Carlos Alberto Sardenberg
O Globo, 20/06/2013
A gerente de uma pequena farmácia do bairro de Pinheiros, em São Paulo, me conta, animada, que fechara a loja na última terça, às 21 horas, e fora direto para a manifestação na Avenida Paulista. Protestar contra o quê? — pergunto, sabendo que ela tem carro. E ela: “Bom, contra tudo, né? A gente trabalha tanto e não tem dinheiro para passear, aproveitar a vida”.
Uma reclamação rara, valia a pena especular. A moça elaborou mais um pouco. “A gente paga IPTU, tanto imposto, e o governo fica dando dinheiro para quem não trabalha. Dar emprego, tudo bem, mas dar bolsa não é justo, o senhor não acha?”
Resumindo a bronca: muito trabalho, salário suficiente para viver, mas não para aproveitar a vida; o governo toma muito imposto e não devolve serviços justos para quem trabalha tanto.
Tarifas de ônibus, trens e metrô cabem aí. O passageiro paga caro por um serviço ineficiente e desconfortável.
Generalizando, o governo é caro, mas não presta. Pelo e-mail da CBN, um ouvinte de Petrópolis conta que foi ontem à Secretaria municipal de Saúde tirar a carteira para atendimento no SUS. Não deu, o sistema estava fora do ar. Na fila, comentaram que estava assim havia quatro dias. Cidadão zeloso, nosso ouvinte ligou para o 136, ouvidoria do SUS, onde obteve a informação de que... o sistema estava fora do ar.
Na pesquisa CNI-Ibope divulgada ontem, a área de saúde apareceu, junto com segurança, como a de pior avaliação: 66% dos entrevistados desaprovam os serviços. Esse resultado negativo tem se repetido e vale para os três níveis de governo (municipal, estadual e federal) já que todos têm alguma coisa a fazer nesse setor.
Entende-se por que os protestos parecem, digamos, genéricos. É difícil mesmo para o cidadão saber que o posto é municipal ou estadual, mas o remédio é federal.
Pedro Herz, dono da Livraria Cultura, um intelectual sempre interessado em entender a cena brasileira, costuma perguntar a todo mundo que encontra: “Me diga o que você acha que funciona no Brasil.”
As três respostas mais citadas, amplamente dominantes: o sistema de apuração de eleição, as campanhas de vacinação e a Receita Federal. Elaborando aqui e ali, o pessoal aprecia a rapidez da apuração, mas não os políticos eleitos. Com as vacinações, tudo bem. Já quanto à Receita, seria uma admiração ao revés — como os caras sabem cobrar!
E assim voltamos ao ponto de partida: o governo cobra caro, sabe cobrar, e não entrega. Trata-se de um sentimento, um mal-estar que, entretanto, não resulta em propostas políticas determinadas.
É curioso. Bronca generalizada com o governo e com os impostos — bem, isso parece uma atitude liberal. Lembram-se? Governo não é a solução, é o problema, repetia Ronald Reagan.
Mas, por aqui, muita gente que reclama do governo pede mais governo. Por exemplo: as reivindicações para a estatização completa dos transportes públicos, de modo a eliminar o “lucro predatório” das empresas privadas que operam o setor.
Não faz sentido. Se as prefeituras e os governos estaduais não conseguem gerenciar nem fiscalizar, como conseguiriam fazer isso e ainda operar todo o sistema? Tanto é assim que governadores e prefeitos das maiores cidades têm deixado o tema de lado. Eles sabem que não teriam dinheiro nem capacidade de assumir todo o transporte público.
O governo Dilma, ainda que constrangido, também admite essas dificuldades do setor público. Tanto que está aplicando um programa de privatização de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos.
Mas é uma espécie de privatização envergonhada, com muitas restrições à atuação das empresas privadas. Isso resulta de uma ideologia de esquerda bastante disseminada no país, mas também de uma prática velha, fisiológica, dos políticos que vivem de ocupar espaço nos governos para atender não o povo, mas a seus interesses e aos de seus correligionários.
Caímos, assim, nesse impasse: o pessoal tem bronca do governo e, por falta de outra proposta, acaba achando que a solução está no governo.
Fica difícil. Como pedir menos impostos — e todo mundo pede isso — e mais serviços oferecidos pelo governo?
Já os governantes, pressionados pelas manifestações, dizem que não têm dinheiro para fazer o que pedem. De certo modo, é verdade: as demandas são infinitas. Mas a principal política do governante é exatamente escolher as prioridades, decidir onde e com quem vai gastar o dinheiro público.
É nisso que falha nosso sistema político. Não aparecem as diferenças de orientação programática. Por isso os governos ficam parecidos, e tão parecidos que as pessoas reclamam “contra tudo”.
A questão política nacional é: como sair da bronca para uma doutrina e respectiva ação que consertem as coisas?
Carlos Alberto Sardenberg é jornalista.
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