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terça-feira, 9 de novembro de 2010

Divida Externa do Brasil e FMI: esclarecendo duvidas, eliminando erros

Junto com certos posts sobre a carreira diplomática, que desperta naturalmente a atenção dos candidatos que eventualmente acessam este blog, e um ou outro sobre alguns temas sensíveis -- como um "fatídico" sobre os salários dos "conselheiros" da Petrobras, quase todos amigos, e "servos" do poder -- poucos posts neste blog despertaram tantas paixões e comentários desencontrados como um que postei em 4 de agosto sobre:

Divida do Brasil com o FMI: a farsa de sua quitacao - Flavio Morgenstern

Se tratava, como o próprio título indica, de um artigo de Flavio Morgenstern, explicando a situação real da dívida externa e interna do Brasil, precedido de alguns comentários meus sobre o fato de que a propagandeada "quitação da dívida externa do Brasil junto ao FMI", não passava, justamente, disso, de um ato de propaganda, mistificando a realidade, enganando a maior parte das pessoas e, pior, não seguida de comentários de jornalistas especializados esclarecendo que o Brasil saia pior da situação do que estava antes dessa "quitação" fantasmagórica.
Não vou retomar cada passo das relações do Brasil com o FMI, algo sobre o que já escrevi a respeito, e justamente acabo de atualizar meu capítulo sobre diplomacia financeira num livro que vai ser publicado em terceira edição -- Relações Internacionais e Política Externa do Brasil -- que trará explicações mais extensas a esse respeito.
Se ouso resumir a situação, inclusive em intenção de comentaristas que me escreveram no post acima, com colocações superficiais, a favor e contra, a respeito do assunto, seria isto.

1) "Dívida" do Brasil com o FMI:
A rigor, não existe uma dívida do Brasil para com o FMI e nunca existiu. O que existiram foram planos de contingência e empréstimos condicionais -- créditos stand-by -- que foram negociados entre 1998 e 2001 (e renovados pelo governo Lula) para enfrentar situações de crise como as que abalaram os mercados financeiros na segunda metade dos anos 1990 e no início dos anos 2000, por causa da Argentina E DAS ELEIÇÕES BRASILEIRAS DE 2002 (e desculpo-me pela caixa alta, mas é bom que se diga como são os fatos, não a propaganda).
O Brasil contraiu um primeiro empréstimo do FMI, no quadro de um pacote muito mais amplo em 1998, para enfrentar um problema que diversos outros países enfrentavam: a fuga de capitais de mercados emergentes, que tinha começado com o problema do México, em dezembro de 1994, prolongou-se extensivamente nas crises dos mercados asiáticos de 1997 e assumiu contornos dramáticos com a moratória russa de agosto de 1998. O Brasil não entrou em crise e nunca deixou de pagar suas obrigações externas. Os pacotes foram preventivos e serviram para reforçar suas reservas ou alimentaram o caixa para saldar compromissos externos.
O primeiro pacote -- FMI, BIRD, BID e países membros do BIS -- foi de 48,5 bilhões de dólares. Em contrapartida (as famosas condicionalidades que muitos criticam), o Brasil assumiu o compromisso de "fazer superavit primário", ou seja, reservar uma parte de suas receitas fiscais (então estimada em 2,5% do PIB) para saldar os juros de sua dívida interna, doméstica, que estava crescendo demais.
Aos que reclamam dessas condicionalidades, eu apenas diria o seguinte: tente viver acima de seus vencimentos ou de sua renda, e vá pedir dinheiro ao seu gerente de banco apenas para continuar gastando com restaurantes e compras diversas. Tente viver acima de seus meios, para ver o que acontece. Era isso que estava fazendo, E QUE AINDA FAZ, o Brasil. Nada mais sensato, pois, do que recomendar um pouco de rigor fiscal, que é o que todo mundo faz com suas próprias contas pessoais.
O segundo pacote, contraído em meio à crise argentina de 2001, foi apenas para reforçar as reservas, com uma disponibilidade de 15 bilhões de dólares. Não foi usado, serviu apenas de garantia.
O terceiro pacote, de US$ 30 bilhões, só de dinheiro do FMI, foi feito em meio às eleições de 2002, quando OS MERCADOS ASSUSTADOS COM A POSSIBILIDADE DE O PT DAR CALOTE NA DIVIDA EXTERNA, começaram a cotar por baixo os títulos da dívida brasileira no exterior (que cairam a menos de 50% do seu valor de face, ou seja, você podia comprar um título de 100 dólares pagando apenas 48 dólares, e receberia igual do governo brasileiro os 100 dólares no seu termo). O dólar, como se sabe, foi às alturas, saindo de 1,7 reais para quase 4 contra um dólar, e a taxa de risco do Brasil foi a 24 mil pontos, ou seja 24 pontos percentuais acima das taxas de referência dos EUA.
Foi esse último empréstimo de US$ 30 bilhões que foi aceito e renovado pelo governo do PT, pelo ministro Palocci, em 2003, quando ele assumiu, mas apenas pela quantia de 14,8 bilhões de dólares, dinheiro NÃO UTILIZADO, mas que serviu apenas para reforçar as reservas.
Diga-se de passagem que foi o ministro Palocci que decidiu aumentar as garantias oferecidas pelo Brasil, não solicitadas pelo FMI, de aumentar o superavit primário de 2,5% do PIB para 3,25% do PIB, em total autonomia e independência (como compete a qualquer país membro do FMI).
Esse "empréstimo" -- na verdade, uma carta-compromisso fazendo a concessão desse crédito de 14,8 bi -- ficou em vigor até 2005, quando o governo decidiu pela sua "liquidação" e montou toda aquela operação de propaganda para dizer que tinha "liquidado a dívida com o FMI".
Vamos agora aos fatos.


2) Dívida comercial do Brasil nos mercados financeiros:
Pelo seu crédito, ou pelo direito de uso eventual do dinheiro do FMI (que também é seu, como membro de pleno direito), o Brasil pagava juros de companheiro, de 4,5% na média, ou seja, o dinheiro do FMI era MUITO MAIS BARATO do que qualquer outra operação comercial que o Brasil pudesse fazer nos mercados financeiros.
Mas, claro, apenas para dizer que "não dependia mais do FMI", o governo do presidente Lula declarou, de forma nitidamente enganosa, que estava se libertando da dependência do FMI, devolvendo um empréstimo que ele nunca tomou (na verdade, simplesmente dizendo que não renovaria mais o programa, e que o dinheiro reservado e carimbado em nome do Brasil era dispensável). Por decisão própria, o governo CONTINUOU MANTENDO A META DE SUPERAVIT PRIMÁRIO, por decisão própria, não por imposição do FMI.
O que ficou, então? Apenas empréstimos comerciais, Global Bonds, que o Brasil lança nos mercados comerciais, com taxas de juros nunca inferiores a 8%, em geral, na faixa de 9 a 11%, pelo menos naquela época (hoje se encontram Global Bonds de 7%, mas os mercados estão líquidos novamente e a taxa de risco do Brasil continuou caindo, graças à boa gestão do Banco Central).
Em resumo, o Brasil "trocou" -- não é a mesma coisa, claro, mas serve de comparação -- um "empréstimo" do FMI a 4,5% para ficar com empréstimos comerciais a 10%.
Se isso é vantajoso, apenas os novos donos da matemática da dívida podem dizer. 



3) Dívida interna, e dívida total do Brasil:O fato é que para acumular as reservas que o Brasil acumulou, e proclamar que tem superávit com o mundo -- na verdade a dívida externa continua existindo, mas seu montante é inferior às reservas -- o Brasil faz dívida interna, a 10% ou mais, para poder comprar os dólares dos exportadores.
A consequencia é que temos acumulado uma dívida doméstica muito mais catastrófica do que qualquer dívida externa, inclusive comercial, pois os juros da Selic são sempre superiores aos dos mercados externos e mais do que o dobro do "dinheiro do FMI" (tão execrado).
Quem quiser saber mais sobre a dívida doméstico tem como se informar no site do Tesouro.



4) Iludindo os "incautos" e fazendo propaganda enganosa:
Termino e concluo: apenas os ingênuos acham que o Brasil se libertou do FMI, qualquer que seja o sentido que se dê a essa expressão. O Brasil nunca esteve obrigado a nada que não quisesse fazer, mas como em toda operação de crédito externo, existem garantias que tem de ser dadas pelo uso do dinheiro alheio. Pode-se garantir que as condições do FMI são muito melhores do que empréstimos "soberanos" que implicam custos maiores.
Pior do que tudo é contrair dívida interna para poder manter reservas que ainda tem um custo fiscal -- diferencial de juros internos e externos -- superior a 20 bilhões de dólares por ano.
Esse é o custo da propaganda do governo.

Paulo Roberto de Almeida

5 comentários:

João Ribeiro disse...

É, só que, num ponto, ter uma dívida com o FMI é pior do que ter uma dívida com títulos públicos porque com a meta da taxa SELIC o BCB faz política monetária. Para o juro baixar, a política monetária teria de ser mais expansionista do que é hoje.

Paulo Roberto de Almeida disse...

Joao Ribeiro,
Grato pelo comentario.
O governo pode fazer muitas coisas com titulos publicos, inclusive politica monetaria, mas este nao é ponto levantado no post, que buscava apenas desmistificar a propaganda do governo em torno da "liquidacao da divida (sic) com o FMI" e a "libertacao do Brasil" por causa disso.
Ninguem, nenhum pais FAZ DIVIDA com o FMI como escolha própria, para ser dependente ou independente dos mercados financeiros. Só se faz acordo com o FMI em condicoes muito especiais, inclusive porque requer aprovacao do Board, e o FMI não é uma agencia de emprestimos comerciais alternativo.
O post tambem procurava enfatizar a questao do crescimento da divida comercial, domestica e internacional, a taxas de juros comparativamente mais altas.
Era isso.
Paulo Roberto de Almeida

paulo araújo disse...

Caro

Ótimo post. Para quem sabe ler, é muito instrutivo, sobretudo se o leitor não é, como eu, versado na matéria.

E só para constar, excelente o artigo do Gustavo Franco publicado posteriormente.

Quanto ao custo fiscal das reservas, o Estadão (16 de outubro de 2010) publicou reportagem com números bem maiores:

"SÃO PAULO - A manutenção das reservas internacionais superiores a US$ 280 bilhões custa ao contribuinte brasileiro cerca de R$ 45 bilhões ao ano, o equivalente a 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo estimativas de economistas como o ex-presidente do Banco Central (BC) Affonso Celso Pastore e o ex-diretor da instituição Alexandre Schwartsman. [...]

As reservas custam caro porque o BC aplica a maior parte dos recursos em títulos públicos de países desenvolvidos, notadamente dos Estados Unidos, que hoje em dia pagam taxas de juros próximas de zero. Como o Brasil não tem excedente orçamentário para adquirir os dólares, o governo o faz por meio de endividamento. Só que a Selic (a taxa básica de juros da economia brasileira) está em 10,75% ao ano. A diferença entre o juro externo e o interno é o custo das reservas."

E o que disse o ministro Mantega?

"Guido Mantega, afirmou que o Brasil caminha rapidamente para chegar a reservas de US$ 300 bilhões. "Nós temos um custo de fato, mas é melhor pagar este custo do que ter uma economia mais vulnerável."

http://economia.estadao.com.br/noticias/economia+geral,reservas-externas-custam-r-45-bi-por-ano-ao-brasil,39204,0.htm

Como um Titanic, la nave va.

Aproveito para sugerir a leitura do post de Mansueto Almeida sobre a MP 511 (na verdade, uma "carta regia") que determina um novo aporte de R$ 20 bilhões ao BNDES para o importantíssimo e ultra-prioritário Trem-Bala. O post é anterior ao editorial do ESP de hoje (O trem-bala da Alegria) a respeito do mesmo assunto. O editorial praticamente repete o que escreveu Mansueto.

No entanto, o editorialista deixou escapar um "detalhe" no artigo 4º da MP. O que atemoriza o economista, conhecedor abalizado do modus operandi sorrateiro do governo, é o que aparentemente está oculto pela "má redação" da MP: o que parece ser o verdadeiro alvo estratégico do governo, considerando os eventos da Copa e Olimpíadas. Fica a questão se construção de estádios de futebol e vilas olímpicas serão consideradas obras de infraestrutura.
Parte do post:
Art. 4 o Fica a União, a critério do Ministro de Estado da Fazenda, autorizada a abater, até o limite de R$ 20.000.000.000,00 (vinte bilhões de reais), parte do saldo devedor de operações de crédito firmadas com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, em contrapartida às provisões para crédito de liquidação duvidosa registradas por aquele Banco, relativas a financiamento concedido a investimentos em infraestrutura do País.

Esse artigo em nada fala “da operação de financiamento a projetos de investimento de que trata esta Medida Provisória” tal como faz o Art. 1o. Ou seja, ABRE-SE A POSSIBILIDADE de a União assumir perdas de até R$ 20 bilhões dos empréstimos do BNDES PARA QUALQUER OPERAÇÃO DE INFRAESTRUTURA A PARTIR DESTA DATA (§ 1º). [grifos meus]

http://mansueto.wordpress.com/2010/11/08/novo-emprestimo-ao-bndes-e-trem-bala-mp-5112010/

Flavio Morgenstern disse...

Caro professor Paulo,

Por coincidência, fui recomendado a ler seu blog por uma amiga (curiosamente, de centro-esquerda) há alguns meses. Em menos de 2 semanas, eis que vejo que o senhor reproduziu um texto meu sobre a dívida externa, que havia acabado de publicar via Instituto Millenium.

Qual não foi a minha surpresa e honra, em acabar de conhecer um blog tão ilustre, com tamanha quantidade de textos sem nunca abir mão da profundidade – pelo contrário, todos, absolutamente todos os textos possuindo uma carga viceral de erudição, como se inspiração nunca lhe faltasse.

Por favor, perdoe-me a longa demora em comentar por aqui, mas tive certos contratempos trabalhísticos e estudantis. Mas fico absurdamente honrado com a menção ao meu texto, e mais feliz ainda em ver que gerou uma excelente discussão, e comentários ainda mais pertinentes e complexos da parte do senhor.

Gostaria de escrever uma "parte 2" de sse artigo, justamente explicando o que é o FMI e comparando as relações com esta entidade por parte dos governos dos últimos anos (preferencialmente não apenas do PSDB e do PT, pois não se trata da polarização partidária em âmbito federal que se formou na última década). Infelizmente falta-me ainda alguns estudos e pesquisas.

De toda forma, ver ainda um novo tópico sobre o tema em seu blog é um incentivo gritante para prosseguir nessa empresa.

Forte abraço,


Flavio Morgenstern.

Paulo Roberto de Almeida disse...

Meu caro Flavio,
Realmente seu artigo é muito bom, e senti-me imediatamente motivado a reproduzi-lo, uma vez que penso a mesma coisa, sem ter tido antes a oportunidade de escrever a respeito, e sem possuir, provavelmente, sua capacidade tecnica para expor o tema de forma tao competente e brilhante quanto voce o fez.
Justamente, seria excelente um follow-up seu, retomando os problemas expostos no primeiro artigo e expondo, didaticamente, as relações entre dívida pública e juros, por exemplo, ou tratando ainda da questão da dívida externa, um mito que se presta a afirmações contraditórias em várias áreas.
Avise-me quando o fizer e divulgar, para que eu possa também reproduzi-lo.
O abraço do
Paulo Roberto de Almeida