domingo, 3 de março de 2013

O fechamento do Brasil (a coisa vem de longe) - Paulo Werneck

Não, não é de hoje que estou falando, embora em nossos tempos também tenha muita gente interessada em decretar o fechamento do país a qualquer comércio estrangeiro, a começar, como sempre acontece nessas coisas, pelas autoridades políticas, nisso pressionadas pelos interesses protecionistas que sempre emergem dentre os seus financiadores naturais, que são os homens de negócio, os capitalistas, os monopolistas e cartelizados habituais.
O fechamento é um pouco mais antigo, como revela aqui esta excelente postagem do meu amigo Paulo Werneck, imbatível nessa penosa tarefa de desenterrar textos antigos de nossa história econômica, especialmente aduaneira, e recolocá-los para nossa leitura e prazer atual.
Muito obrigado.
Paulo Roberto de Almeida

Proibição de Navios Estrangeiros irem ao Brasil
Paulo Werneck
Guardamoria, 02 Mar 2013 05:39 PM PST

Cantamos em verso e prosa as maravilhas da Abertura do Portos, promovida pelo então Príncipe Regente Dom João, que teria acabado com o exclusivo colonial, que impedia o comércio do Brasil com as demais nações do mundo. A questão é saber quando e como houve o fechamento.

Um alvará de 1605, no governo de Felipe II, redigida numa mescla de diploma legal e desabafo, determina o fechamento total do Brasil, assim como das demais possessões portuguesas, ampliando o fechamento anterior, de 1591, promovido por seu pai, Felipe I, que ainda permitia a válvula de escape da concessão de autorizações caso a caso.

Alvará, em que se prohibe irem Náos, ou Navios Estrangeiros á India, Brasil, Guiné e Ilhas, ou outras Provincias de Portugal.

Eu ElRei faço saber aos que esta minha Lei virem, que El-Rei, meu Senhor e Pai, que santa Gloria haja, passou uma Lei feita a 9 de Fevereiro de 1591., pela qual, sob as penas nella declaradas. defendeo, e mandou que nenhuma Náo, nem Navio Estrangeiro, nem pessoa Estrangeira, de qualquer sorte, qualidade e Nação que seja, não pudesse ir, nem fosse dos Portos do Reino de Portugal, nem fóra delle, ás Conquistas do Brasil, Mina, Costa de Malagueta, Reino de Angola, Ilhas de S. Thomé, ou Cabo-Verde, e quaesquer outros Lugares de Guiné e Resgates delles, sem particular licença sua. E depois o dito Senhor, e Eu concedemos algumas licenças a Contratadores, e pessoas particulares, para poderem mandar Urcas, e Navios com Marinheiros, e pessoas Estrangeiras ás ditas partes Ultramarinas, dando fianças a partirem do Reino de Portugal em direitura para as partes declaradas nas ditas licenças, e tornarem em direitura a Portugal; e que os ditos Navios e pessoas Estrangeiras, que nelles fossem, serião de Nações amigas, e não das rebeldes, e outros inimigos. E por que depois fui informado por certas e verdadeiras informações, que das ditas licenças se tem usado mal, mandando com provas falsas alguns Navios de rebeldes; e derrotando-se a torna-viagem para fóra do dito Reino contra o que tinhão promettido, e sem embargo das fianças, que tinhão dado, e que nisto erão culpados alguns dos mesmos Contratadores e outros Vassallos meus, que por seus interesses e respeitos particulares fazião derrotas os ditos Navios, e commettião outros enganos e fraudes contra a dita Lei: do que tudo tem resultado grandes inconvenientes em prejuizo de meu serviço, e perda de minhas rendas, e damno commum de todos meus Reinos e Vassallos, e perder-se o trato e commercio delles, com se levarem a Terras e Reinos estranhos as mercadorias e fazendas, que se trazem de meus Estados Ultramarinos, e faltarem em Portugal, de que procedia não fazerem os Naturaes delles Navios, em que pudessem navegar, e perder-se a criação, que nelles se fazia de Marinheiros, que pudessem servir depois em minhas Armadas, e na Carreira da India. E por todos estes damnos serem tão grandes, houve por necessario e conveniente mandar tratar do remedio delles, e por parte dos Contratadores de minhas Alfandegas, e do páo e dizimos do Estado do Brasil, e do provimento dos Lugares de Africa, me foi pedido, que assi o mandasse, e que elles desistião das licenças, que por seus contratos lhes estavão dadas para poderem mandar ás ditas Conquistas Urcas e Navios Estrangeiros; e sendo tudo bem visto, e tratado pelos do meu Conselho, e sendo-me consultado, mandei passar a presente, pela qual hei por bem, e mando que do dia, em que esta se publicar em diante, não possa Navio algum de quaesquer Nações Estrangeiras ir á India, Brasil, Guiné e Ilhas, nem a quaesquer outras Provincias, ou Ilhas de minhas Conquistas e Senhorios, assim descubertas, como por descubrir; e sómente poderáõ ir ás Ilhas dos Açores e da Madeira, come atégora costumavão, e não a outra parte alguma; e isto sendo de Nações amigas, e não dos ditos rebeldes. E outrosi hei por bem, que nos Navios de meus Naturaes não possa ir pessoa alguma Estrangeira, ainda que moradora seja em meus Reinos; e que todos os Estrangeiros, que viverem, e forem moradores, ou estantes nas partes da India, e no Brasil, Guiné e Ilhas de S. Thomé e Cabo-Verde, e nas ditas Ilhas dos Açores e da Madeira, não possão mais viver nellas; e sejão obrigados a se vir para o Reino de Portugal os que estiverem nas partes da India, nas primeiras Náos, que dellas partirem para o Reino, depois de publicada nellas esta minha Lei; e os que estiverem no Brasil, e mais partes Ultramarinas do Cabo de Boa Esperança para cá, serão obrigados a se sahir dellas, e vir-se para o Reino dentro de um anno, contado do dia da publicação desta minha Lei em Lisboa. E revogo, e hei por revogadas todas, e quaesquer licenças, que estiverem dadas por Provisões e Alvarás meus, e para quaesquer contratos, para os ditos Navios e pessoas Estrangeiras poderem ir ás ditas partes Ultramarinas, e que dellas se não use, nem tenhão força e vigor algum; e qualquer Navio de Estrangeiro, que for ás ditas partes Ultramarinas contra o conteúdo nesta minha Lei, hei por bem que seja perdido com toda a fazenda, que nelle for, assi dos Mestres, e Senhorios dos ditos Navios, como de quaesquer pessoas; e álem disso, os que nos ditos Navios Estrangeiros embarcarem algumas fazendas, ou mercadorias, perderáõ outrosi toda a mais fazenda, que tiverem, e seráõ degradados para sempre para Africa sem remissão; e não se lhes poderá tomar petição de perdão, nem valerá, ainda que se passe: e quaesquer Estrangeiros, que em Navios seus, ou alheios, ou de meus Naturaes, forem ás ditas partes contra esta minha Lei, álem de incorrerem, como dito he, na perda de suas fazendas, incorreráõ em pena de morte, e será nelles executada sem appellação nem aggravo, por mandado de qualquer Governador, ou Capitão, ou Julgador, ante quem forem accusados, ainda que a dita execução não caiba em suas alçadas; e na mesma pena de morte incorreráõ quaesquer de meus Naturaes, que fretarem os ditos Navios, e em qualquer outra maneira os mandarem por si, ou por outrem ás ditas partes Ultramarinas, e será nelles executada pela dita maneira sem appellação, nem aggravo; e todos os que forem contra o conteúdo nesta Lei, poderáõ ser accusados por qualquer pessoa do Povo, e os accusadores haveráõ ametade do valor das fazendas, em que forão condemnados, e a outra ametade pertencerá á minha Fazenda. E outrosi hei por bem, que todos os que desde agora forem contra o conteúdo na dita Lei, feita por ElRei, meu Senhor, que Deos tem, ou se derrotarem, ou fizerem derrotar, possão pela dita maneira ser accusados por qualquer pessoa do Povo, e que hajão ametade das penas, em que forem condemnados; e tudo o conteúdo nesta minha Lei hei por bem, e mando que se cumpra, e guarde inteiramente, sem embargo de quaesquer Leis, Ordenações, Regimentos, Doações, Privilegios, Contratos, Foraes, e quaesquer Provisões, geraes e particulares, que, em contrario haja; por que todas hei aqui por derogadas, posto que de cada uma, dellas fosse necessaria fazer-se expressa menção. E esta Lei valerá Carta, feita em meu nome, por mim assignada, e passada pela Chancellaria, sem embargo da Ordenação do Liv. 2. Tit. 40., que o contrario dispoem: e para que a todos seja notorio o conteúdo nella, mando ao Chanceller mór que a faça publicar na Chancellaria, e passe disso sua certidão nas costas desta dita Lei; e registar-se-ha nos livros de minha Fazenda, Casa da India, Alfandega da Cidade de Lisboa, e nos mais pórtos de Mar do Reino de Portugal; para o qual effeito o Vedor de minha Fazenda lhes enviará o traslado concertado por um dos Escrivães delIa, e outro tal aos Corregedores e Provedores, em cujas Comarcas estiverem pórtos de Mar; e assi enviará outros traslados a todos os Lugares das partes da India, Brasil, Guiné e Ilhas, para lá se publicar, e registar esta minha Lei, e vir á noticia de todos, Gaspar de Abreu de Freitas a fez em Valhadolid a 18 de Março de l605. O Secretario Luiz de Figueiredo a fez escrever. REI.

É interessante a redação contra a lei do alvará: não faz menção às normas revogadas, embora fosse a isso obrigado. Parece desrespeitar o disposto no título 40 do livro 2 das Ordenações Filipinas, que determinava:

Mandamos, que as cousas, que passarem por Nós, cujo effeito haja de durar mais de hum anno naõ passem por Alvarás, mas de todas se façaõ Cartas patentes, que comecem: Dom Joaõ & C. E fazendo-se por Alvarás, sejaõ nenhuns, e naõ se faça por elles obra, nem execuçaõ, e o Escrivaõ, que fizer por Alvará o que havia de fazer por Carta, pagará o interesse á parte. Porêm, se Nós passarmos Alvarás de mercês de quaesquer cousas, ou promessa dellas, que façamos a algumas pessoas, para as haverem de haver dahi a algum tempo, posto que o cumprimento das taes mercês possa ser depois do dito anno, todavia valeráõ os Alvarás, sem ser necessario passarem por Cartas, sendo porém passados pela Chancellaria.

Como o alvará foi mandado passar pela Chancelaria, atendeu à exceção prevista nas Ordenações. O mais incrível é que determina que devam ser ignorados os perdões reais que houver por bem determinar no futuro!

Para a compreensão do texto, é necessário lembrar-se que "derrota" é um termo náutico que pode se referir à viagem de retorno, ou ao trecho navegado.

Contratador pode se referir tanto àquele que obteve um contrato para explorar algo, como pau brasil, devendo pagar por isso, como àquele que venceu uma licitação para administrar a cobrança de tributos, ficando com os tributos arrecadados e pagando uma quantia determinada. Assim essa lei foi feita atendendo às reclamações, entre outros, dos contratadores das alfândegas, prejudicados com a sonegação feita pelos contratadores das autorizações para mandarem naus buscarem mercadorias nas possessões portuguesas.

Curiosa a expressão "ou estantes nas partes da India", onde estantes não significa móveis para guardar livros ou outros objetos, mas as pessoas que estão em algum lugar.

Fontes:
FREITAS, Joaquim Ignacio de. Collecção Chronologica de Leis Extravagantes, Posteriores a Nova Compilação das Ordenações do Reino, Publicadas em 1603. Páginas 36 a 40. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1819. Disponível em http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/185579.
PORTUGAL. Ordenações, e leys do reyno de Portugal, confirmadas, e estabelecidas pelo senhor Rey D. João IV. Lisboa: Mosteiro de S. Vicente de Fóra, Camara Real de Sua Majestade, 1747. Disponível em http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/242778.

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