Recebo com extrema satisfação a informação abaixo, uma vez que fui um dos primeiros a resenhar esta obra importante, multivolume, e multi-períodos, composta pelo meu amigo e grande jurista, Antonio Augusto Cançado Trindade.
O anúncio da segunda edição -- com um novo prefácio do seu autor e organizador -- e sua disponibilização online é uma grande notícia para todos os pesquisadores e estudiosos da diplomacia brasileira, pois o DIPúblico brasileiro é essencialmente, ou quase exclusivamente diplomático.
Usei quase todos os volumes no curso destas décadas, com ênfase na primeira fase republicana, para escrever meus trabalhos, embora selecionando os textos de conteúdo mais econômico ou político, e não necessariamente jurídico. Mas, num último trabalho sobre a doutrina brasileira da não intervenção ainda compulsei vários volumes, para poder ter uma ideia abrangente da atitude brasileira ao longo do tempo.
Devo dizer que o trabalho do jurista AACT é da mais alta qualidade, e me permito transcrever, depois da nota da Funag, uma resenha que preparei, em duas etapas, sobre os vários volumes desse Repertório (que não estava completo, ainda, quando fiz a resenha).
Paulo Roberto de Almeida
FUNAG - Reedição do "Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público"
No contexto do 40º aniversário de sua criação, a Fundação Alexandre de Gusmão lançará brevemente segunda edição do “Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público”, elaborada pelo Professor, hoje Juiz da Corte Internacional de Justiça, Antônio Cançado Trindade.
Originalmente publicados entre 1984 e 1988, os cinco volumes e o índice analítico que compõem a obra abrangem manifestações brasileiras relativas a questões de direito internacional de 1889 a 1981. A segunda edição, que conta com um novo prefácio do Juiz Cançado Trindade, estará também disponível na biblioteca virtual da FUNAG.
Em encontro na FUNAG, o Juiz Cançado Trindade e o Presidente da Fundação celebraram a nova edição e discutiram como levar adiante a atualização do repertório até períodos mais recentes.
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DIREITO INTERNACIONAL
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
20 dezembro 1986, 5 pp.
Publicada
na seção “Crítica” da revista Humanidades
(Brasília,
Ano IV, nº 12, fevereiro-abril 1987, pp. 119-120).
Relação
de Trabalhos n° 076. Publicados nº 035.
Antonio Augusto Cançado Trindade:
Repertório
da Prática Brasileira do Direito Internacional Público
(Brasília, Fundação Alexandre de
Gusmão, 1984 a 1986, para os diferentes volumes cobrindo quatro períodos, de
1899 a 1981).
A América Latina tem, reconhecidamente, uma longa tradição em
matéria de Direito Internacional Público. Mesmo os não especialistas saberiam
reconhecer a importância da contribuição continental nesse terreno bastando,
por exemplo, fazer referência ao princípio
do uti possidetis, à cláusula Calvo, à doutrina Drago (ambas, aliás, suscitadas
por um problema cruelmente atual, o da dívida externa dos países
latino-americanos), ao instituto do asilo diplomático ou ao conceito de mar
patrimonial. O Brasil, por sua vez, possui longa prática diplomática, alicerçada
em sólida e igualmente longa tradição jurídico-legal, o que tornou sua política
externa respeitada internacionalmente e merecedora da confiança dos demais
membros do sistema interestatal contemporâneo.
A codificação da tradição internacionalista latino-americana
deveria, assim, representar um subsídio indispensável ao processo de elaboração
do Direito Internacional Público, ramo do direito em constante evolução e
transformação. Em que pese, porém, a existência de alguns bons manuais de
Direito Internacional Público elaborados no contexto latino-americano – dentre
os quais destacaríamos o do brasileiro Hildebrando Accioly e o do chileno
Fernando Gamboa Serazzi – e dedicados à evolução doutrinária e jurisprudencial
do chamado jus gentium, os especialistas e observadores da já referida tradição
ressentiam-se da falta de codificação similar para a prática dos Estados no
campo das relações diplomáticas e do Direito Internacional Público. Essa
lacuna, pelo menos no que concerne o Brasil, vem sendo preenchida pelo
extraordinário labor solitário do eminente internacionalista Antonio Augusto
Cançado Trindade, professor de Direito Internacional Público da Universidade de
Brasília e do Instituto Rio Branco e Consultor Jurídico do Ministério das
Relações Exteriores.
A obra que ora se apresenta sob os auspícios da Fundação
Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, vem completar uma série de três outros
volumes dedicados ao tema da prática diplomática brasileira, cobrindo
respectivamente os períodos de 1961-1981, 1941-1960 e 1919-1940 (publicados
nessa ordem). Autor de vasta produção especializada no campo do Direito
Internacional Público, incluindo, além de numerosos artigos e monografias
publicados nos principais periódicos do mundo, dois outros volumes editados
pela Universidade de Brasília – Princípios do Direito Internacional
Contemporâneo (1981 ) e O Esgotamento de Recursos Internos no Direito Internacional
(1984, cuja versão original foi agraciada com o Premio Yorke, da Universidade
de Cambridge) – o Professor Cançado Trindade realizou, com os quatro livros
editados, um esforço altamente meritório e rigorosamente inédito não apenas nos
anais do Direito Internacional brasileiro, como na história jurídica da América
Latina e do Terceiro Mundo.
Com efeito, apesar da existência de Relatórios de
Chancelarias, bem como de Coleções de Atos Internacionais publicados por
diversos Governos do continente, não havia, até o presente momento, um
Repertório, organizado de forma lógica e sistemática, da prática diplomática
corrente de algum Estado latino-americano. O Brasil junta-se, assim, aos poucos
países do hemisfério norte que coletam em seus Digests ou Repértoires
anuais os elementos mais significativos de suas práticas nacionais respectivas
em matéria de Direito Internacional Público e de relações diplomáticas.
A importância do trabalho do Professor Cançado Trindade para o
Brasil e para as demais nações do continente é tanto maior que a divulgação
sistemática e selecionada da prática diplomática brasileira contribui para
projetar num âmbito mais amplo os interesses econômicos, políticos e
diplomáticos propriamente nacionais ou regionais, sobretudo aquelas posições de
princípio ligadas à lenta elaboração de uma nova ordem econômica internacional
(de que a Convenção sobre o Direito do Mar é um marcante exemp1o) .
Mas, em que consiste exatamente o Repertório da Prática
Brasileira do Direito Internacional Público – este “ciclópico trabalho” –
segundo a feliz caracterização empregada pelo Embaixador João Hermes Pereira de
Araújo – que cobre o conjunto das relações internacionais do Brasil entre 1899
e 1981? A estrutura dos quatro volumes é basicamente idêntica, com pequenas
variações em função do período tratado, consistindo de nove partes articuladas
em torno das seguintes rubricas:
l) Fundamentos do Direito Internacional, destacando-se, nos
princípios que regem as relações amistosas entre os Estados, a “soberania
permanente sobre recursos naturais”, de introdução mais recente; 2) Atos
Internacionais, cobrindo a ampla processualística dos tratados entre Estados e
organizações; 3) Condição dos Estados, envolvendo reconhecimento, jurisdição,
imunidades, responsabilidade internacional e sucessão de Estados; 4)
Regulamentação dos Espaços, territorial, marítimo, aéreo e espacial; 5)
Organizações Internacionais; 6) Condição dos Indivíduos, compreendendo direitos
humanos e direito de asilo; 7) Solução Pacífica de Controvérsias e
Desarmamento, inclusive, para o período recente, um capítulo para a questão do
terrorismo; 8) Conflitos Armados e Neutralidade; 9) miscelânea, abrigando,
entre outros temas, cláusula da Nação-Mais-Favorecida e, em acordo com os novos
tempos, Multinacionais e Segurança Econômica Coletiva.
Em cada um desses grandes blocos de problemas do Direito
Internacional Público abriga-se um manancial extraordinário de informações e
documentos de referência sobre a prática brasileira nos quatro períodos
delineados.
A periodização adotada por Cançado Trindade para cobrir esses
82 anos (de 1899 a 1981) de prática brasileira do Direito Internacional
Público, se parece atender mais a critérios de conveniência do que propriamente
razões de ordem metodológica, tem pelo menos o mérito de sublinhar a notável
continuidade demonstrada pela prática diplomática do Brasil, a despeito mesmo
de rupturas na ordem política e constitucional em alguns momentos (1930, 1937,
1964) de nosso itinerário republicano. Fica aliás a sugestão, para um ulterior
volume de interpretação e de comentários sobre a prática diplomática agora repertoriada,
de proceder-se a uma análise diacrônica comparativa sobre as posições adotadas
pelo Brasil em face de desafios similares em momentos diversos de nossa
história.
Estabelecida a divisão temática, vejamos com que tipo de
“matéria-prima” trabalhou Cançado Trindade na monumental compilação que agora
esta chegando a seu termo. O simples enunciado dos diversos tipos de fontes
documentais dá uma ideia da grandiosidade do esforço empreendido pelo brilhante
internacionalista: a maior parte dos textos selecionados é proveniente de
material impresso oficial do Itamaraty, consistindo de relatórios anuais
encaminhados à Presidência da República, pareceres jurídicos dos Consultores do
Itamaraty, correspondência e expedientes de serviço (notas trocadas com outras
Chancelarias, declarações de beligerância, documentos internos ostensivos,
memoranda não publicados etc.), discursos e pronunciamentos do Ministro das
Relações Exteriores, intervenções de delegados brasileiros em conferências
especializadas ou em sessões de organizações internacionais e demais
declarações oficiais do Governo brasileiro sobre temas de relações
internacionais, incluindo-se declarações conjuntas de natureza bilateral.
Figuram ainda, neste vasto e completo repertório, discursos pronunciados por
parlamentares nos plenários do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, bem
como exposições e debates realizados em suas respectivas Comissões de Relações
Exteriores por ocasião do comparecimento do Chanceler brasileiro.
Imagine-se as dificuldades do trabalho engajado por Cançado
Trindade: não bastasse o critério de escolha e seleção da documentação
disponível – tarefa por si só angustiante para o honnête homme e quase um tormento para o scholar consciencioso, que
trabalha sobre uma verdadeira mina de preciosidades documentais – deve-se levar
em conta a verdadeira multiplicidade de vias para o acesso às fontes e o
caráter frequentemente confidencial dos documentos compulsados. Ainda que a
maior parte da documentação reunida estivesse sob forma impressa, o
distanciamento em relação a nossa época a torna quase que inédita, entregue que
estava, nas últimas décadas, a um outro tipo de “crítica roedora”.
Como bem disse o Embaixador Jose Sette Câmara, Cançado
Trindade “conseguiu condensar uma imensa área de informação que estava dispersa
e perdida na poeira dos arquivos do Itamaraty”. Mesmo que nosso reconhecimento
de pesquisadores não se esgote neste aspecto específico do garimpo documental,
somos todos gratos a Cançado Trindade por esse longo convívio com “traças
literárias” de diversas épocas, dispensando-nos de igual frequentação. No caso
deste ultimo volume, que cobre, inter alia, a gestão do Barão do Rio Branco,
alguns documentos são efetivamente inéditos, pois que entre 1903 e 1911 não foi
publicado o Relatório do MRE.
No que se refere à substância mesma do material selecionado,
os documentos escolhidos são altamente significativos e esclarecedores da
posição oficial brasileira sobre os grandes temas do Direito Internacional
Público, permitindo igualmente ao historiador uma visão evolutiva da política
externa brasileira em diversas questões cruciais de nosso relacionamento
internacional. A título de exemplo, comparecem nos diversos volumes problemas
tão diversos como um “excerto do Relatório do Itamaraty... sobre o
Reconhecimento pelo Brasil do Governo Provisório da Rússia, em 9 de Abril de
1917” (1899-19l8), o “Parecer do Consultor Jurídico do MRE, Clovis Beviláqua,
sobre... a Retirada do Brasil da Liga das Nações” (1919-1940), telegrama
enviado por Giraud e de Gaulle a Getúlio Vargas a propósito do “Reconhecimento
pelo Brasil do Comitê Francês de Libertação Nacional, em 1943” (1941-1960), ou
a “Nota de Denúncia do Acordo de Assistência Militar Brasil-Estados Unidos, de
11 de março de 1977” (1961-1981).
Como se não bastasse tal riqueza documental, Cançado Trindade
ainda brinda-nos, em cada um dos respectivos capítulos introdutivos aos volumes
editados, com quatro excelentes análises descritivas e críticas sobre o estudo
das práticas nacionais de Direito Internacional Público e o papel dos
repertórios sistemáticos no processo de codificação progressiva nesse campo,
que dão testemunho, por elas mesmas, da excepcional erudição, saber jurídico e aggiornamento bibliográfico do jovem
Consultor Jurídico do Itamaraty.
Esses textos, que mereceriam uma eventual unificação
metodológica e publicação independente, são, nominalmente, os seguintes: “Os
Repertórios Nacionais do Direito Internacional e a Sistematização da Prática
dos Estados” (1961-1981), “A Expansão da Prática do Direito Internacional”
(1941-1960), “A Emergência da Prática do Direito Internacional” (1919-1940) e
“Necessidade, Sentido e Método do Estudo da Prática dos Estados em Matéria de
Direito Internacional” (1899-1918). Particularmente o primeiro e o ultimo texto
introdutório justificariam uma outra resenha crítica, que não caberia contudo
nos limites deste trabalho de apresentação; eles constituem, ademais, um
registro atualizado e sintético da experiência de outros países em matéria de
repertórios de prática diplomática, permitindo uma visão global da diversidade
metodológica e conceitual ainda vigente nos registros nacionais de Direito
Internacional Público.
Estes quatro volumes (editados entre julho de 1983 e agosto de
1986) serão seguidos, brevemente, de um Índice analítico, absolutamente
indispensável ao pesquisador sistemático, bem como de uma 2a. edição do
primeiro volume publicado, estendendo o período coberto até 1986. Fica desde já
a sugestão ao Ministério das Relações Exteriores, através da Fundação Alexandre
de Gusmão, para que inscreva em seu programa de trabalho a atualização
periódica do Repertório iniciado pelo Professor Cançado Trindade. É também
digna de reter a recomendação do Professor Alexandre Charles Kiss, autor do Repértoire francês, no sentido de que
seja providenciada uma edição em francês e em inglês do Index e do sumário dos
volumes editados, ao que eu acrescentaria a sugestão de uma apresentação
especial da prática brasileira ao público estrangeiro por parte do Professor
Cançado Trindade. Nossa prática diplomática, inclusive a que está presentemente
sendo escrita por ele mesmo na Consultoria Jurídica do Itamaraty, merece, sem
dúvida alguma, ser melhor conhecida no âmbito internacional. Sejamos,
literalmente, internacionalistas assumidos!
PAULO
ROBERTO DE ALMEIDA
Universidade
de Brasília e Instituto Rio Branco.
[29.12.1986; n°
142]
Um comentário:
Gosto quando escreve com diplomacia. Aliás, deveria até em suas críticas manter este padrão de escrita de alto nível.
Mas, às vezes acaba se excedendo e perdendo a qualidade da "editora PRA".
Belas palavras sobre o professor Antonio Cançado Trindade. Ele faz falta no STF.
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