Transcrevo abaixo, na imediata sequencia do post anterior, sobre o putsch bolchevique de Petrogrado, em 1917, a resenha artigo que fiz do livro de François Furet sobre a trajetória do comunismo no século 20.
A Parábola do Comunismo no Século XX: A propósito do livro de François Furet: Le Passé d’une Illusion
Paulo Roberto Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional
(Brasília: vol. 38, n° 1, janeiro-junho 1995, pp. 125-145)
Resenha do livro de François Furet:
Le Passé d’une Illusion; essai sur l’idée communiste au XXXe siècle
(Paris: Robert Laffont/Calmann-Lévy, 1995, 580 p.)
A Parábola do Comunismo no Século XX
A propósito do livro de François Furet: Le Passé d’une Illusion
Paulo Roberto de Almeida
A parábola, em sua versão eclesiástica, é uma narração alegórica dos livros santos, possuindo um claro fundo moral ou pretendendo registrar um ensinamento. Mas, em sua acepção matemática, o conceito pode também significar uma linha curva, com um lado arredondado e uma base truncada, na qual todos os pontos se situam a igual distância do centro. Tomando como base tais parâmetros, a marcha do comunismo no século XX, tanto em seu sentido religioso como no geométrico, pode ser efetivamente comparada ao itinerário de uma parábola. Esta é pelo menos é a conclusão a que chegaria o observador imparcial que, num fin-de siècle decididamente pós-comunista, se decidisse por um balanço do estado atual desse movimento político (mas também social e econômico) que marcou indelevelmente, junto com o fascismo, esta “época dos extremos”, como Hobsbawm caracterizou de forma pertinente nosso “breve século XX”. [i] Com efeito, como no caso da alegoria religiosa, o comunismo também pretendia realizar, com base nas “santas escrituras” de Marx e Lênin, um objetivo moralmente elevado – o ideal do socialismo perfeito – que representaria o acabamento da verdadeira democracia prometida pelas revoluções de 1905 e de 1917. E, como em seu equivalente geométrico, o itinerário do comunismo reproduziu o dessa curva oblonga que segue para o alto e para baixo a partir de uma base plana e na qual os pontos estão sempre à mesma distância de um ponto fixo ou de uma diretriz – o marxismo –, este servindo de álibi e de justificativa ideológica durante os setenta anos que durou a experiência. Tendo alcançando o ápice de seu processo de desenvolvimento durante o período áureo do estalinismo triunfante (no imediato pós-segunda guerra), o comunismo veio a declinar progressivamente enquanto guia moral, para conhecer, no final dos anos 80 e princípios dos 90, uma brusca interrupção de seu movimento real, desfazendo-se então em suas contradições insuperáveis na outra ponta da parábola, quando ele já não tinha nada mais a ensinar. [ii] Como interpretar esse final surpreendente para um movimento que, nos últimos dois séculos dispôs, aparentemente, de sólidas raízes sociais nos movimentos sindicais e político-partidários de inúmeros países e que apelava fortemente para os ideais de igualdade e de justiça social presentes no imaginário popular ? Para o historiador francês François Furet, a cuja obra mais recente é dedicada a análise conduzida neste artigo, essa ruptura histórica foi causada por iniciativas do próprio partido que ocupava o poder na “pátria do socialismo”, tendo o universo comunista se “desfeito por suas próprias mãos”. [iii] A Obra e seu Mestre
Quando do festejado lançamento do livro na França, essa obra mais recente de Furet [iv] foi apresentada como “a primeira grande síntese histórica sobre o comunismo no século XX” (a contracapa é da responsabilidade dos Editores), o que evidentemente constitui um certo exagero. O próprio Furet reconhece que ele não pretendeu fazer uma história política do comunismo neste século: o autor afirma ter desejado tão somente escrever um ensaio sobre a permanência da idéia comunista – a grande ilusão – nos países em que ela viscejou material ou intelectualmente. Por outro lado, seu magnífico ensaio de história intelectual trata, antes de mais nada, das “idéias” francesas sobre o desenvolvimento do marxismo e do comunismo e das diversas polêmicas por eles suscitados na França e na Europa nos últimos setenta anos, reconstituindo assim, em grande medida, a dialética das paixões revolucionárias francesas neste século. Na verdade, independentemente do inegável valor que possui sua reconstrução conceitual do movimento comunista (e sua confrontação com a experiência fascista) neste “breve século XX”, a discussão intelectual conduzida no ensaio de Furet é – Révolution de 1789 oblige – fortemente franco-cêntrica, como costuma acontecer com uma certa frequência nos debates entre intelectuais gauleses. [v] Nesse sentido, a questão central numa análise dessa obra não está tanto na avaliação de seu trabalho como historiador do processo histórico concreto de desenvolvimento do comunismo realmente existente – empresa largamente realizada anteriormente sob a condução do próprio Hobsbawm [vi] – como na apreciação crítica de seu desempenho em explicar verdadeiramente as razões de décadas de sucesso da idéia comunista em largas frações da opinião pública e da intelectualidade ocidental. [vii] O argumento central do ensaio de Furet é que a experiência soviética representou uma “illusion fondamentale”, ilusão que foi constitutiva de sua própria história. Estando basicamente de acordo com essa concepção global, inclusive no que se refere ao paralelismo histórico – o que não quer dizer funcional – traçado com o fascismo, discutiremos entretanto a insuficiência da interpretação essencialmente política que ele desenvolve sobre a ilusão comunista, assim como no que se refere à natureza da crise final e da derrocada do comunismo de tipo soviético. Um dos problemas mais importantes tocados por Furet nesse ensaio é o da comparabilidade entre os sistemas comunista e fascista, comparação geralmente rejeitada por gerações de intelectuais instintivamente movidos por um “anti-fascismo” visceral (em vista do horror genocidário que sua versão nazista representou), quando não posicionados no “anti-comunismo” de direita. [viii] De fato, grande parte da obra de Furet trata dessa oposição-atração entre duas ideologias que tinham na democracia pluralista seu inimigo comum e no anticapitalismo um apelo igualmente estimulado pelos movimentos políticos que as sustentavam. Para sermos mais precisos, apenas o comunismo rejeitava de forma absoluta o capitalismo enquanto forma de organização econômica e social, mas também o fascismo tinha alimentado sua penetração nas camadas proletárias da sociedade com esse ódio ao “ burguês capitalista” que é sua marca distintiva nos primeiros anos de ascensão ao poder. A estrutura da obra é relativamente linear e apresentaremos aqui apenas um sumário dos capítulos. Depois de uma introdução geral ao problema da “paixão revolucionária” (capítulo 1), na qual são discutidos os principais elementos da mitologia política que asseguraram o sucesso (curto, no primeiro caso) do fascismo e do comunismo neste século, Furet mergulha nas entranhas do imenso cataclisma militar, político, econômico e social que explicam a emergência respectiva desses sistemas antinômicos, mas bastante próximos um do outro (capítulo 2: A Primeira Guerra mundial). Não se deve, com efeito, esquecer o papel crucial da Primeira Guerra para o surgimento, no contexto político europeu, dos dois grandes movimentos antiliberais que mais marcaram o século XX. Assim, o comunismo de tipo soviético pode ser virtualmente visto como o resultado prático de um pequeno, mas fecundo, “acidente” histórico, [ix] desencadeado involuntariamente por um dos beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial: o retorno à Russia de um punhado de bolcheviques exilados, quase desanimados pela ausência de perspectivas revolucionárias. O voluntarismo oportunista da diplomacia do Kaiser, que buscava apenas provocar um pequeno “tremor” político na frente oriental, podendo servir a interesses militares imediatos, transformou-se porém em “cataclisma” histórico de proporções inimagináveis, dando origem aliás a parte dos desenvolvimentos subsequentes que viriam a minar o próprio império alemão e justificar, mais adiante, a tomada do poder por Hitler. No capítulo seguinte (O charme universal de Outubro), Furet demonstra como Lênin conseguiu “inventar”, num país atrasado como a Rússia czarista, um regime social e político que passou a servir de exemplo à Europa e a todo o mundo, na continuidade da história ocidental. O capítulo 4 (Os crentes e os desencantados) apresenta retratos de alguns dos grandes pioneiros do combate bolchevique e de seus primeiros “renegados” (Pierre Pascal, Boris Souvarine, Gyorg Lukacs). A revolução se congela em seguida, no “socialismo em um único país” (capítulo 5), quando Stalin consegue consolidar-se no poder e apimentar seu leninismo com algumas pitadas de nacionalismo e grandes doses de brutalidade. Os três capítulos seguintes (Comunismo e fascismo, Comunismo e antifascismo e A cultura antifascista) tratam basicamente da política européia nos anos 20 e 30, com as diferentes manobras de uma e outra corrente para manter-se no poder, ou barrar o caminho à outra, da política de “frente popular” e da formidável recusa dos intelectuais de esquerda em aceitar a realidade dos crimes stalinistas. Eles constituem, por assim dizer, o cerne da obra, onde são analisadas verdadeiramente as idéias políticas que marcaram nosso século, ou pelo menos os principais elementos da mitologia política do comunismo de tipo soviético.
A Segunda Guerra mundial, objeto do capítulo 9, encontrava-se em germe praticamente desde o final da Primeira, mas seu deslanchar foi paradoxalmente permitido por um acordo sórdido entre Hitler e Stalin sobre a partilha da Polônia e a incorporação de novos territórios ao renascido império russo. A reintegração da URSS ao antifascismo e a aliança com as potências ocidentais, depois do traiçoeiro ataque de Hitler em junho de 1941, e a vitória na guerra consolidarão a imagem e o prestígio de uma ditadura comunista chegada ao supra-sumo do totalitarismo: é o “stalinismo, etapa suprema do comunismo” (capítulo 10). O “comunismo da guerra fria” ocupa o capítulo seguinte, no qual Furet analisa as primeira fissuras no edifício (Tito) e continua a discutir a obra de alguns dissidentes da idéia comunista (Koestler, Silone, por exemplo), de intelectuais independentes, como a já citada Arendt, ou “liberais”, como Nolte.
Comparados às seções que examinaram o surgimento do socialismo soviético ou traçaram sua aproximação com o fascismo, os capítulos finais deixam algo a desejar, em termos de profundidade de análise ou de inovação conceitual. O “começo do fim” do comunismo (capítulo 12) se abre com a morte de Stalin, período marcado aliás pelas surpreendentes revelações de Krushev durante o 20° congresso do PCUS: seu relatório representa para a história do comunismo, segundo Furet, “o texto mais importante que foi escrito no século XX”. A crise do sistema monolítico se amplia (dissidências chinesa e albanesa, o fenômeno cubano, distanciamento dos partidos europeus, surgimento dos primeiros dissidentes, como Vassili Grossman) e a análise de Furet se faz aqui mais rápida, menos abrangente (trinta ou quarenta páginas, no máximo, para esse longo enterro do comunismo). O “Epílogo”, finalmente, tanto continua a apresentação do novo clima de contestação interna dos princípios sacrossantos do comunismo (Pasternak, Solzenitsin), como tenta um pequeno balanço sobre as razões da queda. Gorbatchev, para Furet, epitomiza a morte de todos os comunismos alternativos (maoismo, castrismo) que possam ter surgido e se desenvolvido no pós-guerra. O comunismo poderia ter perdido a guerra fria e sobrevivido como regime ou dado lugar a Estados rivais, sem desaparecer como princípio; mas, não: ele desaparece “corps et biens” no tribunal da História (p. 571).
Esta é, basicamente, a estrutura da obra, escrita em linguagem agradável e leve, sem deixar de ser densa (mesmo se as referências documentais e bibliográficas foram reduzidas ao mínimo). O essencial dos argumentos de Furet, como dissemos, está centrado numa apresentação e discussão das “idéias” que explicaram ou sustentaram o comunismo neste século, com uma ênfase especial nos intelectuais que se distinguiram nesse debate. Mas, dois grandes problemas podem ser identificados em maior detalhe para esta apreciação crítica, não desprovida de uma certa “deformação” sociológica. O primeiro deles é a já referida questão da comparabilidade (e identidade) entre comunismo e fascismo. O segundo seria o das condições da crise final e desaparecimento do comunismo, algo não abordado diretamente ou extensamente por Furet em seu livro, mas que ele considera como um processo ainda em grande medida misterioso (“A maneira pela qual se decompôs a União Soviética, e em seguida seu Império, permanece misterioso”, p. 567).
A Grande Ilusão do Comunismo
Deve-se, em primeiro lugar, fazer uma referência, ainda que breve, ao tema-título da obra, apontando para o “passado” da ilusão entretida pela idéia comunista. Por que o “passado” e não o “final” de uma ilusão, já que uma das conclusões do livro é de que o comunismo se termina no “néant” (p. 13), “como se se acabasse de fechar a maior via jamais oferecida à imaginação em matéria de felicidade social” (p. 571) ? Furet argumenta em defesa do conceito de “passado”, explicando que a ilusão propriamente dita preserva ainda, sob uma outra forma, um certo futuro, simbolizado na esperança em uma sociedade vindoura que poderá continuar a alimentar os debates. O que morreu, na idéia comunista, foi não só o papel messiânico da classe operária como também sua projeção “territorial”, tal como expressa no ex-império soviético. [x] No que se refere, de um modo geral, à “grande ilusão” do comunismo, dificilmente se poderia discordar dos argumentos de Furet quanto à “cegueira” literal que abateu-se sobre levas sucessivas de intelectuais e militantes na Europa e no resto do mundo durante décadas inteiras. A fascinação do projeto comunista só pode explicar-se, à esquerda, pela força da filosofia marxista, que prometia um mundo novo, liberado das misérias do real e mais conforme à “razão da História”. Mesmo à direita, ainda que recusando os princípios da organização soviética, não se podia deixar de reconhecer que a Revolução de Outubro possuía uma certa filiação com as grandes revoluções do passado europeu, a Revolução francesa em primeira lugar. A aparente imobilidade e rigidez da sociedade socialista então criada tampouco deixou de surpreender os sociólogos: mesmo para alguns analistas esclarecidos, parecia inconcebível que o mais perfeito modelo de ditadura burocrática – uma verdadeira “gaiola de ferro” weberiana – pudesse desmembrar-se como um castelo de cartas.
Daí a impressão de uma certa permanência e mesmo resiliência do poder socialista, a despeito mesmo de sua evidente degenerescência política e de sua manifesta incapacidade em assegurar o correto funcionamento do aparelho econômico da sociedade. Ainda que alguns espíritos mais argutos tenham atencipado o final do comunismo, a queda brutal da URSS foi uma surpresa para muitos, para Furet como para o autor destas linhas. [xi] A razão da preservação da ilusão comunista (como, de certo modo, do fascismo, durante e após sua vigência efetiva) pode estar, sob o risco de parecer óbvio, na própria força das ideologias políticas, geralmente consideradas, no seguimento da crítica arrasadora de Marx, como um simples disfarce do real, a serviço de interesses das classes dominantes ou de grupos organizados. Numa época em que alguns representantes modernos dos ideólogos – que são os sociólogos – identificam sinais de “fim das ideologias” (Daniel Bell) e mesmo de “fim da História” (Francis Fukuyama), perde-se por vezes a visão de como o elemento ideológico influenciou a construção do mundo contemporâneo. Caberia com efeito recordar que a Europa e o mundo em geral nos últimos setenta anos estiveram sob o signo e conviveram com a “promessa” ou a “ameaça” (segundo a posição do interessado) de uma ou de ambas as ideologias colocadas em paralelo por Furet. O historiador alemão Karl Bracher, que sintomaticamente caracterizou nossa época como a “idade das ideologias”, indicou com razão: “O século XIX foi dominado pelo desenvolvimento das nações e pelas reivindicações dos Estados nacionais; o século XX, pelo confronto entre os nacionalismos e as ideologias, entre a independência dos Estados individuais e os novos universalismos”. [xii] A Primeira guerra, objeto de um brilhante capítulo na obra de Furet, não foi certamente provocada pelo choque entre ideologias conflitantes, mas foi ela que permitiu as racionalizações (ou mistificações) a partir das quais iriam emergir as duas grandes ideologias de nosso século. O fascismo, como se sabe, pereceu nos escombros das catástrofes que ele mesmo provocou. Quanto ao comunismo, essa hantise ideológica de burgueses e proletários, ele também terminou por encaminhar-se ao museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar (onde Engels havia também previsto um lugar para o Estado). Antes, contudo, ele seria legitimado e revivificado pela vitória contra o primeiro, ganharia um certo atestado de racionalidade econômica no seguimento das políticas intervencionistas conduzidas pelos Estados ocidentais no pós-guerra e circularia ainda enquanto movimento de “liberação nacional” durante várias décadas pelos mais variantes quadrantes do globo.
A análise de Furet quanto ao poder de sedução da idéia comunista em nosso século é propriamente impecável e podemos dizer que aí se situa o ponto forte de sua obra. Terminada a ilusão, nós somos condenados “à vivre dans le monde où nous vivons” (p. 572), um mundo povoado de contradições e de questões sociais não resolvidas. A velha democracia é chamada uma vez mais à frente dos problemas.
Comunismo = Fascismo ?
Um dos problemas mais importantes abordados por Furet em seu livro, é, como dissemos, é o da possibilidade conceitual (e empírica) de se comparar e de traçar uma identidade funcional entre os sistemas comunista e fascista, que entram, como ele diz, “presque ensemble sur le théâtre de l’Histoire” (p. 38). Mesmo se ele não elabora essa comparação do ponto de vista da ciência política, isto é, segundo uma abordagem teórico-formalista, mas enquanto historiador, Furet isola e disseca os elementos materiais e ideológicos de cada um dos sistemas (o partido-Estado, a ideocracia, o controle total da informação, o sistema dos campos de concentração, por exemplo). O comunismo e o fascismo são, para Furet, “ennemis complices”, o que não quer dizer que eles possam ser considerados idênticos.
A analise de Furet sobre os dois sistemas é, também neste caso, pertinente: ele releva os pontos discordantes, mas não deixa de sublinhar o que os aproxima. O comunismo, ou melhor, o marxismo é um universalismo a pretensões democráticas, que sempre cultivou a ambição de emancipar o conjunto da humanidade, enquanto que o fascismo é uma ideologia particularista (raça, povo) abertamente antidemocrática. Mas, eles partilharam o mesmo desprezo pelo direito, o mesmo culto da violência, a perseguição religiosa e a adoração do partido e do chefe; eles também mobilizaram as paixões revolucionárias, o ódio do individualismo burguês, a angústia pela salvação através da história, a religião da unidade do povo e a intolerância fanática. Sobretudo, relembra Furet, eles têm no liberalismo ou na democracia burguesa seu inimigo comum. [xiii] Ele também demonstra a interação dos dois sistemas nos palcos da história: “bolchevismo e fascismo se seguem, se engendram, se imitam e se combatem, mas antes eles nascem do mesmo solo, a guerra; eles são os filhos da mesma história” (p. 197), inaugurados pelo mesmo movimento de massas no final da Primeira Guerra mundial. Pode-se efetivamente considerar como importante, historicamente, o impacto da Revolução bolchevique na emergência dos fascismos europeus: grande parte das reações da direita, que levaram ou sustentaram os regimes fascistas na Europa dos anos 20 e 30, se deve ao medo do contágio soviético, assim como a “ameaça” comunista e o exemplo da Revolução cubana alimentariam os golpes militares de direita na América Latina dos anos 60. [xiv] A mesma filosofia antiliberal ou conservadora, segundo os casos (misturada à ideologia da “segurança nacional” em nosso continente), estão presentes num e noutro lado do Atlântico, numa versão atualizada da “grande peur” que havia estudado Lucien Febvre na segunda fase da Revolução francesa (a propósito dos camponeses, nesse caso). Entretanto, importância histórica não quer necessariamente dizer relevância causal. Cabe assim legitimamente perguntar se os fascismos italiano e alemão, entre outros menos conhecidos, não teriam de toda forma ascendido ao poder mesmo na ausência de vitória da Revolução bolchevique ou de uma menor “agressividade” do movimento comunista no continente, inclusive na própria Alemanha e na Hungria (“república dos sovietes” na Baviera e em Budapeste). A História teria sido certamente outra, sobretudo a da Segunda Guerra Mundial, que tanto como o hitlerismo se alimenta e emerge das frustrações alemãs com o armistício da Primeira Guerra e as “consequências econômicas” do Tratado de Versalhes (para retomar o título da conhecida obra de Keynes [xv]). Mas, os movimentos mussolinista e hitlerista possuem suas lógicas próprias e suas respectivas dinâmicas históricas, buscando raízes em crises econômicas, políticas e até mesmo morais propriamente nacionais. A revolução bolchevique não explica, por exemplo, a inflação alemã de 1923 ou a crise de 1929, que muito fizeram para ajudar a ascensão de Hitler. Assim, é provável que os fascismos teriam de toda forma modificado a tipologia dos regimes políticos no século XX, numa forma não idealizada por Weber. O mussolinismo e o hitlerismo teriam, em todo caso, desfrutado de maiores oportunidades de expansão e de afirmação, numa escala inimaginável retrospectivamente, com muito maiores perigos reais para as poucas democracias existentes. Mas, mesmo divertida, a História dos “ifs” é de certa forma impossível: se os alemães não tivessem embarcado Lênin no “trem blindado” em 1917; se, em 1938, as democracias tivessem resistido a Hitler em Munique; se Ribbentrop e Molotov não tivesse confirmado o Pacto de agosto de 1939 que permitiu a invasão e a liquidação da Polônia e, de fato, o início da Segunda guerra; se, dois anos depois, Hitler não tivesse decidido atacar a URSS, se... : a lista dos imponderáveis históricos parece interminável. Em todo caso, voltando ao problema da eventual vinculação da Revolução bolchevique com suas congêneres fascistas, caberia lembrar que as situações históricas são sempre únicas e originais e o mesmo evento ou processo não deveria necessariamente poder repetir-se, na presença de outras circunstâncias.
Que a presença de Lênin tenha precipitado o “putsch” bolchevique parece uma verdade indiscutível; mas que, em sua ausência, toda conjuntura revolucionária, com chances para uma ascensão dos comunistas ao poder, teria sido impossível, é uma conclusão que não podemos tirar da situação então prevalecente. Algumas das vinculações causais que poderiam ser extraídas de um exercício de aproximação entre comunismo e fascismo, tal como o conduzido por Furet, devem assim ser consideradas com extrema cautela. Ele, em geral, prefere não se dedicar a essas especulações do espírito que, em larga medida, estão fora de sua agenda de trabalho.
Alguns poderiam discordar da análise conduzida por Furet nesta parte (capítulo 6: Comunismo e fascismo), como eventualmente eivada por uma tendência a “personalizar” em demasia o movimento histórico que conduziu à emergência e consolidação do sistema soviético por Lênin e Stalin, num caso, e à “invenção” do Estado fascista por Mussolini e construção do nazista por Hitler, no outro. [xvi] Mas, uma simples constatação de ordem prática reverteria a confirmar o papel excepcional desses homens no destino histórico de seus sistemas respectivos: “un trait apparente encore les trois grandes dictatures de l’époque: leur destin est suspendu à la volonté d’un seul homme” (p. 199). [xvii] Deve-se contudo observar que, chez Furet, o aspecto contingencial do processo histórico é quase que levado ao extremo: “Suprimamos a personagem de Lênin da história e não há mais Outubro de 1917. Retiremos Mussolini e a Itália do pós-guerra seguiria um outro curso. Quanto a Hitler, se é verdade que, como Mussolini aliás, ele toma o poder em parte graças ao consentimento resignado da direita alemã, ele não perde por outro lado sua desastrosa autonomia: ele vai fazer funcionar o programa de Mein Kampf, que pertence a ele tão somente” (p. 200). Pode-se concordar com esse tipo de colocação, [xviii] sem descurar porém a probabilidade de que, na ausência de personalidades magnéticas como as dessas três figuras históricas, os movimentos comunistas e fascistas já presentes em diversos países europeus teriam oportunamente produzido líderes e circunstâncias favoráveis à ascensão dessas correntes ao poder, com consequências eventualmente menos catastróficas em termos de custos humanos, mas igualmente densas de significado político e social. A Economia Política da Ilusão Comunista
O livro de Furet pretende, e consegue amplamente, explicar as razões do sucesso da idéia comunista – e do prestígio da Revolução bolchevique, estendido à URSS – em largas frações da opinião pública e da intelectualidade ocidental, especialmente francesa, durante os setenta anos que durou a aventura soviética. Sua análise sobre as condições de ascensão ao poder do bolchevismo (e do fascismo) no seguimento da Primeira Guerra mundial permanecerá certamente como uma das realizações mais convincentes da historiografia recente do comunismo; não sem um certo exagero – ligado ao prestígio do autor como historiador “revisionista” da Revolução francesa – seu livro já é aliás considerado um “clássico” nessa área de estudos.
Brilhante ensaio sobre a ilusão comunista, enquanto a URSS lhe emprestou consistência e vida, ele é no entanto muito menos convincente sobre as condições materiais – em especial as econômicas – que cercaram o colapso desse sistema no seguimento da queda do muro de Berlim. Furet confessa que, como muitos outros observadores, não esperava que as tentativas de reforma gorbatcheviana fossem conduzir ao impasse e, finalmente, à derrocada de todo o edifício comunista. Lembre-se a propósito que nem mesmo o “profeta” do “fim da História”, Francis Fukuyama, previu a falência da estrutura soviética: ao contrário, ele estava convencido de que a URSS seria preservada, mesmo com o abandono completo dos dogmas econômicos do socialismo. [xix] A explicação de Furet para a formidável ruptura histórica que o mundo viveu entre 1989 e 1991 é, como vimos, que, embora ainda largamente misteriosa em seus detalhes, ela foi causada sobretudo por iniciativas do próprio partido no poder: “Mesmo os inimigos do socialismo não imaginavam que o regime soviético pudesse desaparecer, e que a Revolução de Outubro pudesse ser ‘apagada’; menos ainda que essa ruptura pudesse ter por origem iniciativas do partido único no poder” (p. 11). Em grande medida, a interpretação de Furet guarda uma certa relação com a análise tocquevilliana sobre os perigos da reforma política num sistema caracterizado pela rigidez das relações sociais. A concepção “liberal” de Tocqueville sobre as origens da Revolução francesa tende a descartar, como se sabe, os elementos de crise econômica privilegiados na análise marxista tradicional – a famosa contradição entre forças produtivas “capitalistas” emergentes e relações de produção ainda “feudais” –, preferindo em seu lugar o choque político provocado ou precipitado por um confronto entre elites sociais já próximas do poder, num contexto de tentativa monárquica de reforma moderada.
Mesmo acreditando que o universo comunista se desfez nas “próprias mãos do Partido hegemônico” e sobretudo por razões políticas (incapacidade de gerir o processo de reformas), Furet não deixa contudo de mencionar alguns elementos materiais que contribuiram, ainda durante a fase do “brejnevismo triunfante” (a expressão não é dele), para apressar a decadência e queda do poder soviético. Ele cita, por exemplo, o trabalho de um demógrafo francês que, já em 1976, indicava a deterioração do sistema como refletida na alta da taxa de mortalidade infantil. [xx] Ele também não deixa de referir-se, em sua introdução e conclusão, à incapacidade do poder socialista em atender os mínimos requisitos da população em termos de conforto material, bem como à impossibilidade para o sistema de seguir a potência americana na corrida aos armamentos mais sofisticados (programa “guerra nas estrelas” de Reagan). Sua reconstituição histórica sobre os setenta anos de ilusão comunista permanece, entretanto, basicamente política, consistindo essencialmente numa “história das idéias” (ou das mitologias políticas) do século XX. Não se poderia, portanto, acusar Furet de não levar em conta o peso dos “fatores econômicos”, tanto no sucesso como na derrocada do sistema soviético, já que não era esse o objetivo primordial de seu trabalho de pesquisa e de interpretação. O problema, ainda assim, é que idéias políticas também têm fundamentos econômicos e que, no caso específico do comunismo, sua mitologia política – sua “ilusão fundamental”, diria Furet – foi alimentada não só por sua promessa de igualdade e de justiça, no plano social, mas sobretudo e principalmente pela concepção marxista de que um sistema regulado democraticamente pelo conjunto dos trabalhadores seria mais suscetível do que a “anarquia da produção capitalista” de afastar crises periódicas e escassez, de aportar abundância material, bem-estar individual e progresso tecnológico. A premissa básica da mensagem marxiana quanto ao “fim da história”, dos primeiros escritos da juventude até o Capital, refere-se, antes de mais nada, à apropriação coletiva dos meios de produção, por iniciativa e sob o comando da classe operária, transformada em redentora universal: de fato, a abolição da propriedade privada, “mãe de todas as injustiças”, sempre apresentou um formidável poder de atração para as massas de deserdados de todo o mundo e mesmo para milhões de proletários de países desenvolvidos.
Não se poderia igualmente esquecer que grande parte das mensagens simpáticas ao socialismo enquanto sistema de organização social – não apenas soviético, mas também chinês e “terceiro-mundista”, onde foi o caso – tinha como fundamento a idéia (falsa, mas isso não importa aqui) de que ele trazia o final das crises capitalistas de produção e emprego, introduzia um nível de subsistência mínimo para o conjunto da população e permitiria, progressivamente, liberar excedentes que o fariam alcançar e em última instância ultrapassar os sistemas capitalistas “realmente existentes”. As idéias econômicas marxistas sobre uma futura “idade da abundância”, sobre a racionalidade superior do sistema socialista e em especial as profecias engelsianas sobre o futuro da sociedade dos trabalhadores (“de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”) alimentaram, em muito, a ilusão comunista neste século. [xxi] Essas idéias econômicas, é dispensável dizê-lo, estão escassamente refletidas no ensaio de Furet e elas não comparecem em nada na explicação funcional do “sucesso” da idéia comunista neste século. Ora, desde o final do século XIX, pelo menos, que o debate em torno das idéias marxistas e socialistas prolongava-se no terreno econômico, chegando até mesmo a influenciar o curso da economia política “burguesa”. Sem referir-se às primeiras críticas pertinentes (e não respondidas) formuladas por John Stuart Mill ao próprio Marx, caberia lembrar que Vilfredo Pareto dedicou dois alentados volumes ao estudo dos sistemas socialistas, que Hobson antecipa a análise leninista sobre a natureza econômica do imperialismo contemporâneo, que Hilferding e Rosa Luxemburgo terçaram armas em torno do capital financeiro e da acumulação capitalista, que toda uma “teoria das crises cíclicas” frequentou a produção acadêmica na economia (de Schumpeter a Keynes, de Robinson e Sraffa a Kindleberg) e que, ainda no começo dos anos 60, economistas respeitados como John Kenneth Galbraith ou sociólogos atentos como Raymond Aron podiam prever uma certa convergência entre o capitalismo e o socialismo com base no fato de terem ambos os sistemas chegados a uma etapa industrial avançada.
De maneira ainda mais relevante, as primeiras experiências de planificação sob a República de Weimar, a própria organização econômica “fascista”, os projetos de “welfare state” nos países escandinavos e anglo-saxões, bem como as nacionalizações e o acentuado intervencionismo (com agências estatais dedicadas ao planejamento indicativo) conduzidos no segundo-pós guerra nos principais paÍses capitalistas europeus, podem ser considerados como o resultado direto do impacto exercido pelas idéias econômicas “comunistas” nas sociedades do Ocidente desenvolvido. Da mesma forma, a industrialização da URSS, a “solução” do problema da fome na China (contra sua suposta manutenção na Índia “capitalista”), o desenvolvimento “acelerado” dos países atrasados do Terceiro Mundo, todos esses elementos, reais ou imaginários, da “grande transformação” da segunda metade do século XX foram, com ou sem razão, creditados à alavancagem ideológica das idéias econômicas socialistas, ou pelo menos vinculados à aceitação da inevitabilidade (ou mesmo desejabilidade) de uma maior intervenção do Estado na economia, em contraposição ao menor poder transformador ou modernizador das estruturas “capitalistas” de mercado.
Em outras palavras, a legitimação ideológica do comunismo se deu tanto pela via da economia como da política, em que pese o balanço francamente desfavorável na confrontação com o capitalismo (mas, explicável em termos de guerra civil, de destruições “imperialistas”, de espoliação “colonial” etc), que tanto a URSS como a China ou outros países menores (Cuba, Vietnã) nunca deixaram de apresentar, mesmo em comparação com países capitalistas “subdesenvolvidos”. Os partidos comunistas dos países capitalistas europeus – em especial na Itália e na França – conseguiram reter uma certa audiência popular mesmo durante os anos de descrédito político do socialismo real com base na antiga crença de que uma “economia planificada” ou pelo menos controlada pelo Estado conseguiria refrear a “exploração capitalista” e introduzir um pouco mais de igualdade na repartição funcional capital-trabalho. Finalmente, em nosso próprio continente, a única justificativa – aceita de certo modo pela própria “direita” – para a ausência completa de liberdades democráticas e até mesmo de certos direitos humanos na Cuba “socialista” era o suposto avanço no plano dos indicadores sociais (saúde, educação, nutrição), continuamente agitados em face das desigualdades e mazelas sociais existentes nos demais países da região.
Esse tipo de ilusão foi tão, ou mais, importante do que aquela derivada da “paixão revolucionária” que analisou Furet em seu livro: a afirmação da vontade na História, a invenção do homem por ele mesmo, o ódio ao burguês (alimentado não tanto por proletários verdadeiros, como por artistas e intelectuais “burgueses”), a promessa de um novo mundo de justiça social construído pela própria coletividade redimida pela classe operária, a recusa do individualismo em favor da liberação de toda humanidade e não apenas de uma raça ou um povo particulares como no fascismo, tudo aquilo, enfim, que fazia o “charme universal de Outubro” e que o grande historiador francês analisa sobretudo – era talvez inevitável, no seu caso – como uma herança e como uma realização da Revolução francesa de 1789. De certo modo, talvez a grande ilusão econômica do socialismo seja a única a sobreviver à derrocada do regime político baseado no partido único e na “democracia real” (isto é, não burguesa, formal), este definitivamente enterrado pela superioridade filosófica, moral e empírica da idéia democrática. Se as idéias movem o mundo, as idéias econômicas com muito maior razão podem ter a pretensão de continuar a determinar o curso de nossos destinos individuais e de nossas realizações coletivas. A essa título, a ilusão econômica socialista (pelo menos aquela que se baseia no papel regulador e distribuidor do Estado) não está perto de extinguir-se, mesmo depois de ter sido bastante maltratada por várias décadas de planejamento centralizado e de “socialismo real”.
Julgado com base nesses parâmetros – ressalve-se que tal não era a intenção do historiador francês –, o ensaio de Furet deixa muito a desejar, mesmo numa perspectiva puramente historiográfica ou do ponto de vista de uma história política ou das idéias. Finalmente, o grande objetivo do projeto comunista não era tanto eliminar o burguês enquanto agente social – objetivo julgado relativamente fácil pelos protagonistas de Outubro e seus êmulos em outras partes – como construir um sistema socialista de organização social da produção em tudo oposto ao execrado regime capitalista, que se devia eliminar da face da terra. [xxii] O jacobinismo bolchevique se dirigia, obviamente, contra o “Estado burguês”, mas a coletivização total dos meios de produção era o elemento essencial da construção da nova ordem socialista. Era essa a promessa contida no Manifesto Comunista, reafirmada no programa leninista e ainda confirmada em pleno revisionismo krusheviano. [xxiii] Até o final de sua administração, quando ele já tinha consentido em introduzir elementos de mercado no funcionamento econômico do socialismo, Gorbatchev também preservou sua confiança num futuro comunista, isto é, não capitalista, para a URSS. Um historiador “marxista” como Hobsbawm não deixa de considerar, praticamente em igualdade de condições, os elementos econômicos e políticos do mundo do “socialismo realmente existente”. A primeira coisa a ser observada a respeito da região socialista do globo, diz ele em seu citado capítulo, “é que durante a maior parte de sua existência ela formou um subuniverso separado e largamente auto-suficiente tanto economicamente como politicamente. Suas relações com o resto da economia mundial, capitalista ou dominada pelo capitalismo dos países desenvolvidos, eram surpreendentemente reduzidas. Mesmo durante a fase alta do grande boom do comércio internacional nos Anos Dourados, apenas algo em torno de 4% das exportações das economias desenvolvidas de mercado iam para as ‘economias centralmente planificadas’ e, em torno dos anos 80, a parte das exportações do Terceiro Mundo dirigidas a elas não era muito maior”. [xxiv] Hobsbawm reconhece que a razão fundamental da separação entre os dois campos era, sem dúvida alguma política, mas ele desenvolve em seguida uma brilhante análise da “economia política” do socialismo real, ainda que ele tenda a acreditar, mesmo retrospectivamente, nas estatísticas do socialismo estalinista, que “evidenciariam” um crescimento superior ao das economias capitalistas nos anos 30 (“acumulação primitiva socialista”) e durante uma certa fase do pós-guerra. Igualmente, ele dedica toda a primeira parte de seu capítulo sobre o “fim do socialismo” a uma análise do “subdesenvolvimento econômico” (a expressão não é dele, tampouco) desse regime, mesmo se, mais adiante, ele reconhece, acertadamente, que é a “política, tanto a grande como a pequena, [que] deveria acarretar o colapso Euro-soviético de 1989-1991”. [xxv] O que importa sublinhar aqui não é tanto o desempenho econômico efetivo dos socialismos realmente existentes – que poderia ser objeto de uma história econômica do socialismo – mas, na perspectiva da história intelectual, o “peso” das idéias econômicas na formação e manutenção da “ilusão comunista”, algo completamente descurado por Furet. Sua análise – embora sumária – da crise prolongada do socialismo deixa ao largo os elementos relativamente “objetivos” da estagnação econômica, para concentrar-se nas idéias dos dissidentes e no crescente descrédito político do regime. Apesar de que seu ensaio, como sublinhado, pretendesse abordar apenas e tão somente a história das “idéias”, deve-se ressaltar que, ainda assim e especificamente neste caso, as idéias econômicas deveriam ser consideradas como parte integrante da “ilusão comunista”, como elemento indissociável da mitologia política do socialismo de tipo soviético.
A transição marxista do socialismo ao capitalismo
Sem pretender fazer ironias com a História, caberia observar que a crise e a débâcle do comunismo soviético podem ser interpretadas inteiramente em termos das idéias marxistas, a fortiori para um antigo adepto da religião como Furet. Com efeito, ninguém melhor do que Marx – de cujos escritos sobre a Revolução francesa Furet já tinha tratado em profundidade – sabia colocar com clareza, ainda que de forma profética, o inexorável desenrolar do processo histórico e social. Como ele escreveu no Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), “numa certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas de uma sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é apenas sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se tinham desenvolvidos até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações [de produção] se tornam seus próprios entraves. Abre-se então uma época de revolução social. A transformação na base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura”. [xxvi] Essa época de revolução social abriu-se para o socialismo de tipo soviético a partir do final dos anos 70, muito embora suas sementes existissem desde muito tempo antes. As razões dessa transformação, que pode ser inteiramente explicada em termos “marxistas”, foram as mesmas que, no passado, levaram ao declínio do feudalismo como “modo de produção”: as relações “socialistas” de produção se tinham inegavelmente convertido num formidável entrave ao desenvolvimento das forças produtivas e ao avanço das condições econômicas de produção. Qualquer marxista não comprometido com os esquemas de poder existentes na área soviética poderia reconhecer que a forma “socialista” da propriedade representava, em nível estrutural, um enorme obstáculo ao avanço contínuo do processo de produção social. [xxvii] De fato, as relações socialistas de produção sempre foram uma forma contraditória de organização social da produção, uma vez que, segundo a própria teleologia marxista, a sociedade burguesa não poderia desaparecer – e assim dar lugar ao socialismo – sem que ela pudesse antes desenvolver todas as suas potencialidades intrínsecas em termos de forças produtivas. Mas, uma vez implementadas essas relações socialistas de produção – de maneira mais ou menos improvisada no seguimento da revolução bolchevista –, elas sempre representaram (no vocabulário do próprio Marx) “uma forma antagônica do processo de produção social, não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que nasce das condições sociais de existência dos indivíduos”.
Segundo os próprios termos da análise histórica marxista seria portanto inevitável esperar o deslanchar de uma etapa revolucionária no desenvolvimento do socialismo, uma vez que a deterioração da base econômica do sistema, já visível desde o final da estagnação “brejnevista”, estava conduzindo a um impasse, ele mesmo anunciador de uma mudança radical em toda a superestrutura jurídica e política da sociedade socialista. É assim muito provável que, ao iniciar seu período de “reformismo esclarecido”, Gorbachov tenha chegado à conclusão que a base técnica do sistema socialista, enquanto forma de organização social da produção, fosse essencialmente conservadora, uma vez que, ao contrário do sistema capitalista, não possuia em si mesma os impulsos para uma contínua transformação das condições de produção.
Gorbachov, aparentemente em bom marxista, admitiu-o abertamente: antes mesmo de assumir a liderança do PCUS, em dezembro de 1984, ele advertia que a injustificada preservação de “elementos obsoletos nas relações de produção pode ocasionar uma deterioração da situação econômica e social”. Em junho de 1985, já como Secretário-Geral do PCUS, ele declarava que “a aceleração do progresso científico e técnico requeria insistentemente uma profunda reorganização do sistema de planejamento e de administração do mecanismo econômico em sua totalidade”. [xxviii] O que Gorbachov pretendia implementar era uma espécie de NEP da era eletrônica, algo bem mais complicado, deve-se reconhecer, que as banalidades conceituais em torno do modelo leninista de comunismo, descrito como sendo o “socialismo mais a eletricidade”. Não havia, contudo, fórmula milagrosa capaz de fazer aquele socialismo tomar o ”carro da História” a partir das relações de produção existentes: não só a “base técnica” do socialismo estatal, nos termos de Marx, era essenciamente conservadora, como também sua base social e política era profundamente reacionária. A União Soviética parecia representar para Gorbachov o que a Alemanha guilhermina representava para Marx no século passado: um país atrasado e dividido que tinha necessariamente de passar por uma revolução política radical para quebrar os grilhões que impediam sua modernização econômica e social.
Fazendo uma grosseira analogia histórica, poder-se-ia dizer que as relações socialistas de produção e a classe burocrática associada ao Partido Comunista representavam, na maior parte dos países da área soviética, o mesmo papel que o sistema corporativo e a classe aristocrática desempenhavam no ancien régime de tipo feudal: um obstáculo intransponível ao desenvolvimento das forças produtivas materiais e um entrave formidável ao progresso político da sociedade. Como afirmaram Marx e Engels no Manifesto Comunista: “numa certa etapa do desenvolvimento dos meios de produção e de troca... as relações feudais de propriedade deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno crescimento. Elas entravavam a produção em lugar de fazê-la avançar. Elas se transformaram em grilhões. Esses grilhões tinham de ser quebrados: eles foram quebrados”. [xxix] No que concerne as relações socialistas de propriedade, esses grilhões foram efetivamente rompidos nos países da antiga área soviética, muito embora o processo de construção da nova ordem esteja ainda a meio caminho. Em suas manifestações e desenvolvimento, o processo de ruptura com o ancien régime foi, evidentemente, político, e não poderia deixar de ser exclusivamente político, como observaram Furet e Hobsbawm. [xxx] O ponto de não retorno, diz ironicamente Hobsbawm, foi atingido na segunda metade de 1989, bicentenário do deslanchar da Revolução francesa, “cuja não existência ou irrelevância para a política do século XX, os historiadores franceses ‘revisionistas’ estavam ocupados em tentar demonstrar naquele momento. A ruptura política seguiu-se (como na França do século XVIII) à convocação de novas assembléias democráticas, ou passavelmente democráticas, no verão daquele ano. A ruptura econômica tornou-se irreversível no decorrer de alguns poucos meses cruciais entre outubro de 1989 e maio de 1990”. [xxxi] Assim, se a crise política é evidente, em meu julgamento foram razões estruturais de natureza essencialmente, senão inteiramente, econômica que levaram à crise fundamental, à sua fratura irremediável e à queda final do sistema. Um pouco de materialismo histórico, por uma vez, não pode fazer mal à causa do socialismo, ou pelo menos à da análise histórica de sua derrocada final.
A base econômica explica, ainda desta vez, a transição de um modo de produção a um outro. Para chegar a um verdadeiro sistema econômico de mercado, na antiga zona soviética, só falta agora atravessar o que Marx chamava de purgatório capitalista. O comunismo chegou efetivamente ao final de sua parábola no século XX: ele terá constituído, finalmente, uma longa etapa de transição que levou do capitalismo ao... capitalismo.
[Paris, 08.05.95]
Relação de Trabalhos n° 479; Publicados n. 179
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