Apenas uma contribuição ao debate, se debate existe, na verdade.
Salvem o Barão!
Paulo Roberto de Almeida
Sim, salvem o Barão, não exatamente
da memória coletiva, e das justas homenagens que se lhe deva prestar, mas de alguns
de seus mais gentis detratores, especialmente as feministas, os racialistas e os
politicamente corretos.
Este é o ano do Barão, ou
pelo menos o ano das comemorações do centenário da morte de José Maria da Silva
Paranhos Júnior, ocorrida em fevereiro de 1912, em seu gabinete do Itamaraty.
Ele devia estar recebendo homenagens e sessões comemorativas, e na verdade
está; como patrono e santo protetor da diplomacia brasileira, ele vem sendo objeto
de merecidos encômios nos setores mais diversos da sociedade, com destaque para
o próprio MRE, a Academia Brasileira de Letras e o IHGB, do qual ele foi
presidente. Mas, no meio de todas as festividades, surgem por vezes aqueles que
retomam a sua memória para observar que, por uma razão ou por outra, ele não
representa mais a diversidade cultural brasileira. Gostaria de considerar aqui
apenas duas manifestações mais recentes, que mereceram minha atenção, uma
oficial, a outra privada.
Na cerimônia do dia do
diplomata, realizada em 20 de abril de 2012, no Palácio do Itamaraty de
Brasília, em presença de muitas autoridades da República, foram ouvidos os
discursos de praxe: o do ministro, o do paraninfo, o da presidente (no final),
e o da oradora escolhida pela turma que se estava graduando. Foi justamente a
peça coletiva – elaborada ao que parece por cem cabeças (era o número
aproximado dos formandos) – a que reteve minha atenção, pela natureza, digamos
especial, dos argumentos. Como os integrantes escolheram homenagear uma colega
falecida no final do ano passado, em
consequência de enfermidade tropical contraída em viagem a serviço, a turma
resolveu adotar seu nome e prestar-lhe uma justa honraria, como mulher, como
negra e como acreana. Até aí tudo bem e associo-me às manifestações de pesar
por tão infeliz desenlace de uma missão oficial a serviço do Itamaraty e da
política externa brasileira. O mais curioso, porém, é que no confronto talvez
involuntário de suas biografias, o Barão acabou fazendo figura de homem branco,
do centro político e econômico do país.
Vejamos alguns dos trechos
pertinentes desse discurso:
“Este discurso é uma obra
coletiva.
“Cem anos atrás, falecia,
José Maria da Silva Paranhos Júnior, homem branco, nascido no então centro
político e econômico do país, o Barão do Rio Branco. Quatro meses atrás,
falecia Milena Oliveira de Medeiros, mulher negra e acreana, cidadã de Rio
Branco. Ela e ele diplomatas, separados pelo longo século XX.
(...)
“O que pensarão as futuras
gerações de diplomatas ao descobrirem que a turma que se formou no ano de 2012,
no centenário do falecimento do Barão, não escolheu o seu nome para patrono? Saberão
que nossa turma escolheu homenagear uma mulher, e uma mulher negra, parte desse
restrito grupo que conseguiu vencer os obstáculos que injustiças históricas
fizeram aparecer em seus caminhos. Entrou pela porta da frente, em uma
sociedade que sempre escondeu nos fundos as questões com as quais tem de lidar.
“Mais simbólico do que
eleger o Barão, foi escolher Milena, nascida em Rio Branco. Homenageá-la é também
homenagear José Maria. Sem ele, Milena talvez não tivesse nascido no território
do Brasil. Sem ela, nossa diplomacia teria sido menos diversa, menos humana,
menos brasileira.
“Milena simboliza a nova
geração de diplomatas, das chamadas “turmas de cem”, que caminha para a
diversidade de origens geográficas, de gênero, de cor e de poder aquisitivo. Mais
do que representar o presente, Milena anuncia o futuro do Itamaraty e da
política externa brasileira, cada vez mais plural e mais tolerante, cada vez
mais coerente com os nossos princípios.
(...)
“Ainda assim, entre os 108
diplomatas que hoje se formam, encontramos menos diversidade de origem, de
raça, de gênero, de crença, de classe social, de orientação sexual do que
gostaríamos. Faltam mulheres, índios, negros, deficientes. A diversidade característica
da população brasileira ainda não se reflete na participação política, tampouco
na formação do quadro diplomático.
“Se houve avanços, e
certamente houve, admitamos que não foram suficientes Ainda somos um ministério
majoritariamente branco e masculino. No ano em que elegemos, de forma inédita,
a primeira mulher presidenta do Brasil, continuamos sendo apenas um quarto do
quadro de diplomatas. No nível de ministros de primeira classe, somos apenas
15%. Não podemos aceitar essa discrepância como dado. Nossa eventual omissão
será condenada pelas futuras gerações.”
Que observações eu teria a
fazer com respeito aos trechos selecionados do discurso da turma 2012 do
Instituto Rio Branco? Talvez apenas a lição fundamental de todo historiador: a
de que não se deve ler a história com os olhos no presente, sob risco de
incorrer no pecado do anacronismo, numa versão mais acadêmica, ou no viés do
politicamente correto, na versão moderna dos comportamentos adequados ao tempo.
O Barão não foi condenado explicitamente, por ser um branco da elite política
do país, mas perpassa no discurso a ideia de que o Itamaraty não corresponde ao
que é, hoje, a sociedade brasileira e que caberia fazer algo para reparar
“injustiças”. Como se disse, a omissão da presente geração “será condenada
pelas futuras gerações”.
Foi também em nome de
“injustiças históricas” que os juízes do Supremo se julgaram no direito de
abolir a Constituição e sancionar a legalidade das cotas raciais em vigor em
universidades e certos órgão públicos. Talvez os diplomatas da presente turma
estejam pensando igualmente que um sistema de cotas ajustaria o Itamaraty mais
rapidamente ao perfil diversificado da sociedade brasileira. As cotas teriam de
ser extensivas e focadas em gênero, raça, orientação sexual, ou qualquer outra
deficiência “estrutural”, segundo se depreende da obra coletiva que foi o
discurso em nome da última turma dos cem. Imagino que apenas cotas poderiam
romper com o padrão atual, considerado nefasto e não representativo do Brasil
atual, mas que ameaça perdurar: um Itamaraty branco, masculino, de pessoas da
elite, das capitais importantes do país.
Não sei como esse sistema “diversificador”
seria recebido por eventuais desfavorecidos dentre estes últimos candidatos,
caso sua pontuação – que é o resultado unicamente do mérito, através do estudo
– fosse desconsiderado numa seleção “alternativa”. Talvez o assunto subisse
novamente ao Supremo, que teria, então, de confirmar novamente que, no Brasil,
a Constituição é apenas relativa, e que o artigo que não reconhece distinções de
qualquer gênero teria de ser contrabalançado pelo ideal de justiça e de
igualdade de oportunidades. Assim é, se lhe parece...
Adiante. Tomei
conhecimento do seguinte comentário a propósito das “memórias” do Barão,
publicadas no n. 76 do Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros
(janeiro-fevereiro-março 2012, p. 26-29; disponível no Blog Diplomatizzando, link: http://diplomatizzando.blogspot.fr/2012/04/as-memorias-do-barao-do-rio-branco.html).
O comentarista parece estar visivelmente indignado, não apenas com o discurso
da turma 2012 do Instituto Rio Branco, mas com o próprio Barão. Senão vejamos:
“Lamentei muito que a ADB
tenha publicado um texto do Barão com referências ao patrono da diplomacia
brasileira dizer que o Brasil é um país de pouca inteligência política, chamar
um militar de ‘mula fardada’ e demonstrar pouco afeto pela cidade do Rio de
Janeiro, deixando claro preferir território europeu ao seu nacional. Em um
momento em que a última turma de diplomatas formada deixou o Barão de lado, e
em que outros setores da casa se movimentam contra os diplomatas em um
sindicato que supostamente defenderia a todos, achei inoportuno…”
Confesso que fiquei
perplexo, e me pergunto como se poderia tentar responder a este comentário, que
demonstra um legítimo sentimento de desprazer, em face de certa displicência
com a memória do Barão, evidenciada tanto no discurso como nas ditas “Memórias”.
Não sei se o próprio Barão poderia responder a um comentário tão ácido sobre
suas palavras, mas duvido que ele pudesse ou quisesse fazê-lo, na mais imaginativa
das hipóteses. Na impossibilidade do próprio Barão se encarregar da tarefa, o
jeito é desempenhar-se com os meios de bordo. Vejamos o que comentar, de minha
parte.
Suponho que a primeira
coisa que o Barão do Rio Branco faria, de sua parte, seria lamentar a falta de
senso de humor do comentarista acima transcrito. Pela nota introdutória às
“Memórias”, era patente que ele só estava tecendo considerações desabusadas
sobre seus contemporâneos porque resguardado pelo sigilo da fonte; para tanto, ele
havia solicitado um prazo prudencial. Mas ele não poderia prever, obviamente,
que pessoas provavelmente mal intencionadas se empenhariam em divulgar o que foi
pensado apenas como anotações pessoais, para futuras e verdadeiras memórias.
A segunda coisa que
provavelmente o Barão faria seria lamentar a falta de conhecimento histórico do
comentarista acima transcrito. Um dos motivos do possível agravamento da doença
do Barão foram suas reais aflições com as intervenções armadas conduzidas pela
“mula fardada” contra certos governos estaduais, notadamente na Bahia. O Barão
tem sua saúde abalada justamente no momento em que o governo federal mandava
bombardear a capital baiana, numa demonstração de que as “salvações nacionais”
representavam, na verdade, o esmagamento dos inimigos do “voluntarioso
marechal”, por quaisquer meios à disposição, inclusive os canhões. Na Bahia,
Ruy Barbosa, que havia sido candidato contra Hermes da Fonseca em 1910, foi
derrotado vergonhosamente uma segunda vez, não pelo voto, mas pelos obuses. O
Barão, compreensivelmente, se desesperava, não apenas em função da fatalidade
trágica que atingia seu amigo baiano, mas sobretudo pela péssima imagem que
essa política da canhoneira projetava contra o Brasil no exterior. Não cabem
dúvidas de que o episódio baiano, em janeiro de 1912, que já vinha de uma série
de outras intervenções nos estados, agravou seu estado de saúde e pode ter
acelerado o desfecho fatal, no mês seguinte.
Quanto às pestilências do
Rio de Janeiro, elas eram de sobejo conhecidas, mesmo depois do saneamento (à
força) de Oswaldo Cruz e dos trabalhos de infraestrutura do prefeito Pereira
Passos. Não fosse por isso, o calor do Rio recomendava ao Barão e a quase todo
o corpo diplomático refugiarem-se na serra sempre quando possível.
Por fim, restam as
considerações certamente depreciativas do Barão em relação à pouca inteligência
e preparação da classe política para governar o Brasil e levá-lo a uma posição
de destaque no cenário internacional. Estimo, pessoalmente, que outra não seria
a constatação do Barão, se vivo fosse e se contemplasse a situação da
governança, não apenas no Brasil, mas igualmente em países supostamente
avançados. Como já sabia Maquiavel – do qual me permiti atualizar seus
conselhos aos candidatos a príncipes – existem constâncias na vida política de
uma nação que não mudam tão facilmente, mesmo passados alguns séculos de
progressos materiais. Não por outra razão ele buscava na Roma antiga os
exemplos que lhe permitiam ilustrar a conduta dos homens de seu tempo. Não
creio, sinceramente, que desde o Renascimento, os costumes políticos, no Brasil
e em outros lugares, tenham sido renovados de maneira espetacular.
Concluindo, eu diria que o
politicamente correto e o anacronismo histórico constituem dois males dos quais
devem escapar analistas sutis e perceptivos como devem ser os diplomatas, de
quaisquer épocas, em quaisquer países. O sentido do humor também pode ajudar a
enfrentar realidades que nem sempre são as melhores que se pode ter...
Paulo Roberto de Almeida
Paris, 1ro. de maio de 2012
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