obra bebe – Euclides da Cunha.

Não se trata de dizer que o argumento, a estrutura e o vocabulário d’Os sertões não seja positivista; e que tudo isto parte do princípio que os sertanejos seriam pessoas “destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização”[ii], mas é notável perceber como há um tensionamento destes mesmos conceitos internamente à obra, o que a faz dialeticamente um texto da melhor natureza – afinal, em muitos momentos é esta mesma civilização aparece ironizada e contendo seu próprio negativo, a barbárie.

Neste sentido, a obra relata a destruição do arraial com uma ironia refinadíssima, que muitas vezes foge ao leitor desavisado. Desde o início se pode perceber algo assim: “Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições.”[iii] Lembre-se como nada do avanço da civilização nos sertões foi pacífico, o que já tinha sido apontado no livro em outros momentos. Tais afirmações podem pegar o leitor de surpresa na medida em que uma ironia assim está esvaziada do tão famoso humour pelo qual ficarão conhecidos Machado de Assis e Drummond: resta em Cunha apenas a brutalidade do desvelamento da violência da pacificação do sertão de Canudos.

A obra vai, como se sabe, desmontar como o argumento do governo da República contra Canudos – que lutava contra uma insurreição monarquista – era falso. O capítulo em que se narra a quarta expedição a Canudos na terceira parte do livro destrincha em seu início como os homens da capital construíram tal falso argumento, potencializado pelos grandes jornais da época, como A Gazeta de Notícias e O Estado de S. Paulo, lembrando-nos como o discurso jornalístico mainstream funciona a favor dos aparatos de repressão e violência, se servindo de invenções disparatadas ao gosto do que hoje se chama de “fake news” nos grupos de WhatsApp; nas palavras do livro: “A mesma toada em tudo. Em tudo a obsessão do espantalho monárquico, transmudando em legião – coorte misteriosa marchando surdamente na sombra — meia dúzia de retardatários, idealistas e teimosos.”[iv]

Diante da derrota do militar Moreira César, a quarta expedição se organizou ao redor de um discurso que buscava a falsa afirmativa de uma revolta monarquista, apontando também para uma suposta inferioridade sub-humana dos sertanejos. O que chama a atenção do autor, porém, é outro dado: “A rua do Ouvidor valia por um desvio das caatingas. A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro. E a guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral. O homem do sertão, encourado e bruto, tinha parceiros porventura mais perigosos.”[v]

O escritor percebe como aquilo que ora se distingue como selvageria está no interior daquilo que se chama civilização. A condição da cidade civilizada é, em verdade, não muito distinta dos sertões de Canudos; e, no final, Euclides da Cunha chega inclusive a argumentar uma racionalidade própria na resistência sertaneja, óbvia até: “Estes, ao menos, eram lógicos. Insulado no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico, só podia fazer o que fez – bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas.”[vi]

Esta é, enfim, a face da civilização: uma força armada devastadora que destruiu Canudos, que assassinou brutalmente seus moradores; algo que se inicia por uma disputa por modos de vida; de linguagem, de desejo e de trabalho. Neste sentido os patriotas decidiram agir, e, nas palavras de Cunha, “agir era isto – agremiar batalhões.”[vii]

O exército brasileiro, portanto, encabeça o massacre criminoso de Canudos (que é assim mesmo nomeado no livro – um crime), usando dos mais brutais subterfúgios para matar e destruir o arraial. Considerando-se os donos da República, os militares, buscando uma prova do fim da insurreição e da desordem, ao final da campanha, exumam o cadáver de Antônio Conselheiro e tiram a famosa foto que hoje conhecemos do profeta; mas, não satisfeitos, cortam-lhe a cabeça, para seguiram portando-a numa parada em festa no Rio de Janeiro.

Ao terminar seu relato, a obra traz um tom de assombramento diante da violência que significou a expedição militar em nome da civilização, da ordem e do progresso. O avanço da civilização apareceu como um assalto armado contra uma população cuja história era já de exílio, abandono e violência. A ação militar foi, de certo modo, destruir as tinturas desta mancha, a marca de seu próprio passado violento; e o que chama a atenção de Cunha é como tal campanha tenha sido levada a cabo por “filhos do mesmo solo”, diferentes dos sertanejos por atuarem como “mercenários inconscientes” que vivem na capital sob a ideologia do progresso europeu.

Diante de um exemplo tão eloquente, seria o caso de lembrar que os militares jamais foram responsabilizados por seus sucessivos atos de violência contra a própria população. Parafraseando Julio Strassera em seu discurso final no julgamento que condenou os chefes militares argentinos da última ditadura, a nossa oportunidade é agora. Não se trata, porém, de meramente condenar generais de quatro estrelas, mas de forçar esta instituição a uma refundação: destituir todo seu comando, suas escolas, seus tribunais, suas aposentadorias especiais – lembrá-los de sua condição de servidores públicos a serem tratados com o mesmo estatuto que todos; forçarem a estudar conosco e terem uma formação em uma escola como qualquer outro.

Mais do que isso, que sejam, como na Argentina, julgados pela justiça comum – não estamos em guerra para que exista um tribunal militar. Só assim será possível dizer que há alguma justiça, memória e luto por todos aqueles que morreram pela despropositada ordem das baionetas.

 

*Guilherme Rodrigues é doutor em teoria literária pelo IEL da Unicamp.

Notas


[i] Neste sentido, vale conferir o trabalho recente de Guilherme Prado Roitberg, que tem pesquisado a eugenia no Brasil desde o século XIX, sua aplicação no aparato modernizador do Estado e seu funcionamento na sociedade brasileira, principalmente entre os anos 1920 e 1930.

[ii] CUNHA, Euclides da. Os sertões: (Campanha de Canudos). 4ª ed. São Paulo: Ateliê editorial, 2009, p. 65.

[iii] CUNHA, ibid. p. 331.

[iv] CUNHA, ibid. pp. 499-500.

[v] CUNHA, ibid. p. 501.

[vi] CUNHA, ibid. p. 502.

[vii] CUNHA, ibid. p. 503.

sábado, 15 de março de 2025

Nazismo, gemocídio, Holocausto, antissemitismo - via Airton Dirceu Lemmertz

Nazismo, gemocídio, Holocausto, antissemitismo 

 via Airton Dirceu Lemmertz

Fogueiras de livros e lavagem cerebral - como funcionava a máquina de propaganda liderada por Joseph Goebbels no regime nazista: https://www.youtube.com/watch?v=wVYYtQcXdyMhttps://www.bbc.com/portuguese/internacional-51071094 

Gerald Granston tinha apenas seis anos quando fugiu com o pai da Alemanha nazista a bordo do navio S.S. St Louis rumo à Havana, mas a jornada não saiu de acordo com o planejado. Ele estava entre os refugiados judeus que os EUA e Cuba rejeitaram em 1939https://www.youtube.com/watch?v=f72a5fhNqYI 

Em julho de 1938, o cônsul do Brasil em Budapeste, Mário Moreira da Silva, enviou ao ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, uma circular secreta em que informava ter recusado a concessão de vistos a 47 pessoas "declaradamente de origem semita" (judeus) que buscavam migrar para o Brasil. Eles tentavam fugir enquanto o governo húngaro, aliado da Alemanha nazista, punha em marcha uma série de políticas antissemitas – que, seis anos depois, culminariam com o envio de meio milhão de judeus húngaros para campos de extermínio. E essa não foi uma posição isolada. Documentos diplomáticos compilados por Maria Luiza Tucci Carneiro, professora do Departamento de História da USP, mostram que o Brasil rejeitou ao menos 16 mil pedidos de visto feitos por judeus que fugiam do Holocausto ou tentavam reconstruir suas vidas após a Segunda Guerra. Os documentos jogam luz sobre um lado pouco conhecido da história da imigração no Brasil. Saiba mais sobre "a época em que o Brasil barrou milhares de judeus que fugiam do nazismo": https://www.youtube.com/watch?v=2ejUFezFVHghttps://www.bbc.com/portuguese/brasil-46899583 

A brasileira Aracy de Carvalho (1908-2011) trabalhou no consulado do Brasil em Hamburgo, na Alemanha, durante o regime nazista. Aracy teria burlado regras para dar vistos brasileiros a judeus alemães que tentavam escapar do país. Mas o historiador Fábio Koifman diz que isso é um mito. Ele e o historiador Rui Afonso, dois pesquisadores com mais de 20 anos de experiência nessa área, investigaram os vistos concedidos a alemães no consulado de Hamburgo entre 1938 e 1939https://www.youtube.com/watch?v=EdhqLhC1RsE https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59707747 

O britânico que levou centenas de crianças judias da Tchecoslováquia para o Reino Unido e conseguia famílias para cuidar delas: https://www.youtube.com/watch?v=SwNiIMNrYss 

Há 80 anos, as tropas soviéticas libertaram o campo de extermínio nazista de Auschwitz-Birkenau. Em pouco mais de quatro anos e meio, a Alemanha nazista executou sistematicamente pelo menos 1,1 milhão de pessoas no campo de Auschwitz, construído no sul da Polônia ocupada, perto da cidade de Oswiecim. Auschwitz estava no centro da campanha nazista para erradicar a população judaica da Europa, e quase um milhão dos que morreram lá eram judeus. Entre os outros que perderam suas vidas, estavam poloneses, ciganos e prisioneiros de guerra russos. E, no dia 27 de janeiro de 2025, para marcar a data, alguns dos últimos sobreviventes se juntaram a líderes mundiais em memória das 1,1 milhão de pessoas assassinadas no local. Auschwitz - como campo de extermínio se tornou centro do Holocausto nazista: https://www.youtube.com/watch?v=pTNF7KsGmdk (atenção: o conteúdo tem imagens que impactam profundamente muitas pessoas) 

Auschwitz: 80 anos da libertação do campo. https://www.youtube.com/watch?v=5yWZEBEoi8Q 

Um 'drone' percorre o maior campo de concentração nazista: https://www.youtube.com/watch?v=lonWtvhInsw 

Em abril de 1945, Richard Dimbleby, da BBC, foi o primeiro repórter a entrar no campo de concentração de Berger-Belsen, na Alemanha, que havia sido libertado pelas tropas aliadas. Ele fez um relato sobre a experiência, em que descreveu o horror inimaginável que testemunhou. Para muitos ouvintes ao redor do mundo, aquela foi a primeira vez em que se deram conta da brutal realidade vivida pelos prisioneiros do regime nazista. Estima-se que 70 mil pessoas tenham morrido no campo de concentração de Berger-Belsen. O apresentador Jonathan Dimbleby contou ao Witness Story, série documental da BBC, que seu pai desabou diversas vezes durante a gravação e que a BBC relutou em transmiti-lohttps://www.youtube.com/watch?v=5iE-tDJbam4 (atenção: contém cenas fortes) 

A libertação de Auschwitz por tropas soviéticas ocorreu em 27 de janeiro de 1945. Andor Stern é o único brasileiro nato a sobreviver ao campo de concentração que virou símbolo da "Solução Final da Questão Judaica", de Adolf Hitler. Andor Stern relata os momentos trágicos que enfrentou, principalmente no último ano da Segunda Guerra Mundial, quando foi deportado com sua família para o campo. Viu sua mãe e outros parentes serem levados para a câmara de gás do infame campo e só foi poupado para ser usado no trabalho escravo a que prisioneiros eram submetidos. Compartilha também sua visão de mundo repleta de sabedoria e gratidão pelas coisas simples da vida. https://www.youtube.com/watch?v=q0ULzaJtuec ( atenção: o vídeo contém cenas fortes;  https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50790313 

Um dos piores massacres da Segunda Guerra Mundial: em apenas dois dias, cerca de 34 mil judeus foram mortos por nazistas na ravina de Babi Yar, em Kiev, capital da Ucrânia. A tragédia era parte de uma tentativa sistemática dos alemães de eliminar os judeus do Leste Europeu. Historiadores estimam que mais de dois milhões de pessoas foram executadas a balas em valas comuns em episódios como o de Babi Yar, no que ficou conhecido como "Holocausto das Balas". Muitos desses extermínios ocorreram na Ucrânia, onde [o repórter da BBC] Jonah Fisher acompanhou tentativas de identificar o lugar onde esses massacres ocorreram e evitar que caiam no esquecimento. Algumas das poucas testemunhas ainda vivas relembram onde e o que aconteceu. https://www.youtube.com/watch?v=ipYDYLYhLZg 

O Memorial do Holocausto, em Israel, busca nomes de vítimas desaparecidas do nazismo. Cerca de 1,3 milhão de nomes permanecem desconhecidos. https://www.youtube.com/watch?v=yfN7oH3fKFw 

Se você acha que a palavra "genocídio" existe há séculos, está equivocado. Esse crime extremo ganhou um nome há oito décadas, baseado no assassinato de armênios por parte da Turquia. Como um judeu que fugiu do Holocausto criou o termo 'genocídio'https://www.youtube.com/watch?v=W6Sh8HfxOqs 

Túneis e bunkers nazistas completamente conservados estavam sob areia em região costeira de Haia(na Holanda) e agora foram abertos ao público: https://www.youtube.com/watch?v=NS7aPKad94Ahttps://www.youtube.com/watch?v=qs30MBMEy38 

Com uso de óculos de realidade virtual, Frank Mouqué (um veterano da Segunda Grande Guerra) voltou à cidade de Armentières (no norte da França), que ajudou a libertar dos nazistas, e recebeu homenagenshttps://www.youtube.com/watch?v=LnM8ve6phE8 

A falta de uma foto ou vídeo dos restos mortais de Adolf Hitler alimentou (e ainda alimenta) lendas e teorias da conspiração. O que realmente aconteceu com o cadáver do homem responsável por um dos regimes mais nefastos da história mundial, a Alemanha nazista? https://www.youtube.com/watch?v=719sVNjYXVo 

Adolf Eichmann foi considerado um dos principais responsáveis pela chamada "solução final" dos nazistas, para o extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Ele também foi apontado como responsável pelo envio de milhares de pessoas aos campos de concentração e de extermínio nazistas. Após passar vários anos escondido na Argentina, o ex-oficial da SS foi capturado por agentes israelenses em 1960. Como foi a operação secreta que o levou da Argentina para Israel, onde foi então julgado pelos crimes cometidos durante o regime nazista: https://www.youtube.com/watch?v=XRPGd1OS_Gc https://www.bbc.com/portuguese/geral-63792332 

As reviravoltas na história do médico nazista Josef Mengele, que se refugiou no Brasil depois de realizar experiências com centenas de judeus e condenar vários outros à morte na câmara de gás. [O repórter da BBC News Brasil] Thomas Pappon conta como a ciência comprovou que um idoso que se afogou no litoral de São Paulo era, na realidade, o carrasco de Auschwitz. Mas um mistério permanece vivo: como Mengele conseguiu se comunicar com a família e receber amigos no Brasil durante 30 anos sem jamais ter sido descoberto? https://www.youtube.com/watch?v=ug2cXtlvJA8https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47142678 

Iniciados em 20 de novembro de 1945, na Alemanha, após o fim da Segunda Guerra Mundial, os Julgamentos de Nuremberg sentenciaram 24 dos mais importantes líderes do nazismo. 12 deles foram condenados à morte. E, apesar de muito já ter se falado sobre os processos em si, pouco se discutiu sobre a extraordinária análise psicológica dos nazistas que foi feita nesse período. Horas de entrevistas, exames e observações tentaram responder se os nazistas eram verdadeiros monstros ou seres humanos comuns que cometeram monstruosidades. O que foi descoberto com a análise das mentes de quatro figuras marcantes do nazismo: Robert Ley, Julius Streicher, Rudolf Hess e Hermann Göring. E como psicólogos tentaram destrinchar a anatomia do mal nos nazistas. https://www.youtube.com/watch?v=CNn9JYGjf18 ( https://www.bbc.com/portuguese/geral-55035660 

Com a derrota na Segunda Guerra Mundial, a Alemanha ficou ocupada por tropas aliadas. Entre os americanos estavam soldados negros, que permaneceram no país por algum tempo após o fim do conflito e, em muitos casos, acabaram tendo filhos com mulheres alemãs. Essas crianças negrasnasceram em um ambiente totalmente branco e que, até então, não tinha tido contato com pessoas negras. A hoje ativista e escritora Ika Hugel-Marshall conta como foi ser uma dessas crianças, lembra o forte racismo que sofreu e relata a busca pelo pai e por autoaceitação. https://www.youtube.com/watch?v=h6czFkJFbOo 

Projeto Paintback - a criativa solução de artistas alemães para esconder pichações de suásticashttps://www.youtube.com/watch?v=Jb5pe-PanW8 

Centenas de judeus se aglomeravam diante do Museu de Arte de Tel Aviv às 16h do dia 14 de maio de 1948 – há quase oito décadas. Lá dentro, as palavras de David Ben-Gurion mudariam para sempre a história do Oriente Médio. Chefe da então Agência Judaica para a Palestina, ele fazia um discurso declarando a independência de Israel. Os soldados britânicos tinham abandonado a região poucas horas antes. Os judeus celebram e recordam esse momento com alegria. Mas o deslocamento em massa de palestinos que viria depois fez com que o dia seguinte, o 15 de maio, passasse a ser o Nakba, ou 'dia da catástrofe', para os árabes. E assim se deu a fundação de Israel, país que hoje é uma potência militar, econômica e tecnológica da região. A repórter Nathalia Passarinho explica, em três pontos, o que levou a esse importante (mas turbulento) momento histórico: https://www.youtube.com/watch?v=iEpwgDez1DY 

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