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segunda-feira, 13 de abril de 2015

Diagnostico da crise presente - Jose Serra

Transcrevo uma análise dos problemas atuais do Brasil pelo senador José Serra.
Não endosso todos os seus argumentos, mas acredito que as questões que ele coloca são reais, e merecem debate. Apenas por isto eu as coloco aqui.
Na miséria intelectual que é o Brasil hoje -- ou seja, com governantes incapazes de se pronunciarem de modo claro sobre a situação presente, senão mentindo -- o artigo oferece, ao menos, um diagnóstico claro dos problemas atuais.
Paulo Roberto de Almeida



ELES PASSARÃO, E A NOSSA DEMOCRACIA PASSARINHO 
José Serra
O Estado de S.Paulo, 9/04/2015

Completam-se, por estes dias, 30 anos de regime democrático no Brasil. Não há dúvida de que o país avançou bastante no período. Temos muito mais liberdade e justiça. O progresso social foi acentuado, como demonstram os indicadores de educação, saúde e rendimentos dos mais pobres. A superinflação, deflagrada pelo choque externo do começo dos anos 1980, com seus três ou quatro dígitos anuais, foi finalmente vencida a partir dos governos Itamar e Fernando Henrique. Isso se deu com ampliação das conquistas democráticas, ao contrário do que se viu entre 1964 e 1968. E que se destaque o papel fundamental da agricultura brasileira, que se tornou poderosa e altamente competitiva, em escala mundial. Temos, pois, razões para estar satisfeitos pelo caminho até aqui seguido. E nosso papel é cercar as margens de erro rumo ao futuro e evitar armadilhas.
Há, desde logo, um pesado déficit que coincide com a era democrática: o crescimento medíocre do conjunto da economia. Nos 30 anos que antecederam 1980, crescemos a mais de 7% ao ano; de meados da década de 80 até o ano passado, essa taxa recuou, na média, a 3%. Mesmo deflacionando os números pelo crescimento da população, declinante no cotejo desses dois períodos, a degradação da performance econômica brasileira é evidente.
Tal degradação deveu-se à desindustrialização prematura que atingiu o Brasil, a ponto de a participação da indústria manufatureira no PIB voltar ao nível do imediato pós-guerra: em torno de 12%. Digo "prematura" porque não se trata de um fenômeno parecido com o que se viu nos países desenvolvidos, com renda per capita equivalente a quatro vezes a nossa. A dinâmica das economias emergentes bem sucedidas, note-se, é outra: as que mais têm crescido nas últimas décadas devem seu desempenho precisamente ao dinamismo do setor industrial.
Sem reindustrializar o Brasil, não vamos obter vaga no segundo turno do campeonato das nações. Vivemos num país continental, com 200 milhões de habitantes e renda por habitante ainda na casa de US$ 12 mil/ano (paridade do poder de compra). Por melhor que seja a nossa condição de exportadores de produtos agrominerais, esse vetor nunca será capaz de puxar a produtividade do conjunto da economia, gerar os milhões de empregos de que necessitamos e turbinar as receitas tributárias para cobrir carências sociais e regionais. Não é uma questão de gosto, mas de fato. Aliás, a propósito da utopia da economia primário-exportadora como o principal fator do desenvolvimento brasileiro, vale ler o interessante artigo de Ilan Goldfajn publicado nesta página na última terça: a tendência de longo prazo dos preços internacionais de alimentos é de lento e persistente declínio em termos reais.
Em parte, a desindustrialização prematura se deveu a uma combinação de quatro fatores, com pesos diferentes ao longo do tempo: 1) o mau entendimento das mudanças no mundo na direção de maior abertura comercial e ampla e irresistível liberdade para movimentos de capitais; 2) a superinflação e suas consequências; 3) as ideologias, à esquerda e à direita, que menosprezam políticas coerentes de desenvolvimento; 4) o despreparo e a pura inépcia do governo.
Um dos problemas mais graves que decorrem de políticas públicas deficientes se revela no custo-Brasil, que expõe nossa baixa competitividade em relação à média dos parceiros comerciais. Os produtos manufaturados brasileiros são 25% mais caros do que poderiam ser não em razão da ineficiência empresarial — nas condições dadas, há eficiência — mas por causa das carências de infraestrutura, das despesas financeiras e de uma tributação aloprada. Para arremate dos males, subsistiu durante boa parte dessas três décadas a sobrevalorização cambial.
E há um custo que tem sido subestimado pelos analistas que é a conversão reacionária do PT. O que quer dizer? Explico: associado ao declínio econômico e aos fatores que o provocaram, assistimos, com a ascensão do partido ao poder, ao fortalecimento e ao infeliz “aggiornamento” do patrimonialismo, que tanto infelicitou a história brasileira. Ele se expressa de dois modos principais: 1) com a formação de uma espécie de burguesia do capital estatal; 2) com a submissão da máquina do Estado a instrumentos que servem à manipulação eleitoral e aos desvios de recursos públicos para partidos e indivíduos. Vejam o calvário da Petrobras.
A crise de representatividade da democracia brasileira, cujo primeiro sinal foram as manifestações populares de meados de 2013, chegou ao seu ponto máximo neste semestre. Tudo de ruim veio junto, começando pela percepção generalizada do estelionato eleitoral.
Reeleita, a presidente Dilma não conta com um fator que costuma beneficiar um novo governante: o crédito de confiança. Como dispor dele, depois de quatro anos de tropeços que só agravaram a herança recebida do governo Lula-Dilma? Herança que, diga-se, já não era leve no início de 2011: real supervalorizado, déficit externo crescente, rigidez fiscal, investimentos industriais em declínio e subinvestimento na infraestrutura. E isso tudo se dava apesar da notável bonança externa, derivada do boom de preços de nossas commodities. Paradoxalmente, esses preços elevados serviram para desequilibrar ainda mais a economia brasileira.
O panorama hoje é especialmente perverso: queda da produção; inflação renitente, com viés para cima; déficit público em ascensão, caminhando para 8% do PIB; déficit externo idem, rumo aos 4,5% do PIB; juros siderais e desemprego como drama anunciado. A cereja amarga desse bolo maligno fica por conta do monitoramento subjacente da política econômica feito pelas agências internacionais de risco. Os petistas já devem andar com saudades do FMI...
A má notícia é que atravessaremos, sim, dias difíceis. A boa notícia é que os críticos relevantes dessa governança capenga entendem que não há saída fora das regras da democracia, esta respeitável senhora de 30 anos. Eventuais tentações autoritárias se revelam, isto sim, é no discurso dos poderosos de turno. Mas, como diria o poeta Mário Quintana, também eles “passarão”, e o regime democrático “passarinho”. E ele canta bons amanhãs.

SENADOR DA REPÚBLICA, EX-PREFEITO E EX-GOVERNADOR DE SÃO PAULO

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terça-feira, 15 de julho de 2014

Plinio de Arruda Sampaio: homenagem a um homem honrado - Jose Serra

Um homem honrado
José Serra
Folha de S.Paulo, 15/07/2014

Morreu Plínio de Arruda Sampaio. Era um homem inequivocamente de esquerda sem nunca ter sido de fato marxista. Foi um democrata cristão no início de sua vida pública sem jamais ter sido um conservador. Sua personalidade complexa e aparentemente contraditória, que conheci bem, guardava uma notável coerência.

Concordasse eu com suas escolhas ou não – e é certo que, politicamente, estivemos mais próximos no passado do que em dias recentes –, tenho claro que Plínio rompeu barreiras políticas sempre por bons motivos, que nunca atenderam à sua conveniência pessoal. Há homens que admiramos não porque falam o que nós pensamos, mas porque falam o que eles pensam. Plínio se foi de bem com sua consciência, e aí está uma grandeza e uma paz merecidas.

A primeira vez em que ouvi falar dele foi na minha adolescência. Plínio era subchefe da Casa Civil do governo de São Paulo, e lhe coubera coordenar um plano de ação que orientaria os investimentos do Estado de 1958 a 1962, ano em que se elegeu com facilidade deputado federal pelo Partido Democrata Cristão.

No Congresso, foi relator do projeto de reforma agrária contemplado nas "reformas de base" do governo de João Goulart. Em abril de 1964, com o golpe militar, teve seu mandato cassado e seus direitos políticos suspensos por dez anos.

No exílio chileno, Plínio tornou-se técnico da FAO, num projeto de capacitação e pesquisa sobre a reforma agrária conduzido pelo governo democrata cristão de Eduardo Frei. Em Santiago, frequentar a casa de Plínio e Marieta era um dos meus hábitos preferidos em razão da acolhida de toda a família.

Depois da vitória da Unidade Popular, de Salvador Allende, no fim de 1970, ele se mudou para os EUA. Tornara-se funcionário do Banco Interamericano de Desenvolvimento. E foi lá que a família Sampaio nos acolheu em sua casa – a mim, mulher e dois filhos pequenos –, em meados de 1974, depois da prisão e perseguição que sofremos da ditadura do general Pinochet.

Após um mês e meio de hospedagem, fomos para a Universidade de Cornell, onde eu iria obter o doutorado em economia. Descobri que havia lá um mestrado em economia agrícola. Um pouco mais tarde, convenci Plínio a fazê-lo. Na pequena cidade de Ithaca, as duas famílias conviveram intensamente. Foi de lá que ele regressou ao Brasil, em 1976.

A partir de 1977, um grupo, do qual faziam parte eu, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, Almino Affonso e Plínio começou a discutir a ideia de se criar um novo partido de esquerda. Plínio e Almino propuseram lançar a candidatura de FHC ao Senado nas eleições de 1978, a fim de aglutinar as forças que comporiam a nova legenda.

Pensava-se em atrair Lula, o dirigente sindical mais expressivo da época, que viria a participar da campanha de FHC naquele ano. Em 1979, fez-se uma grande reunião aberta no ABC para impulsionar a criação do novo partido. Ocorreu, porém, o oposto: de um lado, Lula defendeu a criação de um partido operário; do outro, os "autênticos" do MDB, Fernando Lyra à frente, defenderam a permanência no MDB como frente ampla da oposição ao governo do general Figueiredo.

Plínio engajou-se então na criação do PT, com o respaldo de setores da Igreja Católica. A história posterior é mais conhecida. Mas vale registrar um episódio: em 1988, ele foi pré-candidato a prefeito de São Paulo. Apesar de sua experiência, foi preterido por integrantes do aparato petista. Em 1990, deram-lhe a candidatura ao governo do Estado, quando a chance de vitória PT era nenhuma.

Em 2010, ambos candidatos à Presidência da República, fui inquirido por ele em vários debates na TV: firme, sem fazer concessões. Em vez de me chamar de "Serra", preferia o "Zé", o vocativo de uma amizade de tantas décadas. E fazia essa escolha não porque pretendesse me preservar das nossas divergências, mas porque um confronto também pode ser elegante.

Velórios são tristes. Velórios de pessoas de bem são especialmente tristes. Eu estava lá porque queria dignificar as nossas diferenças. Eu estava lá, sobretudo, porque queria dignificar a nossa amizade – as diferenças e a amizade de um homem honrado, com uma família adorável.

JOSÉ SERRA, 72, foi ministro da Saúde e do Planejamento e Orçamento (governo FHC), prefeito de São Paulo (2005-2006) e governador de São Paulo (2007-2010) pelo PSDB

quinta-feira, 26 de junho de 2014

O partido neobolchevique continua fora do eixo - Jose Serra

O PT fora do eixo
José Serra
O Estado de S.Paulo, 26/06/2014

O PT não é um partido muito tolerante já a partir de seus próprios pressupostos originais e de seu nome: quem se pretende um partido "dos" trabalhadores, não "de" trabalhadores, já ambiciona de saída a condição de monopolista de um setor da sociedade. Mais ainda: reivindica o poder de determinar quem pertence, ou não, a essa categoria em particular. Assim, um operário que não vota no PT, por exemplo, não estará, pois, entre "os" trabalhadores; do mesmo modo, o partido tem conferido a "carteirinha" de operário padrão a pessoas que jamais ganharam o sustento com o fruto do próprio trabalho.


A fórmula petista é conhecida: a máquina partidária suja ou lava reputações a depender de suas necessidades objetivas. Os chamados bandidos de ontem podem ser convertidos à condição de heróis e um herói do passado pode passar a ser tratado como bandido. A única condição para ganhar a bênção é estabelecer com o ente partidário uma relação de subordinação. A partir daí não há limites. Foi assim que o PT promoveu o casamento perverso do patrimonialismo "aggiornado", traduzido pela elite sindical, com o patrimonialismo tradicional, de velha extração.

Afirmei no final de 2003 o que nem todos compreenderam bem, que o petismo era o "bolchevismo sem utopia". Aproxima-se do bolchevismo nos métodos, no propósito de tentar se estabelecer, se possível, como partido único; nas instâncias decisórias aproxima-se do chamado "centralismo democrático", que nada mais é do que a ditadura da direção central do partido. É bolchevista também na certeza de que determinadas ações até podem ser ruins para o Brasil, mas serão implementadas se parecerem boas para o partido. Como se considera que é ele que conduz a História do Brasil, não contrário, tem-se por certo que o que é bom para o partido será, no longo prazo, bom para o País e para o povo. Nesse sentido particular os petistas ainda são bastante leninistas.

Quando afirmei que lhes faltava a dimensão utópica, não estava emprestando um valor necessariamente positivo a essa utopia. Na minha ação política miro a terra que há, não a Terra do Nunca. E nela procuro sempre ampliar aquilo que é percebido como os limites do possível. De todo modo, é inegável que o bolchevismo tinha um devir, uma prefiguração, um sonho de um outro amanhã, ainda que isso tenha desembocado na tragédia e no horror stalinista. Mas isso não muda a crença genuína de muitos que se entregaram àquela luta. Isso o PT não tem. E chega a ser piada afirmar que o partido, de alguma maneira e em alguma dimensão, no que concerne à economia é socialista ou mesmo de esquerda. Muitas correntes de esquerda são autoritárias, mas convém não confundir o autoritarismo petista com socialismo. O socialismo tem sido só a fachada que o PT utiliza para lavar o seu autoritarismo - associado, infelizmente, a uma grande inépcia para governar, de que tenho tratado sempre nesta página.

Quero chamar a atenção é para o recrudescimento da face intolerante do partido. Como também já abordei aqui, vivemos o fim de um ciclo, que faz cruzar, episodicamente, a História do Brasil e a do PT. As circunstâncias que permitiram ao petismo sustentar o modelo que aí está - que nunca foi "de desenvolvimento", mas de administração oportunista de fatores que não eram de sua escolha - se esgotaram. Na, infelizmente, longa agonia desse fim de ciclo temos a economia semiestagnada, os baixos investimentos e a desindustrialização, os déficits do balanço de pagamentos em alta e a inflação reprimida. E, nota-se, o partido nada tem a oferecer a não ser a pregação terrorista de que qualquer mudança implicará desgraça nacional.

Não tendo mais auroras a oferecer, não sabendo por que governa nem por que pretende governar o País por mais quatro anos, e percebendo que amplos setores da sociedade desconfiam dessa eterna e falsa luta do "nós" contra "eles", o petismo começa a adentrar terrenos perigosos. Se a prática não chega a ameaçar a democracia - tomara que não! -, é certo que gera turbulências na trajetória do País. No apagar das luzes deste mandato, a presidente Dilma Rousseff decide regulamentar, por decreto - quando poderia fazê-lo por projeto de lei -, os "conselhos populares". Não por acaso, bane o Congresso do debate, verticalizando essa participação, num claro mecanismo de substituição da democracia representativa pela democracia direta. Na Constituição elas são complementares, não excludentes. Por incrível que pareça - mas sempre afinado com o bolchevismo sem utopia -, o modelo previsto no Decreto 8.243 procura substituir a democracia dos milhões pela democracia dos poucos milhares - quase sempre atrelados ao partido. É como se o PT pretendesse tomar o lugar da sociedade.

Ainda mais detestável: o partido não se inibe de criar uma lista negra de jornalistas - na primeira fornada estão Arnaldo Jabor, Augusto Nunes, Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Guilherme Fiuza, Danilo Gentili, Marcelo Madureira, Demétrio Magnoli e Lobão -, satanizando-os e, evidentemente, expondo-os a riscos. É desnecessário dizer que tenho diferenças, às vezes severas, com vários deles. Isso é parte do jogo. É evidente que o regime democrático não comporta listas negras, sejam feitas pelo Estado, por partidos ou por entidades. Mormente porque, por mais que se possa discordar do ponto de vista de cada um, em que momento eles ameaçaram a democracia? Igualmente falsa - porque há evidência dos fatos - é que sejam tucanos ou "de oposição". Não são. Mas, e se fossem? Num país livre não se faz esse tipo de questionamento.


Acuado pelos fatos, com receio de perder a eleição, sem oferecer uma resposta para os graves desafios postos no presente e inexoravelmente contratados para o futuro, o PT resolveu acionar a tecla da intolerância para tentar resolver tudo no grito. Cumpre aos defensores da democracia contrariar essa prática e essa perspectiva. Não foi assim que construímos um regime de liberdades públicas no Brasil. O PT está perdendo o eixo e tende a voltar à sua própria natureza.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

(Des)Governanca companheira: as seis leis do caos administrativo - Jose Serra

Ineficiência aprendiz e loquaz: 6ª antilei petista

08 de maio de 2014
José Serra* - O Estado de S.Paulo
Já se disse que a política requer duas habilidades. A primeira: é preciso prever o que vai acontecer amanhã, na semana que vem e no ano seguinte. A segunda: é preciso explicar depois por que as previsões não se cumpriram. Nisso, todos os países e partidos são iguais, mas o Brasil da era petista tem sido mais igual que os outros. Há um abismo angustiante entre o que o atual governo prevê e a capacidade de explicar por que as coisas não acontecem.
Entre as previsões megalômanas e os resultados pífios, há o reino das antileis petistas, cultivadas cuidadosamente pela presidente Dilma e sua equipe. A primeira delas, uma espécie de cláusula pétrea do petismo, prescreve a necessidade de utilizar o máximo de palavras para expressar um mínimo de pensamento. Querem um exemplo magnífico? Vejam o que a então candidata disse sobre e elevada carga tributária no Brasil num debate da campanha presidencial de 2010 (transcrevo como foi dito): "O Brasil sai também de um nível muito elevado de carga tributária, e, agora, eu acho que ele entra numa fase de com a reforma tributária de decréscimo. Houve muitas pessoas contrárias à reforma tributária nos últimos anos. Agora, seguramente, o crescimento do PIB e a redução dos juros permitirá um Brasil mais desenvolvido". Diga-se, a propósito, que essa "reforma tributária de decréscimo", seja lá o que for isso, conviveu com a elevação da carga de tributos durante o governo Dilma ao nível mais alto da história.
A segunda antilei viola o princípio de que a menor distância entre dois pontos é uma linha reta; para eles, é uma curva torta. Este passou a ser o critério dominante das ações de governo: sempre pelo caminho mais longo, incerto e penoso. A terceira antilei supõe que o sol e os planetas giram em torno da Terra, ou seja, a presidente e seu partido coordenam e comandam o universo da política, da economia e das instituições, de modo que as conspirações da mídia e da oposição para enfraquecê-los podem provocar algum Big Bang que vá explodir o País, ou algum buraco negro que o devore. Outra antilei, a quarta, prescreve a transformação contínua de facilidades em dificuldades. Nada que seja fácil de fazer deve ser feito. Por exemplo, cria-se um programa chamado "Ciência sem Fronteiras" para enviar bolsistas ao exterior, mas se deixa de lado o requisito prévio de que os estudantes devam dominar o idioma do país que os recebe. Eles chegam ao Canadá, não falam inglês e têm de ser repatriados ou de fazer curso de línguas em Toronto, com o dinheiro dos contribuintes brasileiros. Geram-se atritos e desperdícios, além de desmoralizar a ideia de proporcionar aos nossos jovens novos conhecimentos que os beneficiem e ao nosso país.
Há uma quinta antilei - essa, reconheço, do agrado especial de Dilma (se ela não existisse, a mandatária certamente a editaria como medida provisória): cada ministro deve saber menos do que a presidente sobre a sua área de responsabilidade. As ideias e a forma de execução dos projetos ficam por conta da chefe do Executivo, que exibe, entre seus principais atributos, precisamente a falta de conhecimento dos assuntos de governo e a baixa capacidade de gestão.
Finalmente, ao menos por ora, há uma sexta antilei, que é muito forte: chega-se ao governo não para administrar, mas para aprender, como se fosse um curso supletivo ou de graduação. Isso vale para toda a nação petista, nos três níveis da Federação - União, Estados e municípios. O exemplo mais recente e vistoso, sem dúvida, ocorre na cidade de São Paulo, cuja administração se dedica ao papo-cabeça e aos experimentos macrolaboratoriais, em que as cobaias são os paulistanos sofredores. É o caso, por exemplo, da devolução dos hotéis da Cracolândia aos traficantes de droga a fim de que recebam seus clientes e dos subsídios dados aos dependentes químicos para que paguem preços mais altos pelo crack.
Na esfera federal, é antológica uma confissão da ministra do Planejamento, Miriam Belchior, feita numa boa, em 2011, sobre a dificuldade que estava encontrando na elaboração do Plano Plurianual (2012-2015): "Não é possível monitorar e muito menos ser efetivo com 360 programas. No PAC, todo mundo está reaprendendo a fazer obras de infraestrutura - nós, do setor público, e também o setor privado". Isso depois de oito anos de governo do PT e já sob a presidência de Dilma, anteriormente consagrada como genitora do PAC pelo então presidente Lula!
Outra preciosa declaração, em setembro do ano passado, da então ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, mostrou que, no 11.º ano de governo, o PT ainda não sabia o que fazer com as concessões de estradas: chegou a dizer que a concessão da BR-101, na Bahia, iria ficar por último "a fim de termos uma avaliação melhor". E continuou: "Se chegarmos à conclusão de que é impossível fazer concessão, vamos migrar para obra pública". Como escrevi na ocasião, "quantos anos já transcorreram e quantos ainda teremos pela frente até essa terapia infraestrutural de grupo chegar ao fim?".
Nesse emaranhado de antileis, vigilantemente aplicadas, pode-se vislumbrar a chama que tem derretido o prestígio de Dilma junto da população. Até porque as pessoas vão se dando conta, cada vez mais, da antilei n.º 1, que maximiza o palavrório e minimiza o pensamento, dificultando a explicação, já não diria convincente, mas, ao menos inteligível, da frustração das previsões originais e das que são refeitas a cada mês.
A mais reluzente das explicações carece de qualquer lógica: atribui-se à dobradinha entre imprensa e oposição a culpa pelas lambanças na Petrobrás, pela perda de mais da metade do patrimônio da empresa e pelo endividamento que bate o recorde mundial. Tudo isso faria parte de uma diabólica estratégia daquela dobradinha para privatizar a gigante do petróleo. De acordo com esse delírio, quanto mais desmoralizada ela estivesse, mais fácil seria sua privatização! Tenho a certeza de que tal disparate, em lugar de convencer, ofende as pessoas e aquece a chama do derretimento político não só da presidente, mas de um estilo de governo.
*José Serra é ex-governador e ex-prefeito de São Paulo.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Eleicoes 2014: uma chapa Aecio-Serra? - Reinaldo Azevedo

José Serra e Aécio Neves numa mesma chapa: será que pode ser desta vez?
José Serra e Aécio Neves numa mesma chapa: será que pode ser desta vez?
José Serra, afinal de contas, pode ser o vice de Aécio Neves na disputa presidencial? Pode. Vai ser? Bem, aí fica difícil dizer. O fato é que o assunto está ganhando corpo. E, até onde se pode perceber, sem a participação ativa nem de um nem de outro. Aécio é o único dos três principais candidatos que não tem ainda um vice definido, e é natural que o partido faça esse debate. O que eu penso? Acho que formariam uma chapa extremamente competitiva e que se estaria diante de um fato novo na disputa — este, sim, capaz de mexer também com o eleitorado, não apenas com o noticiário, como aconteceu com a união entre Marina Silva e Eduardo Campos. Até agora, convenham, parece que uma parcela mínima, se é que aconteceu, do eleitorado da líder da Rede migrou para o candidato do PSB.
Em política, o elemento subjetivo conta, claro!, mas eu acredito muito na força das condições objetivas. Não é segredo para ninguém que a relação entre ambos em disputas anteriores não foi exatamente tranquila. Mas me parece que cabe ao PSDB constatar, como diria o poeta, que um “valor mais alto se alevanta”. Se a eleição fosse hoje — e ainda bem que não é —, Dilma seria reeleita, embora, e parece que ninguém duvida disso, nem ela mesma saiba muito bem por quê. Na verdade, nem o PT. Uma espécie de cartilha lançada pelo partido em seu Encontro Nacional se ocupa mais em dizer por que seus adversários não podem ser eleitos do que em explicar por que ela deve ser reeleita. Em política, a necessidade é um excelente remédio e uma ótima conselheira. E o país precisa dos tucanos unidos — com ou sem a formação da chapa com os dois nomes, diga-se.
Quem acompanhou os artigos escritos por José Serra nos últimos três anos, que estão em sua página pessoal, sabe que ele anteviu com precisão quase milimétrica os descaminhos da economia brasileira, ainda que este ou aquele divirjam de eventuais soluções que propõe. Que fez prognósticos e diagnósticos impecáveis, nem os adversários podem negar. E está, também há poucas dúvidas a respeito, entre os melhores gestores públicos que há no país.
Aécio Neves tem conseguido dar corpo e musculatura à sua candidatura. É, inequivocamente, um homem de oposição — uma tarefa que tem se mostrado ingrata e difícil no país, dada a presença do estado na economia e do governo na vida das pessoas. O oficialismo é onipresente na imprensa até por força inercial, e a mensagem dos que divergem chega com muita dificuldade ao público. Serra é mais conhecido nacionalmente, por enquanto ao menos, do que o senador mineiro e tem, é óbvio, mais presença em São Paulo, o maior colégio eleitoral do país.
Solução não pode ser problema
Estou entre aqueles que, como analista mesmo, não como torcedor — embora todos saibam que eu jamais votaria em Dilma —, avalia que o momento é bom para as oposições, em especial para a candidatura do PSDB. É fato, no entanto, que é preciso avançar, mudar de estágio, e um Serra vice me parece que seria uma solução inteligente. Aécio evidenciaria ainda que foi capaz de unir o partido, acabando com uma quase fratura histórica.

Mas solução não pode ser problema. Em lugar de Serra, eu não moveria uma palha para que isso acontecesse. Em lugar de Aécio, eu faria o convite na hora adequada. Essa solução só é possível se for, de fato, consensual — ou se eventuais arestas forem aparadas no mais absoluto silêncio. Se for preciso quebrar uma única lança, mínima que seja, então não vale a pena. Porque aí o ativo vira matéria de rixa política e de questões menores. O PSDB precisa querer.
“Ah, mas se Aécio tivesse topado ser vice de Serra em 2010…” Em política e em história, não existe “se”. Existe o fato. O fato é que as circunstâncias, hoje, conspiram a favor de uma candidatura de oposição — realmente de oposição — e que a união entre Aécio e Serra é uma resposta com a qual muita gente conta e há muito tempo. Mas reitero: tem de ser uma operação suave, que torne tudo mais fácil e mais agradável, como quando se harmoniza uma música. Se for para produzir dissonâncias, convenham: ninguém, muito menos o país, precisa disso. E, claro, encerro com o óbvio: para que ocorra, Aécio precisa querer Serra como vice, e Serra precisa querer ser vice de Aécio. O bom é que ambos são livres para escolher e que ninguém está obrigado a nada, nem pelas circunstâncias.
Mas que seria um golaço da oposição, isso seria.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A vergonha de ser brasileiro: em 1965 e agora, com a Venezuela - Jose Serra

Estados Unidos do Atraso Sul-Americano
José Serra*
O Estado de S.Paulo, 27/02/2014

Quando o governo Dilma endossou uma nota detestável que o Mercosul emitiu sobre a crise política na Venezuela, que exerce sua presidência rotativa, o atraso político chegava, finalmente, à altura do obstáculo que o bloco econômico tem representado para o Brasil. Explicarei o que quero dizer.
Ao lado das diferenças, durante seus mandatos presidenciais, o coronel Hugo Chávez e Lula tiveram ao menos três coisas em comum. Em primeiro lugar, desfrutaram a mais espetacular fase de bonança externa de que se tem memória, traduzida em juros internacionais no chão e preços de exportações primárias nas nuvens - petróleo, de um lado, produtos agrominerais, do outro. Em segundo lugar, enfraqueceram suas economias, desindustrializando-as e tornando-as muito mais dependentes do exterior em matéria de consumo e bens de investimentos - justo eles, que se diziam de esquerda e, com diferença de graus, anti-imperialistas... Em terceiro lugar, deixaram heranças econômicas amargas para seus sucessores, que se revelaram, infelizmente, plenamente despreparados para governar de verdade, isto é, entender a situação, antecipar-se aos acontecimentos, formular e implantar estratégias de recuperação, saber comunicar-se e amenizar as expectativas pessimistas sobre o futuro de suas economias e de seus países.
Tudo em termos relativos, é óbvio. Na Venezuela, em face do maior subdesenvolvimento e do componente ditatorial do regime chavista, a crise tem sido infinitamente pior. A economia e o abastecimento derreteram. A inflação avizinha-se dos 60% ao ano - é a maior do mundo. Há forte escassez de alimentos. O preço do dólar paralelo é oito vezes maior que o oficial. A falta de divisas paralisa as atividades que utilizam insumos importados e provoca desabastecimento de 50% dos medicamentos. Por isso tudo, os antagonismos tornaram-se muitíssimo mais exacerbados. Há motivos de sobra para as pessoas irem às ruas reclamar.
O governo venezuelano já tinha suprimido na prática a liberdade de imprensa e fechado os caminhos da oposição e agora reinaugurou no continente a era das prisões políticas e do assassinato de opositores anônimos, com suas forças paramilitares. Uma espécie de SA nazista à moda venezuelana. O desenlace poderá ser trágico, mesmo que o presidente Nicolás Maduro continue sob a proteção da alma dickenseniana de Chávez, com quem ele assegura conversar regularmente.
O PT tem afinidade eletiva com o chavismo e a reação do governo brasileiro ante a repressão aos manifestantes de oposição na Venezuela trouxe a política externa do Brasil ao seu nível mais baixo desde 1965, quando o general-presidente Castelo Branco, na postura de ajudante de ordens do presidente Lyndon Johnson, mandou tropas para auxiliarem os EUA na invasão da República Dominicana. Nessa época eu vivia no exílio e convivia com estudantes de vários países da América Latina - os leitores não calculam a vergonha que dava ser brasileiro naquele momento da invasão. No episódio venezuelano não estão envolvidas tropas, mas houve um sopro de maior covardia: foi disfarçado de membro do Mercosul que o Brasil subscreveu o manifesto que culpou as vítimas pelos massacres e pela instabilidade do governo de Maduro.
Quando foi deposto o presidente Fernando Lugo, dentro das regras constitucionais, o petismo e o kirchnerismo resolveram suspender o Paraguai do Mercosul, invocando a cláusula democrática, que virou piada. Aproveitaram para aprovar o ingresso da Venezuela no bloco, ao qual os paraguaios se opunham, com poder de veto.
A estupidez política, finalmente, se casava com a estupidez econômica. O pior do Mercosul não veio do atual governo brasileiro nem dos Kirchners ou de Maduro. Nasceu nos governos Collor e Menem, no início dos anos 90, quando previram um acordo que criaria, além de uma zona de livre-comércio entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai - o que era correto -, também uma união alfandegária em quatro anos, o que Europa demorou 40 para fazer. Ou seja, se o Brasil quiser fazer um acordo com algum país para ampliar seu comércio, os demais membros do Mercosul têm o direito de obstruir ou vetar caso não se sintam bem atendidos.
Isso é o que está acontecendo, por exemplo, com a tentativa brasileira de negociar com a União Europeia (UE), que já dura mais de dez anos. Os argentinos têm retardado a negociação, e podem fazê-lo, embora de forma humilhante para nós: em reunião preparatória já exigiram até que o Brasil se retratasse das declarações da nossa embaixadora junto à UE, que havia atribuído a eles o notório atraso na apresentação da proposta conjunta.
A solução mais fácil, porém, não é ficar brigando com a Argentina, mas acabar com a união alfandegária de vez, deixando ao Mercosul a tarefa já hercúlea da zona de livre-comércio, hoje tão incompleta. Só que isso vai contra um dogma do atual governo brasileiro: transformar facilidades em dificuldades.
O colapso da política externa brasileira é apenas um detalhe da perda de rumo de um partido e de um projeto de governo que fracassaram. Sua agenda evaporou-se e, agora, os petistas estão à cata de outra qualquer que lhes permita montar, para usar o termo da moda, uma narrativa eficaz para a campanha eleitoral. Com a agravante de que aquela cascata da suposta "herança maldita recebida do neoliberalismo" já não cola. Não é mais possível demonizar as privatizações, agora que o PT se ajoelha no seu altar, orando pelo advento da grande panaceia para tudo.
O governo atual conseguiu a façanha de combinar a estagflação com expectativas péssimas sobre o futuro da economia, piores até do que os principais indicadores justificariam. O grande pesadelo dos agentes econômicos hoje não são o baixo crescimento, os juros siderais (de novo, os maiores do mundo) ou o déficit externo, o terceiro mais alto do planeta em volume e o segundo como porcentagem do PIB. O que os assusta de verdade é a possibilidade de que esse governo se prolongue por mais quatro anos. Haja aflição!

*José Serra é ex-prefeito e ex-governador de São Paulo.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Os aprendizes de feiticeiro no comando da economia brasileira - Jose Serra

Texto de José Serra sobre o recente "leilão" -- que não foi leilão, mas simples concessão a um único consórcio -- dos recursos do pré-sal, numa operação mal conduzida pelos companheiros, incompetentes como sempre, e no comando de setores estratégicos da economia brasileira, e ajudando a afundá-lo em razão de seu total despreparo para o setor.
Paulo Roberto de Almeida

O PT transformou uma facilidade, que era o sistema de concessões na área do petróleo, numa dificuldade, que é esse regime de partilha. A obrigatoriedade da Petrobras de participar com um mínimo de 30% de cada empreendimento vai muito além da capacidade financeira e administrativa atual da empresa. E isso se tornou especialmente sádico no contexto das dificuldades que a Petrobras enfrenta, decorrentes dos péssimos investimentos em refinarias, que a obrigam a importar volumes crescentes de combustíveis e acumular grandes prejuízos, em razão da defasagem de preços. Os governos do PT conseguiram criar a situação mais crítica da historia de 60 anos da empresa, apesar de ela ser um monopólio, de ter recebido um aporte do Tesouro de 150 bilhões de reais, de possuir grandes reservas do óleo, dos preços superiores a 100 dólares o barril e do domínio da tecnologia de extração em águas profundas.

O regime de partilha afastou empresas da concorrência pela exploração dos campos de Libra. Deixou de proporcionar mais recursos ao país. Mais ainda: para viabilizar o único grupo que se dispôs a entrar no leilão, a Petrobras obrigou-se a participar com 40% do projeto. Portanto, dos 15 bilhões de reais que o governo deveria receber como bônus, 6 bilhões caberão à Petrobras. Ela não tem esse dinheiro. Provavelmente os sócios chineses a financiarão. Por isso mesmo e por outras razões, as estatais da China, que entraram com 20% do projeto, terão uma força maior no comando da exploração. A economia brasileira é hoje dependente da chinesa, e a postura do governo brasileiro em relação aos chineses é sempre reverente e concessiva. Não tenham a menor dúvida: em matéria de exploração do nosso petróleo, o Brasil teria muito mais força ao lidar com empresas privadas internacionais do que com as estatais chinesas. Estas não são
objeto, no seu país de origem, de manipulação política e de negócios especiais. E pertencem a um governo que tem visão de médio e longo prazos, por incrível que isso possa parecer no Brasil de hoje. 


Antes mesmo do leilão de hoje, técnicos do governo já falavam em off para a imprensa que no futuro o modelo da partilha deve mudar, que não é adequado, etc. Ou seja, as grandes questões do país continuam a ser objeto de experimentação, de gente que transforma soluções em problemas, que vai para o governo fazer curso de graduação em administração pública. Isso tem duas consequências: atrasar os investimentos e fazer coisas malfeitas.
José Serra, 22/10/2013

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A Constituicao aos 25 anos: artigo de Jose Serra (FSP), caderno especial do Estadao

José Serra
Folha de São Paulo, 05/10/2013

Nos 25 anos da Constituição que Ulysses Guimarães classificou de “cidadã”, alinho-me com aqueles que avaliam que uma das virtudes da Carta é sua vocação garantidora de direitos. Foi, nesse caso, o bom uso que se fez de circunstâncias que não eram da nossa escolha. Explico-me: finda a ditadura militar, a Lei Maior procurou expressar o seu repúdio ao autoritarismo, precavendo-se de tentações golpistas e da agressão a direitos individuais. Mas também é preciso dizer que fizemos uma Carta excessivamente marcada por contingências, com o olhar, muitas vezes, posto no retrovisor. Seus defeitos, curiosamente, não foram obra nem da esquerda nem da direita, mas do atraso. No Brasil, infelizmente, os direitistas costumam deixar de lado o conservadorismo virtuoso, e os esquerdistas, o igualitarismo generoso.
Poucos parecem divergir, a esta altura, da constatação de que o principal mérito da Constituição de 1988 é a consagração das liberdades democráticas — de opinião, manifestação e organização — e das garantias individuais:  a criminalização inequívoca do racismo, a  abolição do banimento e da pena de morte, o livre exercício dos cultos religiosos, o repúdio à tortura e a tratamentos desumanos ou degradantes dos cidadãos,  etc. Isso tudo  ficou condensado no artigo 5º, o mais extenso da Carta, com quatro parágrafos e 78 incisos.
À parte o capítulo das liberdades públicas e individuais, destaco, em planos distintos, como os maiores avanços da Carta de 1988 a concepção do SUS;  a  criação de um fundo (posteriormente chamado FAT) que reuniu as contribuições do PIS PASEP para   tornar viável o seguro desemprego e , ao mesmo tempo, financiar investimentos;  o dispositivo que definiu o salário mínimo como o piso dos benefícios previdenciários de prestação continuada; os capítulos que lidam com finanças públicas e controle externo ao Executivo e ao Legislativo —  os tribunais de contas, por exemplo, foram extremamente fortalecidos nas suas atribuições; novos marcos para a política ambiental; o fortalecimento do Ministério Público e a instituição do segundo turno na eleição para presidente, governadores e prefeitos em cidades com mais de 200 mil eleitores.
Mas há também alguns defeitos severos, que apontei e combati quando deputado constituinte — muitas das críticas foram expressas em artigos semanais nesta Folha: a prolixidade;  as concessões de natureza corporativa; a prodigalidade fiscal; a falta de um regime geral de previdência mais homogêneo e adequado ao longo prazo; o atrelamento dos sindicatos ao Estado e a falta de inovação em matéria de sistema político e eleitoral. Deixo de mencionar aqui algumas aberrações aprovadas a respeito da ordem econômico-financeira, removidas nos quinze anos seguintes por intermédio de emendas constitucionais. Tomei a inciativa, como senador, de escoimar da carta os absurdos na área financeira. Contei com o apoio, faça-se justiça aos fatos, do então líder do PT no Senado, José Eduardo Dutra.
A prolixidade não precisa ser provada; é auto-evidente: 245 artigos e 97 disposições transitórias, com numerosos parágrafos e incisos, muitos  deles típicos de leis ordinárias, decretos, portarias ou simples declarações de intenção em discursos parlamentares. Um  exemplo pitoresco? A constitucionalização da existência da Justiça Desportiva e a garantia de “proteção e incentivo às manifestações desportivas de criação nacional”, o que, por óbvio, deixou de fora o futebol, o vôlei e o basquete…
Ao contrário do que se pensa, os interesses corporativos principais cravados na Constituição não foram os do setor privado, mas os da área da administração pública, de que é exemplo escancarado a estabilidade para os servidores não concursados de órgãos públicos que estavam empregados havia mais de cinco anos da data de promulgação da Carta. Abriu-se caminho  ainda para toda sorte de isonomias salariais, permanente e poderoso mecanismo gerador de despesas.
Esse aspecto corporativista da Constituição representou um fator decisivo na chamada prodigalidade fiscal. Outro foi a forte redistribuição federativa de receitas tributárias, sem que houvesse, paralelamente, nenhuma descentralização de encargos — feroz e eficazmente combatida pelas corporações de funcionários e de clientes dos setores envolvidos.
Se a força e a amplitude dos direitos e garantias fundamentais deveu-se à ruptura com um regime de força — tratava-se de esconjurar o passado —, os defeitos da Carta de 1988 estão relacionados a contingências políticas e às falsas expectativas que gerou. Afinal, a Assembleia Nacional Constituinte tinha sido uma bandeira da oposição ao regime militar desde a segunda metade da década de 1970. Não era vista apenas como o umbral da liberdade, mas também da prosperidade e da justiça social.
Havia uma expectativa de elevação imediata do bem-estar social, o que havia sido proporcionado, note-se, pelo Plano Cruzado, na sua fase bem-sucedida em 1986, proporcionando muitos votos ao PMDB nas eleições desse ano. Ocorre que a agonia do plano coincidiu com o início dos trabalhos da Constituinte, no começo de 1987.  A sombra da inflação de dois dígitos mensais, fator de profunda perturbação e instabilidade social, fez sombra na Assembleia até o fim. Parlamentares e partidos se moviam freneticamente para mostrar serviço aos eleitores e para responder a demandas da opinião pública, procurando mitigar insatisfações com a criação de preceitos constitucionais. Ou por outra: uma Carta Constitucional, que é feita, por definição, para durar e para estar acima de contingências, transformava-se em fator de ajuste de tensões sociais e conflitos distributivos corriqueiros.
O colapso da estabilidade econômica enfraqueceu rapidamente o governo Sarney e ampliou a distância entre o mandatário e o PMDB, partido ao qual se filiara exclusivamente para assumir a condição de vice na chapa encabeçada por Tancredo Neves. O setor mais influente do partido deu início aos trabalhos para redigir a nova Carta procurando diferenciar-se do governo. Ganhou força a ideia de uma Assembleia que editasse Atos Constitucionais que se sobrepusessem ao Executivo. Isso acabou não acontecendo, mas inaugurou um tipo de conflito que se manteria até o final do processo constituinte.
O confronto mais relevante teve como objeto a duração do mandato de Sarney, que tinha sido eleito com Tancredo para governar por seis anos, mas aceitava cinco. O então líder da bancada do PMDB, Mário  Covas, defendia quatro e emplacou esse número numa primeira versão da Constituição, vinda da Comissão de Sistematização, em meados de 1987, junto com a aprovação do parlamentarismo. O presidente Sarney propôs um acordo: apoiaria o parlamentarismo se lhe dessem cinco anos e o direito de indicar um primeiro ministro com estabilidade inicial de dez meses, se a memória não me falha. O PMDB recusou a oferta. O governo não mediu esforços para garantir os cinco anos, recorreu a todas as armas da fisiologia, para dizer o mínimo, e saiu vitorioso. O trágico é que o parlamentarismo acabou sendo tragado pela voragem.
A impopularidade e a insegurança do governo, determinadas pela inflação galopante e pelos conflitos com a Assembleia, retiraram do governo a capacidade de assumir um papel relevante na formação do texto constitucional. Na verdade, o Planalto se omitiu, especialmente em relação aos gastos — chegou a apoiar medidas nesse sentido.  O chamado “Centrão”, um agrupamento de parlamentares mais ligados ao governo, só tinha compromisso com os cinco anos e o presidencialismo. No mais, dispôs de plena autonomia para defender suas propostas.
É preciso destacar ainda as condições difíceis em que atuou o PMDB, o maior partido do Congresso. Era já uma força extremamente heterogênea, cindida por interesses regionais. Chegou à Constituinte sem uma concepção sobre a Carta ou a forma de organizar o trabalho. Além disso, ficou politicamente dividido entre suas duas figuras principais, ambos aspirantes à Presidência nas eleições seguintes: Ulysses Guimarães e Mário Covas. O primeiro era o presidente da Assembleia; o segundo, líder do partido, eleito contra o candidato de Ulysses.
Alguns analistas se confundem ao procurar entender o texto constitucional a partir da dinâmica de conflitos entre “esquerda” e “direita”. A chamada direita, no Brasil, não se expressa pelo conservadorismo, mas pelo atraso. Nem remotamente é austera. O texto substitutivo do Centrão era mais gastador e prolixo, mais recheado de casuísmos, privilégios corporativos, vinculações e isonomias do que o já pródigo projeto que fora por ele derrubado, da Comissão de Sistematização, este sim comandado pela fatia do PMDB que se afastara do governo.  Mesmo o Centrão, note-se, manteve no seu projeto todas as garantias democráticas do relatório que conseguiu derrubar. Estas não foram objeto de nenhum confronto significativo no desenrolar de todo o processo. E,  só por curiosidade, foi do Centrão, do deputado Gastone Righi, a criação do abono de férias para todos os assalariados…
O que se poderia chamar “esquerda”, à época, era dominada pela concepção do Estado varguista e as ideias das décadas de 50 e 60, alienadas das mudanças que já estavam acontecendo no mundo e que só começariam a tornar-se mais transparentes no Brasil depois da queda do Muro de Berlim. Para ela, eram exóticas as preocupações com inflação, quadro fiscal, travas ao investimento privado e paternalismo estatal, sem mencionar a confusão permanente e até contradição entre benefícios para corporações restritas e  os interesses sociais mais amplos.
Os dois lados exibiram seu antagonismo — o que politicamente convinha a ambos — com farta cobertura da imprensa. O tema foi a reforma agrária, e o confronto se deu em torno da função social da propriedade e da possibilidade de se desapropriarem propriedades produtivas. Tudo acabou resolvido em dois artigos. Noves fora as diferentes formas de lidar com o MST e  com a inconstitucional violência rural, nenhum governo posterior procurou mexer no texto desses artigos nem deixou de levar adiante o caríssimo processo da reforma agrária.

Não por acaso, os dois lados, com a cumplicidade de sucessivos governos, foram e continuem sendo integrantes ativos do mais consolidado de todos os partidos brasileiros: a FUCE – Frente Única Contra o Erário e a favor das corporações de interesses especiais. Ninguém é mais falsamente de esquerda do que ela. Ninguém é mais falsamente de direita do que ela. Ninguém, como ela, é tão objetivamente contra os interesses do Brasil e dos brasileiros.
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Editorial do Estadão e caderno especial: 

25 anos de Constituição

Editorial O Estado de S.Paulo, 6/10/2013

A Carta Magna chega aos 25 anos diante de um País que se mobiliza nas redes e vai às ruas por direitos sociais sem deixar de garantir a estabilidade democrática

Cidadã é o adjetivo que, com simplicidade e realismo, define a Constituição promulgada há 25 anos, em 5 de outubro de 1988. Comandada por Ulysses Guimarães, o político que ganhou a alcunha de “tetrapresidente”, a Assembleia Nacional Constituinte, formada por 559 membros (72 senadores e 487 deputados), foi o marco da transição democrática.
Nesse quarto de século, as mudanças de governo ocorreram todas sob normalidade institucional, mesmo quando um presidente foi afastado. 
O Brasil de 2013 foi às ruas usando as redes sociais como instrumento de mobilização por mais cidadania, e a liberdade de expressão se consolidou como regra do regime democrático. Esse direito, garantido em cláusula pétrea da Carta - não pode ser alterada nem por emenda -, acabou por se transformar em um dos principais valores para uma convivência harmoniosa no País.
Se a Constituição é cidadã, a Nação ainda é claudicante no quesito cidadania. Poucas iniciativas populares, como a Ficha Limpa, se transformaram em lei. Ao mesmo tempo, a Carta está pronta para enfrentar os desafios digitais que surgiram nos últimos 25 anos. 
Promulgada com 250 artigos no texto-base (e mais 97 disposições transitórias), a Constituição teve, ao longo de duas décadas e meia, 48% de seus artigos alterados por emendas. Os três últimos presidentes - FHC, Lula e Dilma - editaram e editam, em média, mais de três medidas provisórias por mês. O polêmico debate das MPs durante a Constituinte assegurou, no sistema presidencialista, excesso de poder ao Executivo e acaba por gerar desarmonia entre os Poderes. 
Fruto de uma construção coletiva, a Carta de 1988, ao idealizar o Estado de bem-estar social, serviu de justificativa para a elevação dos impostos. Municípios e Estados receberam mais recursos do bolo tributário, mas a descentralização dos serviços públicos não tira a discussão sobre o pacto federativo da pauta. 
O adjetivo dado por Ulysses não dá conta, porém, de toda a polêmica sobre o excesso de detalhes do texto. Ainda assim, esses 25 anos não apagaram o mantra do “Sr. Diretas”, morto em 1992: “Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.”

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Privatizacoes/concessoes de aeroportos: um artigo desmistificador - Jose Serra

Primeiro, esta nota liminar de advertência, para já desarmar, ab initio, eventuais comentários maldosos, quando não ofensivos, que também pululam por aqui -- de Adesistas Anônimos ou de simples mercenários a soldo das Patifarias Totalitárias, que também existem, e muito em todos os espaços abertos, nos quais os companheiros exercem sempre sua vocação para a mentira, a intolerância e o ódio dos que não se rendem a suas causas obscuras e regressistas -- e ela vai neste sentido:
Este blog é dedicado prioritariamente a temas de relações internacionais e de política externa do Brasil, mas seu responsável, antes de ser especialista (ou não) em qualquer coisa, é um cidadão consciente de seus deveres civis, atento aos processos correntes de governança e sumamente preocupado com as políticas públicas, que afetam a todos e a cada um de nós, pois o que os governantes fazem, é sempre com o nosso dinheiro obviamente, e isso tem impacto permanente em nossas vidas e no itinerário deste país.
Por isso não renuncio, nunca, a expressar minha opinião sobre aspectos cruciais de nossa vida em sociedade e sobre as políticas que afetam nossas vidas.
Dito isto, aqui vai o alerta propriamente dito.
O artigo que eu posto abaixo, desse político conhecido, candidato várias vezes -- duas delas frustradas à presidência da República, eu o considero como sendo um texto absolutamente preciso, tecnicamente fundamentado, mostrando didaticamente a realidade do processo de privatização (ou concessão, como se queira) dos aeroportos, denunciando os erros da metodologia adotada, sem mencionar que desmantela também as mistificações e mentiras feitas em torno disso pelo governo atual.
Nisso não vai minha adesão a sua candidatura -- esse é um fato objetivo da vida política nacional, que independe do que vai postado neste blog -- nem minha adesão a qualquer partido brasileiro.
Reafirmo minha posição: não sou membro, nunca serei, de NENHUM partido brasileiro, jamais serei candidato a qualquer coisa (apenas a escritor compulsivo, e já é muito) e não pretendo apoiar ou desapoiar ninguém. Apenas que não renuncio a minha capacidade de pensar e de expressar minha opinião sobre aspectos cruciais da vida nacional.
Esta é uma dessas oportunidades. Apenas isto.
Paulo Roberto de Almeida



Mitos e equívocos

José Serra
As avaliações sobre a recente privatização de três aeroportos brasileiros tem misturado duas coisas: a questão política, enfatizada pela maior parte da oposição e retomada pelo PT, e a da forma e conteúdo do processo.
Ao contrário do que se propalou, as privatizações dos aeroportos de Guarulhos, Brasília e Campinas (Viracopos) não são as primeiras dos governos do PT. Basta lembrar as espetaculares privatizações na área do petróleo, lideradas pelo megainvestidor Eike Batista, sob a cobertura da lei aprovada no governo FHC — alterada recentemente para pior— e as na geração e transmissão de energia elétrica.
Outra ação privatizante digna de menção foi nas estradas federais, que fracassou, não obstante o clima de comemoração na época. Fez-se a concessão de graça, pôs-se pedágio onde não havia, mas os investimentos não chegaram, as estradas continuaram ruins e o governo federal só faz perdoar as faltas dos investidores. Um modelo furado, que pretendia ser opção vantajosa ao adotado por São Paulo, com vistas a dividendos eleitorais em 2010.
O padrão petista de privatização chega ao dinheiro público. O governo faz concessões na área elétrica e as subsidia, via financiamentos do BNDES e reduções tributárias. Não se trata de dinheiro do FAT, mas tomado pelo Tesouro à taxa Selic, repassado ao BNDES a custo bem inferior. Outro exemplo é o da importante e travada Ferrovia Transnordestina. O governo está pagando quase toda a obra, com dinheiro subsidiado, mas a propriedade da concessão é privada. Quem banca a diferença? O contribuinte, é lógico. Quem faz a filantropia? Os governos petistas, cujas privatizações são originais, ao incluírem grandes doações de capital público ao setor privado.
O outro grande exemplo —felizmente, ainda virtual— é o do trem-bala Rio-SP, projeto alucinado que poderá custar uns R$ 65 bilhões, a maior parte de recursos diretos ou indiretos do governo federal e até mesmo dos estados, via renúncia fiscal, ou dos municípios, que teriam de fazer grandes obras urbanas. O governo quer bancar também os riscos operacionais do empreendimento: se houver número insuficiente de passageiros, o Tesouro comparecerá para evitar prejuízo para o empreendedor privado!
Para alguns representantes extasiados da oposição, com as concessões dos aeroportos, “finalmente o PT se rendeu à privatização”, como se este governo e o anterior já não tivessem promovido as outras que mencionamos. Poderiam sim ter lembrado do atraso de pelo menos cinco anos na entrada do setor privado na atividade aeroportuária —atraso ocorrido quando a  agora presidente comandava a infraestrutura do Brasil.
As manobras retóricas do petismo são toscas. O primeiro argumento, das cartilhas online e de grandes personalidades do partido, assegura que não houve “privatização” de aeroportos, mas “concessão”. Ora, no passado e no presente, os petistas chamavam e chamam as “concessões” tucanas (estradas em São Paulo, telefonia, energia elétrica, ferrovias, etc.) de “privatização”.
O PT argumenta ainda que a Infraero mantém 49% das ações de cada concessionária. Isso é vantagem? Em primeiro lugar, a estatal está pondo bastante dinheiro para formar o capital das empresas sob controle privado (sociedades de propósito específico, SPEs) que vão gerir os aeroportos. Além disso, vai se responsabilizar por quase metade dos recursos investidos, sem mandar na empresa.
Mais ainda: pagará 49% da outorga (preço de compra da concessão) de cada aeroporto. O total de outorgas é de R$ 25 bilhões, número comemorado na imprensa e na base aliada. Metade disso virá do próprio governo, via Infraero! Isto sem contar os fundos de pensão de estatais, entidades sob hegemonia do PT, que predominam no maior dos consórcios, ganhador do aeroporto Franco Montoro, de Guarulhos. Tais fundos detêm mais de 80% do grupo privado que comandará o empreendimento!
A justificativa de que a Infraero obterá os recursos para investimentos e outorgas da própria concessão é boba — até porque ela já está investindo nas SPEs e vai sacrificar seus retornos. De mais a mais, quais retornos? As outorgas são obrigatórias, enquanto as receitas são duvidosas. A receita líquida do aeroporto de Guarulhos foi de R$ 347 milhões em 2010. A bruta, 770 milhões. A outorga dessa concessão será paga em 20 parcelas anuais de R$ 820 milhões… Mesmo que a receita líquida duplicasse, de onde iriam tirar o dinheiro para os investimentos? No caso de Brasília, a outorga exigirá cerca de 94% da receita líquida…
Com razão, o senador Francisco Dornelles (PP-RJ), favorável como eu às concessões, ponderou: “Com o que sobra é possível entregar a qualidade desejada? Difícil. Difícil até mesmo operar com os baixos níveis atuais, pois sobrará para as concessionárias muito menos dinheiro do que a Infraero tem hoje.”
O que poderá acontecer? As possibilidades são várias: mudanças nos contratos, revisão para cima de tarifas, atrasos nos investimentos necessários, subsídios do governo e  prejuízos para os cotistas dos fundos. Tudo facilitado pela circunstância de que a privatização (um tanto estatizada) tirará o TCU do controle e transparência de gastos com aeroportos…
Existe ainda um erro elementar e pouco notado.
Para todos os consórcios que entraram no leilão foi exigida a participação de uma operadora internacional de aeroportos. Mas os consórcios onde estavam as boas operadoras perderam a licitação. E as operadoras internacionais dos grupos que ganharam são de segunda linha…
A presidência da República reclamou disso, como se não fosse o governo o responsável. O correto teria sido as operadoras internacionais serem introduzidas depois da licitação. Cada consórcio vencedor convidaria então uma operadora, a ser aprovada previamente pelo governo como condição para a homologação da concorrência. É uma sugestão que pode ser adotada nos futuros leilões. Por ora, fica o leite derramado…