quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Retorno a uma diplomacia normal? - Paulo Roberto de Almeida (Estadao)

Um artigo meu que saiu hoje nesse venerável órgão reacionário, que os companheiros acreditam integrar um inacreditável Partido da Imprensa Golpista, sobre os novos rumos que caberia imprimir à política externa, caso se faça, obviamente, uma troca de comando nas eleições do próximo dia 26. Se isso não ocorrer, e os companheiros permanecerem no poder, a atual política externa continuará altiva e soberana, embora menos ativa, e o Itamaraty continuará experimentando, ou suportando, as delícias da diplomacia partidária. A ver...
Paulo Roberto de Almeida


Retorno a uma diplomacia normal?

Paulo Roberto de Almeida

Os companheiros no poder praticaram o que eles mesmos designaram como sendo uma “diplomacia ativa, altiva e soberana”. Sua primeira tarefa, em 2003, foi denegrir a anterior, considerada – como, de resto, as demais políticas – como manchada pela submissão ao império, pela adesão voluntária às regras perversas do “Consenso de Washington” e por vários outros pecados, no contexto da “herança maldita” que teriam recebido do governo precedente. Eles passaram a orientar a nova política externa por outros critérios: alianças estratégicas com supostas potências anti-hegemônicas, sonhos de “mudar as relações de força no mundo”, construir uma “nova geografia do comércio internacional” e manter relações preferenciais com os países do Sul, numa pouco disfarçada oposição ideológica ao império e às grandes potências hegemônicas.
Qual foi o resultado dessa agenda ativíssima? Certamente a ampliação da presença brasileira no mundo, nem sempre com os resultados esperados, mas sempre em benefício de alguns parceiros privilegiados pelos companheiros: alguns regimes deploráveis na região, e outros aliados pouco democráticos alhures. Nenhuma das principais prioridades – reforço do Mercosul, obtenção de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança, conclusão exitosa da Rodada Doha – foi alcançada, mas é claro que nem todas dependiam do Brasil. A que dependia, o Mercosul, retrocedeu de bloco comercial a mero agrupamento político em pouco tempo, e sua ampliação se fez às custas de seus fundamentos. Enfim, se poderia continuar por vários outros fracassos companheiros, mas agora a hora é de olhar para a frente e ver o que poderia ser feito para corrigir alguns dos equívocos dos últimos três governos na frente externa.
Em primeiro lugar, caberia restabelecer a dignidade e a credibilidade da política externa e da diplomacia profissional, afetadas por uma formidável confusão com a – na verdade submissão à – diplomacia partidária, um ajuntamento anacrônico de velhos mitos esquerdistas e de ações e iniciativas que se desenvolveram à margem, até contra, antigas (mas válidas) tradições do Itamaraty: não intervenção nos assuntos internos dos outros Estados, observância aos tratados, condução técnica dos temas da agenda e, sobretudo, avaliação isenta dos interesses nacionais em oposição a qualquer tratamento ideológico das relações exteriores. Em segundo lugar, corrigir a miopia sulista, por uma política externa multidirecional e centrada em objetivos concretos, não em ilusões anti-hegemônicas, que aliás não são correspondidas por esses supostos aliados estratégicos. Em terceiro lugar, honrar alguns princípios constitucionais brasileiros, que parece terem sido esquecidos nos últimos tempos, como a adesão integral aos valores da democracia e dos direitos humanos e a rejeição absoluta do terrorismo como arma política (e aqui  estamos falando da própria região, não de fundamentalismos médio-orientais).
Mesmo quando se admite que a diplomacia ativa foi importante para colocar o Brasil no mapa do mundo – e os 27 doutorados honoris causa concedidos ao chefe da pirotecnia diplomática estão aí para provar isso mesmo – deve-se reconhecer que a política econômica externa dos companheiros contribuiu ativamente para retrair o Brasil no índice das liberdades econômicas, fazê-lo retroceder nos rankings de competitividade internacional e aumentar suas fragilidades comerciais, com uma queda na pauta exportadora manufaturada e uma dependência quase colonial do novo primeiro parceiro externo. Uma diplomacia econômica focada em resultados concretos reduziria o absurdo protecionismo comercial, trabalharia para reinserir o Brasil nas grandes redes globais de integração produtiva – abandonando o atual retorno ao stalinismo industrial da era militar – e redefiniria completamente nossa política comercial externa, a começar pelo Mercosul e demais esquemas de integração regional. O tratado do Mercosul, não custa lembrar, começa por proclamar objetivos de liberalização comercial e de abertura econômica, e não foi exatamente concebido para criar novas utopias sociais.
Em relação a certos sonhos de grandeza, é muito provável que a sociedade brasileira não veja na obtenção de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança uma alta prioridade nacional, a despeito de esse tema provocar orgasmos em alguns diplomatas. As grandes “alianças estratégicas” com certos parceiros escolhidos a dedo também precisariam ser revistas, em função estritamente do interesse nacional, não de um desejo pouco secreto de enfrentar a “arrogância imperial”, disfarçada como uma tentativa de “democratizar as relações internacionais”. Algumas iniciativas de escassa racionalidade econômica – o Banco do Sul, cujo parto vem sendo feito a fórceps, e o Banco dos Brics, um grande negócio para os chineses – teriam igualmente de ser medidas sob o diapasão de sua utilidade efetiva.
No plano do relacionamento bilateral, há muito o que mudar, dada a natural propensão dos companheiros por certas preferências políticas que serviam mais às idiossincrasias ideológicas dos que estavam no poder do que a uma agenda equilibrada moldada pelo profissionalismo do Itamaraty. Um exame cuidadoso do perfil geográfico da diplomacia brasileira poderá ajudar nessa tarefa.
Por fim, caberia restabelecer de verdade a soberania nacional, deixando, por exemplo, de servir a governos estrangeiros de duvidosa reputação democrática com empréstimos secretos e outros mimos financeiros retirados do orçamento público. O Senado deve recuperar suas prerrogativas institucionais, voltando a examinar com todo o cuidado operações que envolvam recursos nacionais – como um inacreditável Fundo Soberano que jamais deveria ter existido –, como, aliás, determinado na Constituição.

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor universitário


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.