Carta à presidente de um
adepto convencido: observações de um iconoclasta não convencido
Paulo Roberto de Almeida
Recebi hoje, de um
interlocutor frequente nestes tempos não convencionais de convencimento pela
vitória (aparente, pelo menos) do seu partido nas recentes eleições
presidenciais, o desafio de comentar uma longuíssima carta que ele mandou para
soberana. Ela não vai ler, obviamente, mesmo que tivesse apenas dois
parágrafos: os 225 aspones que a cercam apenas vão arquivar a missiva, se é
verdade que ela seguiu para o endereço correto do palácio de trabalho (assim
parece) da soberana, mas também desconfio que essa não é bem a intenção do
missivista: ele provavelmente quer se destacar dos companheiros mais
companheiros e aparecer, por assim dizer, como um conselheiro do príncipe de
boa vontade, dizendo uma quantas palavras gentis, e depois fazendo críticas e
sugestões para um reino feliz para a sua soberana, que não é minha, mas ocorre
que eu não sou exatamente anarquista, e pretendo atuar seguindo as instituições
(o que nem sempre, ou quase nunca, é o caso dos companheiros, que sabotam as
mesmas instituições incessantemente, e que pretendem substituí-las por correias
de transmissão do partido neobolchevique a que obedecem, na mais pura tradição
leninista e stalinista).
Mas, como eu não sou de
recusar desafios, vou comentar, e provavelmente discordar, quanto à maior parte
dos argumentos do autor da missiva. Não por espírito contrarianista da minha
parte – o que eu tenho, sim, e não tem por que esconder – mas simplesmente por
cortesia com o missivista, aqui vão minhas observações, apenas quanto aos tópicos
relevantes, pois seria muito enfadonho comentar esse verdadeiro tratado de
política partidária.
Transcrevo as palavras do
Adepto Convencido (AC: ), que faço seguir de meus próprios comentários (PRA: )
AC: “Cara presidenta, se eu vivesse
em uma ditadura militar, espero que eu tivesse coragem para pegar em armas,
sequestrar embaixadores e assaltar bancos; mas pelo retorno a uma
democracia-liberal como a que temos hoje, e não para a instauração de uma
ditadura marxista de qualquer tipo. Não obstante não compactuar com vosso
idealismo revolucionário marxista, o respeito.
PRA: Como deve saber o missivista, a sua soberana não parece ter
dado muitos tiros, mas praticou várias ações ditas revolucionárias, não
exatamente para fazer o Brasil retornar a uma democracia burguesa, que todos os
revolucionários, inclusive eu, desprezavam, mas para implantar um regime
socialista de ditadura do proletariado. Se tivessem tido sucesso o Brasil
seria, no limite, uma grande Cuba miserável, ditatorial, obviamente, e numa
hipótese mais amena, uma Venezuela bolivariana sem muito petróleo. Ainda bem
que não deu certo, e fomos derrotados. Alguns partiram para o exílio, como eu,
outros ficaram e amargaram tortura e cadeia, como a soberana. Mas isso não é o
mais importante. O importante é que, salvo um ou dois gatos pingados – e eu
apenas me lembro do Gabeira e do Sirkis – nenhum desses ex-guerrilheiros fez
sua autocrítica, ou melhor, se arrependeu sinceramente pelos “malfeitos”
cometidos. Ao contrário, vários pretendem se vingar dos militares que os
combateram, orientando os trabalhos de uma dita Comissão da Verdade para um
relatório parcial, enviesado, distorcido, que não vê nenhuma responsabilidade
nos ataques guerrilheiros (precoces, num momento em que o Brasil vivia a
chamada ditabranda) no recrudescimento da ditadura militar e na repressão que
se seguiu. Até parece que os militares saíram imediatamente torturando e
matando guerrilheiros, e que eles não fizeram nada. Essa correção, todos os
guerrilheiro reciclados ainda precisam fazer, para sua própria credibilidade e
simples de honestidade intelectual. Eu reconheço que estava errado, e digo
sinceramente: ainda bem que éramos fracos, pois poderíamos ter causado muitas
outras mortes e até precipitado o país numa guerra civil, como em outros casos.
AC: “É fundamental que se aumente a
retribuição por titulação dos professores de ensino fundamental e médio; que os
professores que tenham especialização, mestrado ou doutorado nas áreas em que
lecionam recebam remuneração crescentemente mais alta por isso, e que essa
remuneração seja incorporada em suas aposentadorias.”
PRA: Aqui começam as sugestões e reivindicações do AC, e começam
mal, por algo puramente corporativo. O problema da educação no Brasil não é
exatamente de caráter remuneratório, e sim de deficiências de formação dos
professores, e não é aumentando as dotações, a qualquer título, que se vai
resolver o problema da má qualidade do ensino, em todos os níveis, da
pré-escola ao pós-doc. Eu recomendaria ao AC examinar com mais atenção o
problema educacional, para incidir sobre o que é prioritário, não sobre o que é
secundário.
AC: “É fundamental que na nova
edição do programa Ciência Sem Fronteiras universidades, faculdades e
institutos de países em desenvolvimento com centros de pesquisa e ensino tão
bons quanto a Universidade de Brasília, a Universidade Federal do Rio de
Janeiro e a Universidade de Campinas, como Rússia, África do Sul, Índia,
Israel, Turquia e Irã sejam também contemplados, sem deixar de lado as
parcerias e destinos já existentes.
PRA: Errado, também. Quando alguém quer melhorar, precisa
aprender nos livros ou com gente mais preparada. É evidente que as melhores
condições de estudo e de preparação técnica – e aqui já me posiciono contra a
extensão do CSF ao terreno das humanidades – se encontram nos países
desenvolvidos. Que esses países citados possam exibir centros tão bons quanto
os brasileiros citados chega a ser risível, pois pode-se perguntar quanto
deles, e dos nossos, estão bem situados nos rankings de produção científica.
Tem também as facilidades de acesso a documentação, comunicações, etc. Eu,
aliás, sou contra o CSF, acho que é pura demagogia política e um turismo
acadêmico, que serve para aprender um pouco de inglês (agora, pois antes só se
aprendia lusitano e portunhol). Sou pela formação clássica, e bolsas
distribuídas seletivamente, não por atacado, como se faz com o CSF, visando
mais os números do que a qualidade da formação. Muito dinheiro jogado fora com
esse turismo acadêmico, e que falta para bolsas e projetos científicos de
verdade, no Brasil e no exterior.
AC: “É fundamental que, ao menos em
nossas maiores universidades federais, tenhamos bibliotecas e espaços de estudo
que funcionem vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. É do interesse
destas instituições e de todos aqueles que se interessam pelo desenvolvimento
da educação, da cultura e da inovação no país que esses espaços de estudo
existam, de modo a fomentar ambientes de estudo e pesquisa.
PRA: Nisso concordo a 150%, e acho uma vergonha o funcionamento
das universidades federais, nas quais o sindicalismo mafioso dos funcionários
impede até professores de darem aulas. Acho que estabilidade é uma balela, para
várias categorias, e a chamada “tenure” deveria ser atribuída apenas ao longo
de uma carreira dedicada ao ensino e pesquisa, não de entrada como ocorre hoje.
Existem muitos outros aspectos, mas não cabe abordar aqui.
AC: “É fundamental que
criminalizemos não apenas a homofobia, já citada em vosso discurso, mas também
a transfobia.”
PRA: Pode até ser fundamental, mas o Brasil está sendo
fragmentado em direitos minoritários, que capturam a agenda pública e distorcem
o debate em torno dos verdadeiros problemas da população. As minorias
conseguiram nacos formidáveis dos orçamentos públicos, deixando os
verdadeiramente necessitados sem o atendimento de suas necessidades. Não estou
sendo politicamente correto, e não pretendo ser: para mim antes passam as
necessidades das maiorias; as minorias precisam ser respeitadas, mas precisam
ser contidas, do contrário o país vai virar um arquipélago de ativistas.
AC: “É fundamental a regulamentação
econômica da mídia.
PRA: Mídia é a palavra preferida daqueles que pretendem controlar
a imprensa. O que é fundamental é uma lei que impeça qualquer controle da
mídia. Quanto aos aspectos econômicos, o melhor remédio é competição. Enquanto
o Estado restringir o mercado, cartelizando-o, distribuindo concessões a
conta-gotas, vai continuar essa concentração que se considera danosa. Abram-se
todas as portas, SEM CONCESSÃO de subsídios oficiais, SEM PROPAGANDA
governamental (que deveria ser extinta, simplesmente) e deixemos os agentes
diretos – empresas, cidadãos, associações – resolverem quem oferece o melhor
serviço à população. Concorrência é o melhor desinfetante contra monopólios e
carteis. Eu extinguiria também todos os canais e redes públicas, pois sempre é
fonte de corrupção e de favores indevidos, além de cabide de empregos para o
partido no poder. NENHUM órgão público deve fazer propaganda, a não ser aquela
estritamente vinculada a avisos epidemiológicos e de catástrofes para a
população, o que é aviso, não publicidade.
AC: “É fundamental acelerar os
trâmites para reconhecimento dos territórios quilombolas, inclusive com a
isenção dos impostos territoriais correspondentes.
PRA: Eu diria que esse tipo de incentivo gera uma indústria do
quilombolismo, como já se gerou a indústria do indigenismo falso, e o das
indenizações por suposta resistência contra a ditadura. QUALQUER medida
discriminatória para grupos organizados vai gerar um mercado secundário de
falsificações e embustes, que acabam gerando mais problemas do que os
existentes anteriormente, que podem ser resolvidos topicamente por medidas
específicas, não por políticas gerais, que são um convite à corrupção e ao
desvio de dinheiro. Já vimos esse filme com milhares de sem terras e sem teto
que existem profissionalmente, para certos objetivos ocultos, não para as
necessidades diretas. De todo modo, não cabe ao Estado prover tudo diretamente
aos cidadãos: criando-se um ambiente de mercado competitivo, todas essas
necessidades podem ser atendidas. Como já disse alguém, o melhor programa
social é o emprego. Ponto.
AC: “...o presente manifesto não
demanda diminuição da carga tributária...”
PRA: Pois é uma pena, e está errado. O Brasil, dentro do seu
nível de renda per capita, é um país claramente disfuncional, capturando renda
da sociedade dez pontos de PIB acima de países emergentes equivalentes. Temos
uma carga fiscal de país rico, para uma renda per capita 5 a 6 vezes menor.
Algo está errado e precisa ser corrigido. Sabe-se que há uma relação direta, e
inversa, entre o tamanho da carga fiscal e o nível da taxa de crescimento:
quanto maior uma, menor a outra. O Brasil precisa escolher o que quer: o caminho
atual o condena a um crescimento medíocre, o que significa dobrar a renda
apenas em duas gerações ou mais. É isso o que se pretende?
AC: “Peço-lhe respeitosamente que
mantenha sempre que possível a proximidade e as boas relações com os
parlamentares do PSOL,...
PRA: Bem, deve ser a tal de “utopia concreta”, não é?
Inacreditável, como depois de um século inteiro de experimentos socialistas,
que só redundaram em miséria, opressão, e dezenas de milhões de mortos, alguém
ainda tem coragem de propor esse tipo de programa para o Brasil. Ainda que os
alucinados não venham a perpetrar o seu programa delirante, é evidente que
quanto mais estatismo mais atraso econômico, e mais perpetuação de nossas
distorções. Alucinação mental é um problema grave entre os nossos gramscianos
de botequim. Isso passa com a idade, mas até lá é preciso suportar...
AC: “A grande imprensa foi muito
habilidosa em produzir uma imagem das manifestações como uma crítica a vosso
governo, especialmente entre os eleitores do estado de São Paulo. A senhora
deve investir em comunicação para evitar isso o máximo possível...”
PRA: Mais um que acredita que quem cria matérias de imprensa é a
própria imprensa, não fatos objetivos. Vou repetir: SOU CONTRA qualquer
“comunicação” de governo. Nenhum governo precisa disso. Basta ter um porta voz,
e a imprensa, toda ela, a mídia golpista, a mídia mercenária dos companheiros,
as ONGs com “mídia” vão repercutir o que for importante. Apenas isso e nada
mais do que isso.
O resto da longuíssima
mensagem é uma ajuntamento heteróclito de reivindicações setoriais, locais,
aconselhamento político e “aulas” de história. Alguns dos “argumentos” são
francamente patéticos, mas não vou perder tempo em rebatê-los, pois eu teria de
também dar aulas de história para o jovem conselheiro da soberana. Ele vai
crescer, ler mais um pouco, e viajar pelo mundo, para aprender o que é o mundo
real, muito diferente daquele que aprendeu nas aulas das saúvas freireanas, dos
gramscianos de botequim, e dos companheiros de partido, alguns mercenários
empenhados em fabricar números e argumentos falaciosos com os quais ele
pretende “aconselhar” a soberana. Tudo é uma questão de tempo, de leituras e de
experiência de vida. Mas, claro, precisa ter a mente aberta, e pensar com a sua
própria cabeça, não com a dos velhacos que pretendem induzi-lo a erro.
Fundamentalismo político é igualzinho ao religioso: conduz a criacionistas
incapazes de pensar fora dos quadros mentais nos quais foram treinados. Se
conviverem apenas nesses meios, eles viram perfeitos robôs...
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 3 de novembro de
2014.
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