sábado, 12 de julho de 2025

As tarifas e a Tarifa-Bolsonaro - Demétrio Magnoli Folha de S. Paulo

 As tarifas e a Tarifa-Bolsonaro

Demétrio Magnoli
Folha de S. Paulo, sábado, 12 de julho de 2025

Ninguém está a salvo da espada erguida pela Casa Branca

Trump declarou, vezes sem conta, sua tórrida paixão por tarifas. Celebremente, selecionou "tarifas" como sua palavra predileta, para depois corrigir-se colocando-a atrás de "Deus" e "amor". Na visão dele, tarifas desempenham três funções distintas. A Tarifa-Bolsonaro, de 50%, anunciada contra o Brasil, enquadra-se na terceira família.

Nas suas versões de esquerda e direita, o populismo econômico destina-se a impulsionar o consumo, angariar popularidade e colher triunfos eleitorais. No fim, o resultado é sempre a explosão da dívida pública. Pela esquerda, caso do Brasil, sob o dístico "gasto é vida", os gastos públicos crescem além das possibilidades de aumento da arrecadação tributária. Pela direita, ao estilo de Trump, sob o lema de que "redução de impostos é vida", comprime-se a receita tributária a patamares inferiores às necessidades orçamentárias.

A primeira função das tarifas de Trump é compensar a redução de impostos. O presidente imagina retroceder o relógio da história até o final do século 19, quando as taxas sobre importações representaram a fonte principal de arrecadação do governo dos EUA. Não funcionará: mesmo sob políticas suicidas de cortes de despesas, o Estado contemporâneo precisa arrecadar muito mais do que proporcionariam as tarifas alfandegárias.

A Lei de Tarifas de 1890, proposta por William McKinley, um herói de Trump, aumentou para 50% as taxas alfandegárias médias dos EUA. A ideia era proteger a manufatura nacional, estimulando a expansão industrial do país. Na época, funcionou –como, mais tarde, a substituição de importações aceleraria a industrialização do Brasil.

A segunda função das tarifas de Trump é provocar um renascimento manufatureiro dos EUA. Trata-se, também, de uma utopia reacionária. Atualmente, as grandes empresas assentam seus negócios em cadeias produtivas internacionalizadas, tirando proveito das vantagens comparativas de diversas economias nacionais. As tarifas de Trump tendem a inflacionar a economia doméstica sem restaurar os parques manufatureiros devastados pela história.

"America First" —a guerra tarifária orienta-se tanto contra adversários como contra aliados geopolíticos dos EUA. Em princípio, ninguém está a salvo da espada erguida pela Casa Branca. Contudo, a terceira função das tarifas é castigar governos que tornam-se alvos da ira sagrada de Trump. A Tarifa-Bolsonaro pertence a essa família de sanções ideológicas.

Lula tagarela à vontade sobre soberania nacional, mas só a respeita quando lhe convém. Já declarou apoio a candidatos estrangeiros, fez campanha para Hugo Chávez e, há pouco, exibiu-se na mansão onde Cristina Kirchner cumpre prisão domiciliar reivindicando a libertação da ex-presidente. Não teria o direito moral de exigir de Trump respeito à Justiça brasileira enquanto insurge-se contra sentenças judiciais argentinas.

Mas a Tarifa-Bolsonaro situa-se num pavilhão superior de interferência na soberania nacional. De fato, trata o Brasil como uma ditadura que emprega o sistema judicial para violar direitos humanos. Diante dela, Lula tem o dever de enrolar-se na bandeira auriverde e enfrentar a ameaça. De quebra, beneficia-se politicamente da submissão canina de Tarcísio de Freitas aos interesses de Bolsonaro que, à vista de todos, contrariam diretamente o interesse nacional.

O Brasil paralisado por impasses na governança - Paulo Baía

A tempestade e o fio: o Brasil entre poderes em fricção, fé em disputa e a urgência da escuta democrática

              * Paulo Baía 

O Brasil, em julho de 2025, é um país que caminha sob a vertigem. A paisagem institucional permanece em pé, mas há rachaduras nos pilares. As cores da democracia ainda estão nas bandeiras, nos tribunais, nas urnas e nas palavras dos discursos oficiais. No entanto, os três poderes da República caminham como corpos desajustados, um de costas para o outro, sem sincronia, sem harmonia, em fricção constante. A ideia de equilíbrio entre os poderes tornou-se peça de ficção constitucional. O que há é um embate silencioso e cotidiano entre instâncias que se desejam autônomas, mas que se sabotam mutuamente, num jogo de vaidades e estratégias dissimuladas. Neste palco de choques institucionais, pulsa a vida real de um país desigual, fatigado e ainda assim vivo.

Para compreender os últimos quinze anos da vida nacional é necessário nomear, sem rodeios, o lugar central que o Supremo Tribunal Federal passou a ocupar. O STF deixou de ser apenas o guardião da Constituição. Tornou-se ator de cena, não mais bastidor. Seus ministros passaram da toga ao microfone, do voto técnico à decisão com gestos dramáticos. O Supremo passou a ditar o ritmo da política brasileira, interferindo diretamente nos processos eleitorais, nas ações do Executivo, nas disputas legislativas, nos embates simbólicos do país. É um protagonismo visceralmente político, alimentado tanto pela omissão dos demais poderes quanto pela tempestade de crises que exigiram posicionamento. Seus votos tornaram-se editoriais. Suas decisões, capítulos do romance nacional. Seus ministros, personagens centrais da narrativa coletiva.

Mas o protagonismo do STF, ainda que por vezes necessário diante do colapso de outras instituições, é também sintoma. Sintoma de uma democracia tensionada, que transfere ao Judiciário o papel de árbitro quando a política perde sua capacidade de mediação. O Supremo preenche o vazio deixado por um Executivo sob constante cerco e por um Legislativo que se transformou num superpoder descontrolado. O Congresso Nacional já não é apenas uma casa de leis. Tornou-se o verdadeiro centro do governo, agindo sob um parlamentarismo informal, não declarado, mas operante. Um parlamentarismo de fato, em que deputados e senadores controlam a execução orçamentária por meio das emendas, exigem recursos, ministérios, cargos, favores. E tudo isso sem qualquer responsabilidade direta pelas consequências. A fatura é do Executivo. A cobrança é da população. A glória é do Legislativo.

Esse modelo deformado de governança cria um poder que governa sem governar, que executa sem responder, que pressiona sem assumir. O presidente da República torna-se um negociador permanente, um refém com caneta, um gerente de emendas. A responsabilidade pública permanece com o Executivo, mas o comando do orçamento está nas mãos do Parlamento. A inversão é brutal. É um regime de submissão consentida, em que o governo, para sobreviver, entrega partes da alma do Estado. O presidencialismo que resta é apenas uma imagem invertida no espelho da Constituição.


E nesse campo de distorções, reina também o bolsonarismo. Não como governo, mas como assombração. Jair Bolsonaro, ainda que fora do cargo, permanece como centro simbólico de um movimento que sobrevive a ele. O bolsonarismo é hoje um sistema articulado, operante, incrustado em igrejas, câmaras, corporações, escolas militares, polícias e redes sociais. Alimenta-se do ressentimento, da desconfiança, da descrença na política, da fé manipulada, do medo como método. Atua como vírus ideológico e cultural, contaminando o debate público, deslegitimando as instituições, instilando a lógica da ruptura permanente. Já não depende de Bolsonaro. Tornou-se maior que ele. Respira por aparelhos próprios.


A ofensiva internacional de Donald Trump, ao impor um tarifaço de cinquenta por cento sobre produtos brasileiros, foi mais que hostilidade econômica. Foi um gesto político, um aceno internacional à extrema direita brasileira, uma tentativa de desestabilizar o governo Lula e reforçar a ideia de que o Judiciário brasileiro age por vingança, não por justiça. Foi uma interferência grosseira nas escolhas internas do Brasil. Uma aliança explícita com o bolsonarismo em versão transnacional. Uma diplomacia da intimidação. Um gesto simbólico que buscava empurrar o Brasil de volta ao mundo das tutelas coloniais.


A resposta de Lula foi serena e firme. Acionou os canais diplomáticos, convocou a embaixadora brasileira nos Estados Unidos, prometeu reciprocidade, falou como chefe de Estado de uma nação que não aceita ser humilhada. O gesto teve peso. E reverberou. Porque há momentos em que é preciso erguer a voz com sobriedade, para que o país se reconheça em sua própria dignidade.


As ruas, até então dispersas, reagiram. Em 10 de julho, dezenas de milhares de pessoas tomaram praças e avenidas em várias capitais. A convocação partiu das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, com apoio do MST, da CUT, da UNE, do PT, do PSOL. O grito não era apenas contra Trump, mas contra a tentativa de submeter o Brasil a um jogo autoritário global. Era um grito por soberania, por justiça tributária, por proteção ao Judiciário, por respeito à democracia. Era, sobretudo, um ato de memória coletiva. Uma lembrança de que o povo ainda sabe reconhecer os momentos em que a história exige presença.


O impacto foi imediato. O instituto Quaest registrou interrupção na curva de queda da aprovação do governo Lula. A tendência mudou. O povo entendeu o gesto. A firmeza diante da agressão externa foi compreendida como força, não como confronto gratuito. O episódio devolveu ao governo a capacidade de recompor sua narrativa. Recolocou Lula como protagonista. Mas essa recuperação, embora simbólica, não basta. O campo democrático precisa de mais que gestos pontuais. Precisa de enraizamento. Precisa de escuta.


Escutar as vozes do país profundo. Escutar as igrejas, sim, mas todas elas. Ouvir padres, pastores, bispos, cardeais, pregadores, líderes evangélicos, teólogos populares. Ouvir os terreiros, os babalorixás, os pais e mães de santo, os dirigentes de casas de Umbanda. Ouvir também os espíritas kardecistas, os médiuns, os esotéricos. Ouvir os que vivem da fé, que comungam com a espiritualidade de um povo que é profundamente religioso, místico, plural. Esses espaços não são apenas templos. São centros de escuta, redes de cuidado, territórios de acolhimento. São onde o povo busca sentido, refúgio, força. Negar isso é negar o coração do Brasil.


É preciso também escutar os adversários que não se tornaram inimigos. Aqueles que votaram contra, mas que não entregaram sua alma ao bolsonarismo. Gente comum. Trabalhadores, estudantes, pequenos empreendedores, donas de casa, motoristas de aplicativo, jovens desiludidos, mães aflitas. Gente que sente, sofre, espera. Muitos não escolheram a extrema direita por convicção, mas por solidão. Por ausência de alternativa. Por desinformação. Por medo. Esses não devem ser atacados, mas ouvidos. Porque ali também está o futuro.


Lula começou a reencontrar esse caminho. Rompeu o silêncio estratégico. Assumiu as rédeas. Recompôs a base, reorganizou as prioridades, enfrentou a chantagem institucional com mais firmeza. Mas o desafio é imenso. A engrenagem é pesada. O centrão exige mais. O STF seguirá intervindo. Trump não recuará. O bolsonarismo avançará pelas bordas, pelas frestas, pelos corpos.


É nesse cenário que se impõe a urgência de escolhas. Há decisões que não podem mais ser adiadas. Há pactos que não podem mais ser mantidos. Há zonas de conforto que se tornaram campos de rendição. A estabilidade não vale a perda da alma. A governabilidade não pode custar a dignidade do projeto. A conciliação não pode se transformar em traição. É preciso ter coragem para dizer não. Para traçar limites. Para afirmar valores.


Como escreveu a jornalista Silvia Debossan Moretzsohn, em seu artigo “Sobre escolhas difíceis — e óbvias”, publicado no site Come Ananas, há momentos em que já não se pode continuar fingindo que tudo é questão de cálculo. Há horas em que o óbvio se impõe, não por ser simples, mas por ser urgente. Porque há lutas que não admitem postergação. Porque há uma história que precisa ser escrita com coragem.


O fio da história foi reencontrado. Mas segurá-lo exige firmeza, escuta, clareza e, sobretudo, compromisso. O futuro do Brasil, entre as fricções dos poderes, as tormentas externas e os fantasmas internos, dependerá da capacidade de enfrentar o que precisa ser enfrentado. Com beleza. Com dureza. Com generosidade. E com a coragem de não desistir. Porque, no fundo, é disso que se trata: de não desistir. De novo. E sempre.


               * Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ


https://agendadopoder.com.br/a-tempestade-e-o-fio-o-brasil-entre-poderes-em-friccao-fe-em-disputa-e-a-urgencia-da-escuta-democratica/ 

A “era das incertezas certas” no Brasil, riscos para as empresas - Professor Celso Cláudio Hilbebrand e Grisi (Linkedin), comentário PRA

A “era das incertezas certas” no Brasil, riscos para as empresas - Professor Celso Cláudio Hilbebrand e Grisi (Linkedin), comentário PRA

O Prof. Celso Grisi resumiu com especial acuidade osprincipais fatores de risco derivados da situação econômica do Brasil, mas principalmente resultante das politicas macro e setoriais do atual governo Lula. Confirma-se, assim, a condição do Brasil como país vocacionado, pela incompetência de suas elites econômicas e politicas, para o baixo crescimento, para a inflação resiliente, para os juros altos, para o agravamento dos desequilíbrios fiscais, e, portanto, para o aumento do endividamento público e privado e o aumento dos riscos sistêmicos, até nova crise nas transações externas.

Querem um cenário pior? A continuidade da polarização política e aumento das tensões sociais geradas pelo virtual estrangulamento geral das despesas públicas em setores cruciais para a população, como saúde, segurança civica (a externa já é o caso) e educação, com algum aporte estrangeiro na infraestrutura física. Grato ao professor Celso Grisi por resumir tão bem os fatores de risco no Brasil, que são TODOS de governança, nenhum trazido de fora, todos made in Brazil.  PRA

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Professor Celso Cláudio Hilbebrand e Grisi, via Linkedin:

Vamos falar de certezas (3)

Em meio a tantas incertezas, os planejamentos empresariais devem ter presentes algumas certezas. Vamos enumerá-las?

 1.⁠ ⁠O atual governo não fará cortes expressivos em suas despesas.

 2.⁠ ⁠O quadro fiscal não passará por ajustes

 3.⁠ ⁠Benefícios sociais não serão reduzidos, ao contrário, serão ampliados

 4.⁠ ⁠Reformas e mesmo as  micro reformas internas serão postergadas

 5.⁠ ⁠Expansões monetárias tornarão a inflação resiliente.

 6.⁠ ⁠Um crescimento mais forte da economia ficará dependente dos investimentos estrangeiros.

 7.⁠ ⁠Os confrontos com o legislativo serão evitados, mesmo assim isso não se traduzirá em apoio ao atual governo

 8.⁠ ⁠O governo buscará por medidas que tragam novos benefícios ao dia a dia do eleitor (desenrola rural, ampliação do programa Farmácia Popular, Gás para todos)

 9.⁠ ⁠As Limitações políticas e o desejo de preservar apoios, diante de um cenário de baixa popularidade, imobilizam medidas estruturantes

10.⁠ ⁠O desembarque de políticos do navio do Presidente será ainda maior, ampliando a imobilização de novos avanços.

Oportuno será preparar aempresa para esse cenário.




Uma pequena grande história do Brasil contemporâneo- Arnaldo Barbosa Brandão

 A HISTÓRIA DO BRASIL (que não está nos livros)

Do a.b.b.

Onde eu parei mesmo? Ah, foi em Getúlio. Houve uns 5 Getúlios. O jovem que se vestia como um lorde e usava aqueles sapatos de duas cores e terno branco e que pegava as gaúchas. O político preferido do Borges de Medeiros(governador do Rio Grande), com quem aprendeu todas as artimanhas pra se manter no poder por anos e anos. O Getúlio que chegou nos braços do povo ao poder em 1930 e que governou cem certa flexibilidade. O ditador que governou com mão de ferro o país, de 1937 até 46 e o presidente eleito em 1950 que enfrentou uma oposição feroz do udenismo com Carlos Lacerda à frente, e que acabou suicidando-se em 1954. Talvez, sabendo do que ocorreu entre 30 e 55, fique mais fácil para os mais jovens entenderem porque houve o golpe ou revolução de 64, sei lá. Pois é, quando eu era jovem achava que foi golpe, agora, sei lá. Vou ficar com o que disse FHC quando era sociólogo em 1972: “O golpe de 64 acabou por ter consequências revolucionárias no plano econômico”. Não foi só o Jango. É que os militares (nem todos), não perceberam que os tempos eram outros e o Brasil, bem, o Brasil tinha estado na 2ª Guerra e houve o governo JK ( 50 anos em 5 não digo, mas 10 em 5, quem sabe). Bem que fiquei tentado, mas não há como fazer comparações entre a ditadura de Getúlio e a dos militares em 64. Mundos diferentes, Getúlio mudou o Brasil e JK ajudou. Os militares pós-64 também mudaram o Brasil. Sem eles não haveria Brasília, que JK deixou 5% pronta e eles completaram, nem Petrobrás, que Getúlio criou e não se interessou (perguntou aos gringos se queriam o petróleo), nem EMPRAPA, que Rockefeller criou com o nome de Ceres e que viabilizou a soja e o milho no cerrado, e de quebra o gado. Nem haveria as estradas que JK começou e eles esticaram, nem energia elétrica (Itaipu), nem as universidades. Sem eles estaríamos no escuro, depois dos militares não me lembro de nada que alguém tenha feito (infra-estrutura), nem os portos, nem o FGTS(invenção do Roberto Campos). Pensando bem, até o Lula é criação dos militares, que desejavam uma esquerda desvinculada do comunismo que dominavam os sindicatos. O fato é que nos governos militares teve de tudo, mas dá pra separar o trigo. Castelo era feio como uma trombada  de trem, mas era trigo, Geisel se escondia atrás dos óculos escuros, falava pouco, mas era trigo, Golbery era trigo, sem eles estaríamos numa enrascada política e econômica. Glauber percebeu isso antes de todos. Bem, depois dos militares, veio o Sarney que fez o Plano Cruzado 1, 2 e não deu em nada, depois Collor que fez merda, depois Itamar que conta, fez o Plano Real, depois FHC que deu uma estabilizada na economia e na política, depois veio o Lula e sua gente: fez-nos lembrar que havia pobreza no país, e também lembrou-nos que o sindicalismo continua o mesmo de sempre.  Voltemos a Getúlio. Lembre-se que ele não admitia adversários, já os militares de 64, mais ou menos. Getúlio eliminou logo os dois principais: comunistas e fascistas. Morreu muita gente e muitos foram exilados, a mulher do Luiz Carlos Prestes, Olga Benário, foi entregue ao Nazistas, Prestes foi preso e torturado. Getúlio enfrentou de cara a “revolução constitucionalista de 32”, na verdade uma contra-revolução. São Paulo (leia-se a elite paulista) rebelou-se. Até o Mario de Andrade lutou por São Paulo, quem diria. Não pegou no fuzil, usava uma caneta, que, às vezes pode ser mais letal. O problema é que São Paulo queria o divórcio (e na certa iria ficar com a casa e os móveis). Lembrem-se que Getúlio prendeu até Graciliano Ramos, foi bom (nada, prisão é péssimo, já fui preso, sei como é), porque daí saiu o “Memórias do Cárcere”. A outra diferença é que Getúlio tinha uma visão mais “compreensiva” das relações sociais e principalmente, trabalhistas. Getúlio, como todos os ditadores, comunicava-se diretamente com as “massas” e centralizava todo o poder. Nomeou interventores para quase todos os estados, a maioria militares, muitos se perpetuaram no poder. Diferente dos militares em 64. Voltando a subir o morro, nesta época também aparecem uns sambas ressaltando a liberdade nas favelas, ao contrário da ordem e das normas mais rígidas no chamado asfalto. Confiram as letras do próprio Herivelto e de outros. Já estamos falando dos anos 50, e eu já residia no Morro da Coroa e via o “pau comer” todos os dias, porque a chamada “malandragem” descia de vez em quando e aprontava alguns roubos e assaltos nos bairros onde as favelas estavam estabelecidas, ou vocês pensam que os tiroteios nas favelas começaram agora. É bem verdade que a arma mais poderosa era o 45, embora meu pai usasse um parabélum. Há alguns estudiosos que tem uma visão romântica dos chamados “malandros”, é porque nunca moraram nas favelas. Nesta época(anos 40 e 50) chegaram os nordestinos (do sertão e adjacências, não do litoral), o que deu uma mistura interessante nos morros, uma argamassa explosiva, a julgar pela reação do meu pai, que detestava candomblé, samba, barulho e outras “pataquadas desses crioulos safados”, como dizia, mas um de seus melhores amigos era negro e veio da Bahia com ele, na quarta classe de um navio. Os nordestinos, em geral, preferiam os subúrbios, foi o período de crescimento dos subúrbios e da Baixada Fluminense e das cidades do ABC em São Paulo. Getúlio, que já era chamado “o pai dos pobres”, cria então, a “polícia especial”, que, como diz o nome, era especial, ou seja, podia fazer qualquer violência que quisesse. Lembro que usavam uns cassetetes de borracha, em substituição aos de madeira, porque doía, mas, não quebrava nada. Foi um grande avanço social. A polícia era a lei e acabou-se, entenderam porque até hoje não temos noção de justiça e morremos de medo da polícia, até hoje não aprendemos na escola que um processo começa com uma investigação policial, acompanhado por um promotor, e que vai para um juiz que manda prender. Aqui os processos começam com a “prisão do meliante para averiguações”. Aprendam mais esta: Só quem pode mandar prender é um juiz, a não ser em flagrante delito, mas até hoje qualquer policial de meia-tigela prende você na rua e tu ficas(atenção revisora, é assim mesmo) mofando dias e dias, se for pobre, meses e meses e até anos. Outro fato importante, é que Getúlio fazia uma diferenciação muito grande entre pobres e trabalhadores. Pobres eles sequer reconhecia, dirigia-se aos “Trabalhadores do Brasil”. E como nas favelas só moravam pobres e alguns poucos “trabalhadores formais”, as favelas sequer eram reconhecidas. Alguns podem pensar: “mas Getúlio era um ignorante”. Não, Getúlio era culto, ele não era do time relativista, mesmo porque, na época quem mandava era o positivismo. Melhor ler o Pedro Demo(Metodologia Científica em Ciências Sociais) pra entender essas questões teóricas, em vez de ficarem se escorando no Google ou perdendo tempo com os filósofos franceses.  Todas essas coisas que estou contando aqui, tiveram e ainda produzem, repercussões sobre o crescimento das favelas, e da criminalidade. Interessante, é que Brizola, um político oriundo do Getulismo, foi um dos primeiros a compreender que as “favelas” não eram só um fato físico, mas também social. E olha que eu não gostei do governo Brizola no Rio, mas isso não é vantagem, não gosto de nenhum governo, e por incrível que pareça, foi o governo que construiu o maior número de viadutos, claro, por influência do Jaime Lerner (linha amarela, linha vermelha), mais ainda, foi um dos primeiros governos que pensou em aproximar ricos de pobres, via transporte coletivo, lembro das madames de Ipanema indignadas por causa de uma linha de ônibus que fazia Ipanema-Metrô. Bem, agora o Metrô chegou a Ipanema, aquilo vai ficar igual churrascaria de subúrbio aos domingos. O jeito é escapar pro Leblon e pra Barra. Voltemos a subir o Morro. Se os morros eram territórios que o governo não reconhecia, e a polícia só aparecia de vez em quando, quem mandava nas favelas? Digamos no dia-a-dia? Os primeiros que se apresentaram com algum programa de governo foram os bicheiros, depois veio a Igreja católica, por causa de Dom Helder, se bem que conheci um padre que tinha “pontos” de jogo. Alguns bicheiros ficaram famosos, caso do Natal da Portela, que começou de baixo como apontador e virou banqueiro, isso com um só braço, imagine se tivesse os dois. Os bicheiros e sua influência sobre as favelas dariam um livros de milhares de páginas, mas não sou eu quem vai escrever, é coisa pra quem? Sociólogos? Conheci poucos que se interessaram, digamos o Carlos Nelson Pereira dos Santos e a Lícia do Prado Valadares, nome bonito? Ela também. Cheguei a namorá-la, mas não deu certo, por minha culpa. Houve também o Artur Rios, e os estrangeiros. O mais importante deles foi, sem dúvida, o (CONTINUA OUTRO DIA).

Fausto Godoy sobre as relações estratégicas entre o Brasil e a Índia (e um pouco da China também)

 O BRASIL, A ÍNDIA, E A NOSSA “PARCERIA ESTRATÉGICA”


Numa demonstração da falta de sintonia com a política internacional contemporânea relativa à Ásia, passou sem ênfase, e praticamente despecebida da nossa imprensa o que para mim foi o principal resultado da reunião do BRICS que acaba de acontecer no Rio de Janeiro: a presença do Primeiro-Ministro indiano, Narendra Modi, emprestou relevo especial a um evento de certa forma esvaziado pela ausência de dois dos principais membros do grupo, o chinês Xi Jinping e o russo Vladimir Putin. Ao término do evento, o PM indiano realizou, em 08 deste mês, uma “visita de Estado” ao nosso país. 

Para melhor entender este cenário é necessário primeiramente reiterar a diferença que existe entre uma visita de Estado e uma visita oficial, mais comum. Diferentemente do que seria esta última, o nível concedido à de Narendra Modi é o mais alto no protocolo da diplomacia: o “hóspede” foi a Índia, como Estado. Neste contexto, as decisões e os entendimentos alcançados vinculam antes os Estados que os governos, o que tem muito significado em termos políticos.  

O Comunicado Conjunto da visita resume os principais acordos a que chegaram. Eles estão elencados na “Declaração Conjunta”, que tem por título “Índia e Brasil, Duas Grandes Nações com Elevados Propósitos” (cf. o “site” do Itamaraty). Segundo seu enunciado “...a visita transcorreu em espírito de amizade e confiança, valores que há quase oito décadas constituem o alicerce da relação Brasil–Índia”... Mais importante, ainda, o documento recapitula que “a relação fora elevada ao patamar de Parceria Estratégica em 2006”. Como se sabe, uma parceria estratégica é mais vinculante que uma “simples” parceria: seus membros se comprometem a alcançar com maior empenho objetivos comuns, através de sinergias, com benefícios mútuos. 


Foram elencados no documento os cinco pilares prioritários que orientarão as relações na próxima década: 1) Defesa e Segurança; 2) Segurança Alimentar e Nutricional; 3) Transição Energética e Mudança do Clima; 4) Transformação Digital e Tecnologias Emergentes; e 5) Parcerias Industriais em Áreas Estratégicas; todos eles consentâneos com as realidades compartilhadas por ambos. A este respeito, comparando-se com os desafios enfrentados pela China de Xi Jinping, é possível concluir que os perfis de Brasil e Índia são muito mais assemelhados.


Por exemplo, a China anunciou ter erradicado a pobreza absoluta - num país de mais de 1,4 bilhão de habitantes - já no final de 2020. Índia e Brasil ainda estão longe de atingir este objetivo, o que os assemelha na comunidade de objetivos e de esforços nesse sentido. Outro exemplo: na década de  1980 até o início da década de 1990, o Produto Interno Bruto (PIB)  do Brasil era superior ao da China... Atualmente, o PIB do gigante asiático -, o segundo maior do planeta em termos de Produto Interno Bruto - é dez vezes maior que o do Brasil. A Índia, de sua parte, foi um dos países que mais cresceram no ano passado, e o aumento registrado do seu PIB neste primeiro trimestre de 2025 foi de 7,4%. Acrescente-se a isto o fato de que a idade media de sua população de mais de 1,4 bilhão de indivíduos é de 28.8 anos; destes 40% têm menos de 25 anos ! Imaginemos o que significa isto em termos de desafios, e de oportunidades para o país... e para a expansão do nosso intercâmbio..

A este respeito, embora o comércio entre Brasil e China tenha crescido significativamente nos últimos anos, tornando-a o nosso principal parceiro comercial, a relação é assimétrica, impulsionada sobretudo pelas exportações de commodities, do nosso lado, em contraponto com as nossas importações  de produtos industrializados, de tecnologia e da indústria de transformação, principalmente,, cristalizando uma interdependência assimétrica. No que respeita à Índia, o relacionamento ainda está muito aquém das possibilidades. A este propósito, um estudo da “ApexBrasil” identificou várias oportunidades para nossos produtos no mercado indiano. Estas oportunidades abrangem setores estratégicos, como combustíveis minerais, matérias-primas, máquinas e equipamentos de transporte, produtos químicos, artigos manufaturados e alimentos. Ainda a propósito, em 2023 as nossas exportações para ela somaram em  US$ 4,7 bilhões, contra US$ 104 bilhões para a China!... Diante deste quadro e do porte dessas economias, fica evidente que há espaço para diversificarmos e incrementarmos  substancialmente o nosso intercâmbio, com ambas, aliás... Ou seja, há muito espaço, sobretudo diante da perspectiva de que estes dois países serão as molas motoras no século XXI... no que acredito piamente!


Ainda cumprindo a agenda da reunião, os dois líderes “reiteraram seu compromisso com uma reforma abrangente do Conselho de Segurança das Nações Unidas, inclusive com sua ampliação nas categorias de membros permanentes e não permanentes...” E, neste contexto, “...reiteraram o apoio mútuo às candidaturas de seus países a assentos permanentes num Conselho de Segurança ampliado e reafirmaram a intenção de continuar a trabalhar em boa coordenação em questões relacionadas à reforma do Conselho de Segurança", sublinha o documento.


No que respeita à situação no Oriente Médio “... eles expressaram preocupação com a recente escalada da situação de insegurança e reiteraram como única alternativa o diálogo e a diplomacia para abordar e resolver os múltiplos conflitos na região”... e “enfatizaram a importância de uma solução negociada de dois Estados que leve ao estabelecimento de um Estado palestino soberano, viável e independente, vivendo em paz e segurança com Israel”.


Outras áreas de importância tratadas pelos dois governantes foram a espacial e a cooperação marítima e oceânica. Conforme o documento “...os líderes reconheceram a importância de intensificar a cooperação em áreas estratégicas, com destaque para os usos pacíficos do espaço exterior. Ambos os lados comprometeram-se a explorar novas oportunidades de colaboração entre suas respectivas agências espaciais, inclusive nas áreas de design e desenvolvimento de satélites, veículos lançadores, lançamentos comerciais e estações de controle, além de pesquisa, desenvolvimento e capacitação técnica”. Cabe relembrar, a propósito, que em 2023 a Índia realizou um pouso histórico  da sua espaçonave Chandrayaan-3 na lua, com isto tornando-se o quarto país a alcançar tal façanha. Esta é certamente uma das áreas promissoras da Parceria Estratégica, pois abrange setores de tecnologia de ponta, nos quais a Índia se sobressai. Cabe, porém, relembrar que nós já temos um acordo de construção de satélites com a China, o “China and Brazil Earth Research Satelites”/CBERS, que monitora a Amazônia.


Ambicioso?...


Eu tive a chance de servir na Índia em duas oportunidades na minha carreira: primeiramente, na nossa Embaixada em Nova Delhi, em 1984/87, e posteriormente, em 2009/10, como Cônsul-Geral em Mumbai. Servi também, em Pequim, em 1994/7. Vivi, acredito, experiências em ambos países que me permitem tentar fazer uma análise tão isenta quanto meu possível do papel que China e Índia se encaminham a desempenhar mutuamente, e no mundo globalizado que se configura.


 Arrisco a pensar que as relações entre os dois gigantes se tornarão cada vez mais complexas em razão da disputa - “à la asiática” - pela liderança regional (e mundial, para alguns)...Parceiros e molas motoras no BRICS, são ao mesmo tempo antagonistas na disputa por protagonismo na Ásia. Por exemplo, confrontam-se na região das fronteiras que herdaram do colonialismo britânico nos cimos dos Himalaias, que já se deterioraram em várias guerras fronteiriças. Igualmente, competem por supremacia na região do sudeste asiático; a China através da iniciativa da “Nova Rota da Seda/BRI” e a Índia no projeto “Act East” - a “menina dos olhos de Modi” – pelo qual ela pretende tornar-se o principal parceiro econômico-comercial da vizinhança do sudeste asiático . 


Neste cenário, a pergunta que se coloca é para qual destino se encaminham essas relações: para uma convivência negociada, ainda que cada vez mais difícil, seguindo o  modelo asiático, ou a uma disputa acirrada e beligerante, com a República Popular buscando preservar a dianteira que logrou e a Índia jogando as cartas da sua crescente afluência, da sua população jovem, numerosa e cada vez mais afluente e “tecnologizada”?...


Cenário complexo...


E nós, onde ficamos nós, brasileiros, neste “Brave New World” do Ocidente estiolado e sem rumo do imperialismo “à la Trump”, e de uma Ásia cada vez mais afluente...e influente? Mais uma vez me vêm à lembrança as lições do nosso saudoso Chanceler Azeredo da Silveira: a “receita” é buscar, de forma autônoma, soberana e com discernimento político, os espaços que mais nos interessem,  beneficiando-nos inclusive das oportunidades que a disputa entre as duas superpotências asiáticas nos venham a abrir...


Cinismo... ou “real politik”?...


To be continued...

DIÁRIO DE BORDO: uma história universal entre Oriente e Ocidente - Fausto Godoy

 O Diário de Bordo de Fausto Godoy, uma fabulosa travessia nas grandes correntes de encontros e desencontros entre o Oriente (que ele conhece muito bem) e o Ocidente (por “defeito” de nascença), e um plaidoyer pela convivência harmoniosa.

Uma pequena grande história das relações, das interações, desencontros, dominação e oposição, nas trajetórias respectivas do Oriente e Ocidente, por um grande conhecedor prático, pelo estudo e pela convivência direta, por um fino conhecedor, e compendiador excepcional das virtudes, defeitos, contribuições e desafios de dois universos nas antioodas, que se conheceram, se retrairam, se relacionaram, prla cooperação e pela dominação, Fausto Godoy. PRA

DIÁRIO  DE  BORDO

Estou rascunhando um livro sobre as minhas andanças nestes 80 anos de vida, 40 de Itamaraty e quase 10 como professor universitário. É muita história, pelo que sou muito grato à Vida... Preparei uma introdução, em que tento explicar a minha visão sobre a Ásia, com base nas minhas experiências nos onze países em que servi durante quase dezesseis anos, e sobre o que penso das relações Ocidente/Oriente. Resolvi resumir tanto quanto possível neste texto algumas das reflexões e das conclusões a que cheguei. Por isto ele é longo, pelo que me desculpo antecipadamente perante os amigos que terão a paciência de chegarem até o final...mas não posso fazer de outra forma. Além de prolixo, vivi muito... Aqui vai o seu resumo:

“Está sendo muito complexa a aceitação pelo Ocidente de que a dinâmica do mundo mudou e que é necessário convivermos com paradigmas novos e distintos nas relações internacionais: a Ásia tornou-se fator decisivo na economia e na política globais; e sua presença, crescente e irreversível, instiga sentimentos ambíguos: de um lado, respeito pelo despertar de um gigante de História muito antiga e, de outro, apreensão pelas consequências que este protagonismo crescente possa causar. 

Mais que tudo, evidencia o nosso despreparo para lidar com esta realidade. Acostumado a exportar seus valores e a impor seus conceitos civilizatórios como verdades absolutas e perenes sobre esta mais da metade da raça humana, o Ocidente não tem sabido lidar com o novo fenômeno de que não serão mais possíveis situações como as Guerras do Ópio, promovidas pelos ingleses para impor à China o consumo da droga a fim de equilibrar uma balança comercial bilateral deficitária para a Grã-Bretanha; ou a abertura forçada do Japão Tokugawa às potências ocidentais; ou, ainda, o fim melancólico do Raj britânico e a independência arbitrária e intempestiva da Índia e do Paquistão, com as sequelas que deslanchou. Ainda pior, instituir uma ordem “à la Ocidental” a um Oriente cada vez mais assertivo da sua identidade e crescente poder. Os conflitos atuais – a guerra da Ucrânia, o conflito Israel-Hamas/Palestina, a guerra Israel-Irã, os talibãs no Afeganistão, etc. – evidenciam cada vez mais a incapacidade – e o profundo dilema que assola o Ocidente em lidar com uma “outra História”, que não entende e, de certa forma, lhe escapa.

De sua parte, antes de emergirem como elemento maior nas relações internacionais, os países asiáticos, assim como as ex-colônias europeias em todo o mundo, tiveram que absorver o impacto e administrar o legado da independência que tão traumaticamente alcançaram ao longo do século XX, sobretudo as fronteiras forjadas de forma artificial e arbitrária pelos colonizadores. O país que se tornaria o Laos, por exemplo, resultou de uma solução de conveniência para os colonizadores franceses no processo traumático da chamada “Guerra da Indochina”, que durou quase dez anos, causou perto de quatrocentas mil mortes e resultou na independência conturbada de três países - Vietnã, Laos e Camboja, abrindo ainda espaço para a Guerra do Vietnã, de trágica memória, sobretudo para os americanos que se envolveram no conflito. No final, a maioria da população de etnia lao tornou-se tailandesa e as fronteiras étnicas não se encaixam nas fronteiras políticas, com as consequências agudas que decorrem desta indefinição. Processo semelhante ocorreu na Malásia e na Indonésia: a população do norte da ilha de Sumatra foi repartida pelos holandeses ao largo do estreito de Malaca: parte tornou-se malaia e parte indonésia. Índia e Paquistão até hoje não solucionaram a questão da Caxemira, que está na raiz do recrudescimento do fundamentalismo islâmico e de sua cria: o extremismo talibã e seus desdobramentos. As cento e trinta e cinco etnias de Myanmar se recusam a aceitar a supremacia de qualquer uma delas no país definido arbitrariamente pelos colonizadores ingleses como Birmânia, e os “rohingyas” muçulmanos que foram deslocados arbitrariamente para servirem como “coolies” nas plantações de chá da região majoritariamente budista vivem hoje a tragédia de uma verdadeira “limpeza étnica”, que os tornou apátridas. Bem-vindos ao mundo westfaliano... 

As guerras do Vietnã nos confrontos da Guerra Fria, e as do Iraque e do Afeganistão, mais recentemente, assim como as tragédias na Líbia, na Síria, na Palestina, e agora a guerra entre Israel e Irã, demonstram o quanto as potências centrais do Ocidente são incapazes de entender e conviver com o “diferente” e com a penosa realidade de ter de compartilhar conceitos e valores que não lhes são próprios. Na contracorrente, tampouco têm sabido lidar com a “invasão” dos seus territórios por imigrantes e refugiados que buscam escapar de vicissitudes econômicas, muitas das quais herdadas do período em que foram colônias.

A “contaminação” entre culturas, ou, melhor, a introversão de referenciais culturais “estrangeiros” no quotidiano do indivíduo urbano contemporâneo, seja no Ocidente, seja no Oriente, obriga a que revisemos percepções e valores, senão os assimilando – o sushi nas churrascarias, o yoga nas academias, neste lado do planeta, ou a bolsa Louis Vuitton, no Japão, ou na China, o Mc Donald´s e os “jeans” em todo o planeta - como verdadeiro código interplanetário. Impõe-se a obrigação de convivermos com estas realidades irrefutáveis, e para os mais generosos e intelectualmente motivados, assimilá-las. Não somos mais ilhas, ou, melhor, os continentes/ilhas estão agora integrados no continente global... Bem-vindos todos à Pangeia restaurada...

Porém isto não quer absolutamente dizer que perdemos referenciais e valores próprios, mas sim que os globalizamos sempre quando exista comunicabilidade entre eles. Outros, porém, permanecem intocáveis, posto que constituem os alicerces das nossas genéticas culturais. Parecem-me que são “espaços inegociáveis”.

Talvez o mais fundamental desses valores e um dos principais diferenciais entre as duas grandes geografias mundiais seja a inserção do ser humano na sociedade: para o Ocidente o indivíduo constitui o seu cerne e alicerce. Tal é a mensagem da “Declaração dos Direitos do Homem”, corolário da Revolução Francesa, ou da Declaração da Independência norte-americana (...“nós consideramos como verdade auto-evidente que todos os homens nascem iguais, que eles são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre estes a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”...). Confúcio, nos Analectos, diria quase o oposto: “o filósofo Yu disse:...a  submissão filial e fraternal, não é ela a raiz de todas as ações benévolas?”. Para o asiático confucionista a virtude maior reside em servir à sociedade, em ser um elo para o seu funcionamento. O indivíduo somente se realiza no contexto social: o bom cidadão é aquele que obedece aos mais velhos e ao superior. Citando, ainda, Confúcio, nos Analectos (1:6):  “...o Mestre disse, o jovem deve ser um bom filho no lar e um indivíduo obediente fora dele, frugal nas palavras porém confiável no que diz, e deverá amar o povo,  no geral, porém cultivar a amizade dos companheiros... Em contrapartida, o ser superior deve ser merecedor desse respeito: “se o indivíduo for pessoalmente correto, então haverá obediência sem necessidade de ordens; mas se ele não for correto pessoalmente, não haverá obediência ainda que haja ordens”  (Analectos, 13:16).

Já o hindu tem uma visão quase diametralmente distinta: concentrado em suas encarnações futuras a caminho da transcendência (moksha), o indivíduo deve ocupar-se sobretudo do seu dharma,  sua lei/missão pessoal, e do seu kharma  que definiu a sua encarnação presente, fruto de suas vidas passadas, e o dirige para a próxima, que será melhor, ou pior, como resultado das suas ações que o seu livre-arbítrio indicará...É, aliás, o que ensina o Bhagavad Gita.

O Islã prega, de sua parte, a existência de um Deus único e absoluto, que revelou a Maomé, o seu Profeta, a sua lei, o Al Corão.  O significado do próprio termo “islã” – submissão – revela a relação entre o Criador e a criatura. Entretanto, contaminados pelo fanatismo religioso, os países islâmicos enfrentam desafios gigantescos para evitar que a paixão e a militância da fé termine por comprometer a própria sobrevivência do Estado. Fruto dela, o Afeganistão, que se confronta com uma comoção civil interminável, viveu o dilema de aceitar a presença de tropas estrangeiras, soviéticas e ocidentais, em seu território que em última instância se revelaram mais nefastas que eficazes. Outro não foi o desfecho trágico da desocupação das tropas americanas e a retomada do poder pelos talibãs. Esta verdadeira “cruzada” entre um islã deturpado por uma sociedade patriarcal anacrônica, para alguns, e o vagido de uma sociedade mais liberal, herdada da presença do Ocidente nestes últimos vinte anos, transborda para o vizinho Paquistão e tem poucas chances de chegar a um final feliz no curto, ou sequer médio, prazos. 

Estes conflitos vazaram as fronteiras territoriais e hoje envolvem praticamente todo o planeta. E os refugiados do Oriente e  da África, principalmente, que “invadem” a Europa na busca de uma vida mais pacífica encontram crescente resistência de seus anfitriões islamofóbicos. 

Será, em última instância, que esses valores perdurarão numa Ásia cada vez mais imbricada com o Ocidente... e vice-versa? Seria, por acaso, relevante que eles prevalecessem na forma em que estão? Quão “inegociáveis” serão eles?... 

O espraiamento do terrorismo para o Ocidente - as torres gêmeas de Nova York; a estação de Atocha, em Madri; os atentados na França; o “Boko Haram”, na Nigéria; as invasões do Iraque e da Síria; o retorno dos talibãs ao poder no Afeganistão; o conflito entre Israel e os militantes do Hamas na faixa de Gaza, e agora seu confronto com o Irã xiita, etc. - demonstram que estamos todos vulneráveis. Não podemos mais ignorar a questão; temos de nos posicionar, sob pena de sermos suas vítimas – próximas ou distantes. Mas qual é a melhor postura? A arrogância das potências centrais que buscam impor suas políticas... a agressividade bélica das tropas estrangeiras pela Ásia afora... as guerras que destampam a ameaça de um holocausto nuclear e causam o êxodo de milhares de indivíduos pelo Ocidente afora?... A busca de uma “contemporização” que abrirá ainda maiores espaços para a militância?... 

A resposta é certamente difícil e nunca deixará de ser incompleta. Não obstante demasiado complexo, o “dilema” precisa ser enfrentado se quisermos encontrar um mínimo de convivência entre os indivíduos e os povos no planeta cada vez mais globalizado. Nesse quadro, talvez a melhor solução seja buscar entender o fenômeno sem “parti pris”, sem “verdades absolutas”, hierarquia de conceitos ou imposição de valores, abrindo espaço para o diálogo construtivo. Temos que escapar do “absoluto” nos nossos julgamentos e convivermos com o “relativo” das múltiplas realidades: nada é “negro” e nada é “branco” nas relações entre os Estados e os indivíduos. Temos que atuar na gama do “cinza” da negociação, que deixa espaço para o entendimento e a humanidade.  

Impossível...Devaneio?... Haveria outra saída para a Pangeia globalizada?... Não é projeto fácil, contaminado que está pela intransigência contrária à discussão isenta e pelo fanatismo dogmático de abandonar posições rígidas. Daí a necessidade cada vez maior de buscarmos as raízes do problema, que, para mim, estão na impermeabilidade dos indivíduos e das instituições em conviver com a alteridade”... 


 To be continued...

Uma breve história do autoritarismo russo - Volodymyr Kukharenko (X)

 A Lesson from the Russian history 

Volodymyr Kukharenko

Why Russian society often appears passive and submissive to authority. Why do they have no voice? Some attribute it to fear or systemic repression — and that’s partly true. But a deeper question is: how did it get this way?

2/ The truth lies in centuries of historical development. Unlike Western Europe, which gradually evolved through stages of agriculture, industrialization, and the rise of individual rights, large parts of Russia were geographically isolated and politically centralized.

3/ As a result, many democratic and humanistic ideals never took root.

4/ For example, on the territory of modern Ukraine, there were advanced cultures like Trypillia thousands of years ago, and later, European values were shared through the Scythian and Sarmatian kingdoms, early urbanization, and even early democratic practices.

5/ Meanwhile, much of northern Russia remained tribal or under Mongol influence for centuries longer.

6/ Peter the First only introduced forks and beard shaving to his nobility in the 18th century — a symbol of how late certain societal norms arrived.

7/ Institutions like universities, parliaments, and constitutional rule came to Ukraine and Europe far earlier than to Moscow-centric Russia.

8/ Some values, such as the rule of law, individual rights, and open societies, emerge only through time, experience, and painful transformation.

9/ Societies that haven’t passed through those stages often see things like kindness or transparency not as virtues, but as weaknesses.

10/ This doesn’t mean individuals can’t change; a small percentage of Russians do oppose the current regime, but they are exceptions, and the system and society treat them as deviations. Understanding this historical mindset helps explain why systemic change is so difficult.

11/ Modern behavior is rooted in historical experience. And unless there is a societal reckoning, some worldviews remain centuries behind — no matter how modern they may appear on the surface.

Author: Volodymyr Kukharenko



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