Um texto antigo, mas sobre o qual "escorreguei", literalmente (revisando antigas listas de trabalhos, para colocar em ordem alguns extraviados), mas que ainda possui seu valor metodológico, uma vez que não mudei, fundamentalmente, de procedimentos, salvo agregar mais leituras online e em aparelhos eletrônicos.
Paulo Roberto de Almeida
Teoria do capital bibliográfico
Teses marxianas sobre relações de leitura e modo de redação
Paulo Roberto de Almeida
Arriscando-me a decepcionar alguns amigos – que por
vezes me advertem que eu acabo escrevendo mais rápido do que eles conseguem ler
minha produção – confesso que não tenho nenhuma receita particular sobre como e
o quê fazer para ler bastante, digerir o máximo de informação possível e depois
destilar esses insumos acumulados no conta-gotas da produção ensaística de
pequeno porte ou no torrencial mais forte da elaboração livresca. Ou talvez eu
tenha, sim, mas não sei se isso conforma um método muito efetivo ou aplicável
em outros casos de atração pelos livros e pela arte da “escrevinhação”. Vejamos
em todo caso o meu “modo peculiar de produção”.
No começo era a acumulação primitiva, como diria
Marx, no meu caso uma carga concentrada de leituras estendendo-se ao longo de
uma vida feita com os livros, pelos livros e para os livros. Depois da acumulação
primitiva de leituras, veio a aplicação consciente de um modo de produção
redacional que já passou por várias etapas históricas de desenvolvimento das
forças produtivas: da redação manual em cadernos escolares até o capital fixo
dos computadores e sistemas digitais de processamento de dados. As relações
sociais de produção de meus artigos e livros foram alterando-se desde o ancien régime da máquina de escrever até
o ultra-capitalismo informático, com o emprego das mais diversas técnicas, mas
inevitavelmente resultando na mais-valia das resenhas críticas, dos ensaios
analíticos e do alto valor agregado dos livros e compilações de trabalhos
diversos. Tudo com um certo sentido de urgência e uma ponta de sentimento de atraso
histórico, já que tenho sempre a impressão que estou atrasado na elaboração de
algum trabalho planejado mentalmente ou iniciado algum tempo atrás.
Um primeiro método, mas talvez isso seja um vício, ou
(numa versão mais amena) um pecado original, se situa na compulsão da leitura,
no meu caso adquirida ainda antes de aprender a ler de verdade. Com efeito,
frequento bibliotecas desde minha fase pré-alfabetizada e continuo a entreter
esta atração fatal – a gentle madness,
já disse um cultor passional de livros – por livrarias e bibliotecas em
quaisquer circunstâncias, mesmo desconhecendo, em alguns casos longínquos, a
língua em que estavam escritos aqueles obscuros objetos de desejo. Difícil
ficar indiferente ao charme discreto dos livros.
A outra técnica consiste em ler sempre,
continuamente, em qualquer tempo e lugar, sob chuva ou sob sol (literalmente),
no inverno e no verão, andando ou dirigindo – o que não recomendo,
sinceramente, pois que já bati, levemente, no parachoque adiante –, comendo ou
bebendo e até, se possível, tomando banho (mas os únicos livros impermeáveis
que conheço são feitos para bebês). Os audio-books poderiam suprir algumas
dessas lacunas de leitura, mas ainda não encontrei Economia e Sociedade de Weber em formato cassette. É uma técnica
provada e eficaz, mas ela pode trazer alguns problemas em contextos intensamente
relacionais – familiares, por exemplo – ou mesmo na intimidade do casal: os
cônjuges geralmente se irritam com o terceiro ou quarto “han-han, hum-hum”
repetido. Para a santa paz do casal, recomendo uma companhia também livresca,
bibliófila e leitora contumaz, mas a conjugação dos horários de dedicação
compulsiva depende da capacidade de resistência do outro leitor voraz mas
sonolento.
Trata-se apenas, como visto até aqui, das condições
primárias e essenciais ao modo escrevinhador de produção, pois em algum momento
se necessita transmutar – aufheben,
diriam os hegelianos – a acumulação primitiva de leitura em mercadorias com
valor de uso e, mais importante, valor de troca. Antes do produto final, vêm os
meios de produção, tão ou mais importantes do que o capital inicial.
Borracha e lápis podem ser a base de tudo, mas ainda
assim é preciso o suporte físico das idéias, a modesta folha de papel. Nos
tempos da brilhantina, quando o computador fazia parte dos livros e filmes de
ficção científica, um simples caderno escolar, desses de espiral, costumava dar
conta do recado, mas eu sempre apreciei aqueles em formato brochura,
suscetíveis de receber uma capa anódina e, providência prática, uma lombada com
o tema indicativo de seu conteúdo (sociologia, história, antropologia, marxismo
etc). Para as situações transitórias e incertas, ou seja deslocamentos e
esperas repentinas, eu recomendo um caderninho de bolso, desses que você saca
da “algibeira” (como diria Machado de Assis) para anotar rapidamente alguma
nova idéia maluca ou o título de um livro encontrado por acaso. Em toda e
qualquer circunstância, porém, eu costumo carregar um desses caderninhos, que
saco do bolso da camisa quando me dedico ao meu esporte regular e preferido, a
leitura em livrarias…
Adquirida a matéria-prima da informação, ainda assim
é preciso dar uma forma precisa ao produto da manufatura, obra do cérebro e da
inspiração mental – e de alguma transpiração física, também –, uma vez que a
mais valia final é sempre o feliz resultado da conjugação de algum tipo de
insumo bruto e da atividade humana criadora. Tenho por hábito isolar um
determinado problema e ficar pensando nele no trajeto para o trabalho ou de
volta para casa, selecionando hipóteses, teses e antíteses, que depois serão
combinadas numa síntese final mais ou menos acabada. Digo “mais ou menos”,
porque mantenho dezenas, se não centenas, de trabalhos inacabados, de artigos
semi-acabados e de projeto de livros, antes em simples notas em folhas de papel
(jogadas em alguma pasta amarelada pelo tempo), hoje em arquivos digitais,
dúzias e dúzias de “working files” que esperam acabamento algum dia. Isso não
tem nenhuma importância, pois o que vale é unir o capital acumulado com a
centelha – iskra, para os
bolcheviques – da interpretação criadora, de molde a extrair a mercadoria
valiosa do trabalho materializado.
O trabalho propriamente ideológico da produção
intelectual é o que mais consome energia, impossível, todavia, de ser mensurada
na escala monetária do capital circulante, pois que pertencente ao reino dos
bens intangíveis e das criações do espírito. Muito fosfato, como diziam
antigamente nossas avós, é consumido nessa atividade muito pouco primitiva de
agregação de valor ao futuro objeto manufaturado (ele sempre o é, mesmo quando
resultando da produção digital). A mais valia intelectual é sempre única e
original e independe do estado de desenvolvimento das forças produtivas ou das
relações sociais de produção; num certo sentido, trata-se de uma atividade
transhistórica ou ahistórica, sem qualquer alusão a começo, meio ou fim (pouco
adaptável a uma teoria materialista da história).
Conjugadas, de um lado, as técnicas e os materiais
de produção (insumos e bens de capital) e, de outro, a mais valia intelectual,
eis que surge como da cabeça de Minerva o produto final desse processo
produtivo, pronto para ser consumido em sua forma inicial ou transformada
(artigo ocasional, livro comercializado por algum capitalista editorial, que
ainda vai auferir a maior parte dos lucros da operação, ficando o verdadeiro
autor apenas com as glórias remuneradoras tão somente do ego e do espírito). Se
o autor, como no meu caso, possui seu próprio canal de distribuição artesanal
(neste caso o meu website
www.pralmeida.org),
ele escapa de transferir renda para o referido capitalista. Se no entanto
pretende alcançar o circuito tradicional das livrarias pequeno-burguesas, tem
de submeter-se a ser expropriado de parte (uma boa parte) de seus rendimentos
pelo editor-capitalista, numa típica situação de “exploração do homem pelo
homem”. Ele também pode participar de alguma cooperativa de produção, caso no
qual terá de submeter-se às regras do coletivo popular, mas pode preferir um
sistema auto-gestionário mais restrito, geralmente explorando a mão-de-obra de
amigos e familiares (trabalho não pago).
No meu próprio caso, a maior parte de minha produção
não é mercantilizada, podendo mesmo ser objeto de apropriações indevidas por
parte de estudantes preguiçosos que se eximem de fazer pesquisa e vêm pilhar
minha mais valia intelectual num processo de incorporação anárquica que parte
do princípio de que “a propriedade é um roubo”. Trata-se de uma “filosofia
miserável”, como poderia afirmar Monsieur Proudhon, ao que os adeptos do marxismo
lassaliano poderiam retrucar: “de cada um segundo sua capacidade, a cada um
segundo sua necessidade”.
Muito bonito na teoria, mas pouco eficiente na
prática, pois a continuidade dessa apropriação de bens de uso (e de troca) sem
a garantia do devido retorno dos direitos de propriedade intelectual pode
resultar no esgotamento do processo produtivo associado a essa organização
social, gerando esclerose e declínio, como ocorreu aliás na trajetória dos
socialismos realmente existentes ao longo do século XX.
Quanto aos autores, como eu mesmo, que poderiam
viver de seu trabalho intelectual mas dele não derivam sustento para si mesmo e
suas famílias, fora de uma relação de assalariamento quase servil, eles só têm
um caminho a adotar: grilhões precisam ser rompidos no esforço contínuo de
liberação do homem e de sua capacidade espiritual. Eles serão rompidos, pois
não há mais nada a perder. Autores de todo o mundo, uní-vos na defesa de vossos
direitos. Viva o pensamento livre e sobretudo sua expressão material.
Paulo Roberto de
Almeida
Washington, 13 de junho
de 2003
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