A iniciativa brasileira de rediscutir as bases do acordo automotivo Mercosul-México, vigente desde 2003, suscita avaliar os equivocados rumos da política comercial brasileira e tem impacto importante nas relações diplomáticas entre Brasil e México.
Embora haja espaço para reforma do acordo, o objetivo de equilibrar o comércio é mais um passo atrás na política comercial brasileira. O primeiro ano em que foi registrado déficit bilateral significativo do País com o México no passado recente foi 2011: US$ 1,2 bilhão. Desde 2003 o superávit médio do Brasil com o México foi de US$ 2 bilhões por ano, sem que houvesse iniciativa mexicana para denunciar o acordo. A ideia de que os fluxos de comércio são determinados por vantagens comparativas não tem trânsito fácil em Brasília. A presidente da República estaria contrariada com o atual déficit do Brasil com o México no comércio de veículos. Além disso, haveria insatisfação com a baixa exigência de conteúdo nacional (30%) para caracterizar os veículos mexicanos, ante os 65% estabelecidos pela estapafúrdia legislação brasileira que discrimina as importações na cobrança do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre veículos.
O Brasil é exportador eficiente de produtos agrícolas e minerais. E será exportador importante de petróleo no futuro. Déficits no comércio de manufaturados não são surpreendentes. O que não se justifica é o uso de um arsenal protecionista "em defesa da indústria nacional" que não está pautado por visão estratégica quanto a custos, prazos de proteção e definição dos setores industriais afetados por falhas de mercado que mereceriam subsídios temporários.
As relações Brasil-México têm sido atribuladas, com fricções frequentes entre seus diplomatas nos foros internacionais. No início dos anos 90 do século passado, a absorção do México no bloco econômico formado por EUA e Canadá tendeu a agravar as dificuldades bilaterais. Ao México, após a negociação do Nafta, era fácil se apresentar como campeão do liberalismo em vista da concentração do seu comércio com os EUA. A ineficiência de sua agricultura, além disso, impedia o endosso da ênfase do Mercosul na liberalização do comércio agrícola mundial. Essas diferenças foram dolorosamente explicitadas em Cancún em 2003. O endosso mexicano à posição das economias desenvolvidas empenhadas na defesa de seu protecionismo agrícola contribuiu para que surgisse, como reação, o G-20 da Organização Mundial do Comércio.
Durante muito tempo, o modelo mexicano foi apresentado, por policy makers e acadêmicos nas economias desenvolvidas, como algo a ser emulado. A crise mexicana de 1994 atenuou tais ilusões, mas as negociações da Alca revigoraram as comparações entre o México liberal e cooperativo e o Brasil protecionista e criador de obstáculos. Isso despertou ressentimentos no Brasil quanto à postura mexicana. E o que se vê hoje são avaliações que certamente exageram no otimismo sobre o Brasil e, talvez, também no pessimismo sobre o México.
Os ressentimentos mexicanos agora são simétricos e exacerbados. Especialmente quanto à participação do Brasil no Brics e à postulação brasileira na reforma do Conselho de Segurança da ONU. Sucessivos artigos de Jorge Castañeda, ex-chanceler mexicano, bem ilustram a intensidade desses ressentimentos. Configurando o que poderia ser qualificada como a estratégia das "uvas verdes", Castañeda, em dificuldades para expor as possíveis excelências mexicanas, se tem dedicado a sublinhar as deficiências das atitudes adotadas pelos Brics e, em especial, pelo Brasil. O raciocínio, diria um cínico, parece ser: se todos são deficientes, o México tem chance de ser proeminente. A vontade de depreciar o Brasil é tão grande (ou será incompetência?) que, em artigo recente, listou o Brasil como tendo se abstido no voto crucial de 1947, na ONU, sobre a partição da Palestina e a criação de Israel. Em contraste com o México, que se absteve, o Brasil votou a favor, em votação presidida por Oswaldo Aranha.
Castañeda precisa entender que o México incorreu em custos políticos significativos ao manter relações tão íntimas com os EUA a partir do início da década de 90. A frustração mexicana com a mediocridade dos benefícios da integração com o Canadá e os EUA, em relação às expectativas, não atenua essa percepção, que enfraquece a posição do México entre os países em desenvolvimento.
Saudades dos tempos em que a remoção de Alfonso Reyes, estimado embaixador do México no Brasil, ensejava famoso rondó de Manuel Bandeira, celebrando o almoço oficial de despedidas no Hipódromo da Gávea: Os cavalinhos correndo / E nós, cavalões, comendo... / Alfonso Reyes partindo / E tanta gente ficando... / Os cavalinhos correndo / E nós, cavalões, comendo... / O Brasil politicando / Nossa! A poesia morrendo... / O sol tão claro lá fora / O sol tão claro, Esmeralda / E em minhalma - anoitecendo!
Mais Reyes, menos Castañeda. A diplomacia dos dois países deve tratar de desarmar os espíritos. O reexame do pacto automotivo Mercosul-México não contribui para desanuviar o ambiente de rivalidade. Mas rivalidade não deve significar necessariamente mala leche.
*Marcelo de Paiva Abreu, doutor em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio.
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