Uma entrevista que eu reputo excepcional, pois os historiadores têm esse poder de ver de longe, e explicar as coisas pelos desenvolvimentos profundos, estruturais, sistêmicos.
O mais interessante, também, é ver os EUA comparativamente à Rússia, China, e até o Brasil e o nosso continente, a América Latina.
Eu teria muitos comentários a fazer, mas acho que cada leitor deste blog deve tirar suas próprias conclusões. Eu já tirei as minhas, ou melhor: já refinei certos julgamentos que fazia, apurei meu conhecimento sobre os EUA e descobri novas perspectivas sobre velhas questões de poder, potência, dominação, sucesso e fracasso no desenvolvimento.
Paulo Roberto de Almeida
Entrevista: Gordon Wood
Os Estados Unidos são uma ideia
Veja (Páginas Amarelas), 25/04/2012
O historiador explica como a revolução de 1776 formou o caráter nacional do americano e como a súbita ascensão do país à condição de potência abalou sua inocência original
Gordon Wood, 78 anos e ainda na ativa, é sinônimo de excelência acadêmica nos Estados Unidos. Professor de história da Universidade Brown, ele foi um dos primeiros a se debruçar sobre o período que, no começo de sua carreira, era um poço de desprestígio: a Revolução Americana de 1776. que ninguém considerava relevante para a formação dos Estados Unidos. Desenterrando o tesouro revolucionário, Wood criou uma inovadora e requintada interpretação sobre os americanos e os Estados Unidos. Uma de suas pérolas: "Ser americano não é ser alguém, mas acreditar em alguma coisa". Especialmente acreditar em democracia e liberdade, ideias que embalaram a revolução. Nesta entrevista, concedida na sua modesta sala na universidade, Wood explica passado e presente dos Estados Unidos.
Historiadores brasileiros acreditam que o Brasil seria um país mais avançado se tivesse vivido uma ruptura, como uma revolução ou uma guerra civil. Os Estados Unidos devem o que são às rupturas?
A revolução de 1776 nos legou um conjunto de ideias e valores ao qual estamos sempre recorrendo. Originalmente, éramos na maioria ingleses e escoceses. Em seguida, chegaram os alemães, depois os irlandeses. A capacidade de assimilar todos os imigrantes decorre do fato de que ser americano não é ser alguém, mas acreditar em algo. Ser americano é acreditar nas ideias e valores promovidos pela revolução. A igualdade, a liberdade. Os americanos do século XVIII tinham essa força. e ela chegou até nós. A Argentina é um bom contraponto. Também teve uma forte imigração europeia, mas os europeus que foram para a Argentina ficaram dispersos, sem coesão. Isso tem reflexos ainda hoje porque os argentinos não fizeram a revolução dos americanos. São as ideias de democracia e liberdade que nos mantêm unidos. Na guerra civil, que durou de 1861 a 1865, o presidente Abraham Lincoln evitou a desintegração iminente do país apelando claramente para esses valores.
Os valores precedem o sentido de nacionalidade?
Na verdade, nem somos uma nação no sentido comum do termo, no sentido tribal, étnico. Somos de etnias diversas e, quando nos identificamos como americanos, a referência são as ideias, os valores. Os ingleses, os alemães e os franceses, por exemplo, têm um sentido tribal, étnico. Aliás, é o que lhes causa tanta dificuldade para lidar com imigrantes estrangeiros. Os árabes da Argélia estão na Franga ha três, quatro gerações. Nasceram na França, falam francês perfeitamente, mas os franceses não conseguem acreditar que esses árabes sejam realmente "franceses". Conosco é diferente. O mundo inteiro está nos Estados Unidos. Quem vive em Nova York sabe do que estou falando. O que mantém essa sociedade unida? É o apelo à liberdade, à igualdade. O respeito à Constituição também é parte do ideário. A Constituição é a materialização institucional da liberdade, da igualdade, da democracia.
O que explica a ambiguidade americana de prezar a democracia e ter ficado ao lado das ditaduras militares na América Latina, inclusive no Brasil?
Aí, é preciso voltar a Revolução Russa de 1917 e entender o que ela significou para os Estados Unidos. Foi uma disrupção extraordinária, um choque. Até então, os americanos saudavam as revoluções. Acreditavam que todas eram cópia da Revolução Americana. No início, em fevereiro de 1917, quando os russos derrubaram o czar, fomos o primeiro país a reconhecer o novo governo. Levamos apenas sete dias. Mas em outubro, com a ascensão dos bolcheviques, tomamos um susto. Demoramos dezesseis anos para reconhecer o governo soviético. Foi um choque pesado porque a Revolução Russa não era, claramente, uma cópia da Revolução Americana. Era um desafio à nossa revolução. Os russos eram o futuro, não os americanos. Eles ameaçavam expulsar os americanos da vanguarda da história. E isso era altamente devastador.
Os bolcheviques atacavam o capitalismo, a propriedade privada, o livre mercado. O susto americano se explica por aí?
Esse foi o susto dos ingleses. Já na derrubada do czat os ingleses estavam repudiando a revolução pelo desprezo aos valores econômicos. Os Estados Unidos, não. O presidente Woodrow Wilson saudou os russos como parceiros ideais. Em outubro, a revolução passou a ser uma ameaça ao vanguardismo histórico dos americanos. Claro que os Estados Unidos estavam preocupados com o confronto com o capitalismo e as leis de mercado, mas boa parte da reação americana se compôs do choque de perder sua posição na história para os russos. Tanto que fomos o último país de peso a reconhecê-los. Poderíamos tê-lo feito junto com a Inglaterra ou a França. Mas fomos os últimos. A Guerra Fria começou aí. Ficou obscurecida pelas alianças da II Guerra Mundial, mas, assim que os nazistas caíram, nossa atenção voltou para os soviéticos.
O apoio dos Estadas Unidos às ditaduras sul-americanas foi reflexo do susto bolchevique?
É a razão pela qual a ameaça do comunismo foi tão espetacularmente exagerada. Depois da II Guerra, o comunismo estava se espalhando. Tinha chegado à China, ao Leste Europeu. Por meio de Cuba, chegou à América Latina. Mas, apesar dessa proliferação, a ameaça não era robusta como se imaginava. Víamos o mundo com lentes de aumento. A ameaça do comunismo foi tão exagerada que pouquíssima gente previu o colapso da União Soviética em 1991.
A ascensão da China, estado autoritário, representa um desafio aos valores americanos?
Os chineses não são ideologicamente imperialistas, como era a União Soviética. Eles vão continuar se expandindo na África, e mesmo no Brasil, onde já são um parceiro comercial de primeira grandeza, mas a expansão não tem caráter ideológico. Os chineses não estão interessados em promover o comunismo, que não existe mais nem na própria China. Eles são da iniciativa privada, do livre empreendedorismo. Quem se preocupa com a China no sentido expansionista são os vizinhos asiáticos — os japoneses, os filipino; os viemamitas, os sul-coreanos. Mas para eles, a presença dos Estados Unidos no Pacífico é uma força estabilizadora. Os chineses reconhecem isso.
Apesar da China, a democracia é uma ideia vitoriosa no mundo de hoje. No mesmo momento, só se fala em declínio dos Estados Unidos. É um paradoxo?
Com a ascensão de outros países, a posição relativa dos Estados Unidos obviamente será reduzida. O crescimento do Brasil como força principal na América do Sul, por exemplo, impede o governo americano de agir como antes na região. Mas não vejo um paradoxo. Primeiro, porque nem todos concordam com a premissa de que os Estados Unidos estejam em declínio. Segundo, porque a popularização da democracia se encaixa à perfeição na psique americana. Ninguém diz que os Estados Unidos têm algo a ver com a Primavera Árabe, mas vale a ideia de que, com a mobilização democrática, os árabes estão nos copiando. Quando Ronald Reagan dizia "todo mundo quer ser livre", ele estava querendo dizer "todo mundo quer ser igual a nós".
O senhor acredita na teoria do "excepcionalismo americano", segundo a qual os americanos são um povo especial com uma missão especial?
É uma teoria controvertida hoje, mas boa parte da nossa história é permeada pela noção de que temos a missão especial de levar democracia ao mundo. Quando John Winthrop, a bordo do navio que aportou em Massachusetts em 1630, fez o célebre discurso, um sermão na verdade, dizendo que seríamos "uma cidade no alto da colina", ele estava se referindo à religião. A "cidade no alto da colina" era a imagem para ilustrar que seríamos um modelo de cristianismo reformado. Winthrop não estava pensando em democracia. Mas os americanos tomaram o sermão como manifesto democrático e, ao longo da história, têm visto a si mesmos como modelo de democracia e com a missão de promovê-la. Na guerra civil, no famoso discurso de Gettysburg, em 1863, Lincoln expressou o sentimento de que éramos a última esperança do mundo. Ele estava certo. A monarquia predominava. As revoluções de 1848 tinham fracassado. A Revolução Francesa estava liquidada. Napoleão III era o imperador. A América era uma república isolada, em urn mundo de governos autoritários. Tenho simpatia por quem acredita na missão democrática, mas não com o envio de tropas, como fizemos no Iraque. Fui e sou contra. O Iraque é um desastre absoluto.
Com a dolorosa lição do Vietnã, por que os Estados Unidos não foram mais prudentes no caso do Iraque?
Curiosamente, somos um país que está constantemente perdendo a inocência. Não há virgens perdendo a inocência seis ou sete vezes, só os Estados Unidos. Sempre que nos metemos num buraco alguém escreve sobre o "fim da era da inocência". Na Guerra Hispano-Americana, em 1898, perdemos a inocência. Depois perdemos a inocência na I Guerra, ao descobrir quem eram os europeus de verdade. Depois, perdemos a inocência outra vez na II Guerra, ao nos tornarmos um poder maduro. Depois, no Vietnã. O mesmo pode ser dito do Afeganistão. Há pouco, um grupo de soldados americanos queimou o Corão. Eles não têm ideia do que estavam fazendo, mas é um sinal de primitivismo. Além de termos uma certa inocência, falta-nos certo requinte para ser o país poderoso que somos. No século XIX, na fase imperial, os ingleses cometeram muitos erros, mas nunca se suspeitou que fossem inocentes.
De onde vem a falta de requinte?
Talvez do fato de que somos democratas e, por isso. esperamos que os outros gostem de nós. Afinal, temos bom coração, não queremos o mal de ninguém. Então, quando as coisas não acontecem do jeito que esperávamos, ficamos perplexos. Estamos sempre nos perguntando: "Por que eles não gostam de nós?". No fundo, não gostamos de exercer o poder. Exercemos, mas não era bem isso que queríamos. É uma inocência. Somos os inocentes no exterior, como diz o título do livro do escritor Mark Twain.
O senhor escreveu que, no fim do século XVIII, o Ministério da Guerra americano tinha um contador, catorze escriturários e dois mensageiros. Por que virou essa potência militar?
Faz parte da inocência americana. Tudo aconteceu de repente. Faz sessenta ou setenta anos. Antes da II Guerra, nosso Exército e nossa Marinha eram patéticos Depois, erguemos esse imenso complexo industrial-militar. Fizemos o Pentágono, a CIA. Em comparação com outros países, não tínhamos hábito nem traquejo com essas estruturas. Com a responsabilidade global na Europa e contra os soviéticos, precisávamos de uma rede de inteligência, de espiões, tínhamos de saber o que estava acontecendo. A mudança foi monumental. Internamente, o presidente Franklin Roosevelt ergueu uma enorme estrutura governamental em função da depressão. A isso, adicionou-se em seguida o estado militar. É um contraste agudo com a nossa história É tudo relativamente recente — apenas duas gerações. Thomas Jefferson e James Madison nunca aceitaram a ideia europeia de estado com elaboradas estruturas administrativas, força militar, carga pesada de impostos e alto endividamento.
É essa a origem da diferente concepção de estado entre americanos e europeus?
Exatamente. Nunca tivemos uma concepção do estado parecida com a dos franceses, alemães e mesmo dos ingleses. Para nós, isso ocorreu muito tarde, não antes da II Guerra. Nossa burocracia é ressentida. Na França, as melhores cabeças vão para a burocracia. Isso também ocorre na Inglaterra. Entre nós, desde o início prevalecia a ideia de que o gigantismo do estado era coisa de monarquias que promoviam a guerra. Nas repúblicas democráticas, não haveria estrutura oficial excessiva e seríamos promotores da paz. Não estávamos equipados intelectualmente para lidar com essa ideia de estado. Acabamos, quase que repentinamente, construindo um estado com as ramificações burocráticas e esse imenso complexo industrial-militar.
Excelente entrevista. Gostei muito da parte na qual ele comenta: "falta-nos certo requinte para ser o país poderoso que somos". São poucas palavras, mas que fazem o amante de história refletir
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