Como criar uma nação de assistidos
Paulo
Roberto de Almeida
Segundo anúncios feitos por quem de
direito, o Brasil comportava, em 2007, em seu programa oficial de assistência social, mais
de 11,1 milhões de famílias inscritas, ou perto de 46 milhões de pessoas,
formalmente dependentes da ajuda governamental. A primeira formatação do
programa, nos idos de 2003, era de que se tratava de um “fome zero”, ou seja,
existia um número enorme de brasileiros que não dispunham de recursos para se
alimentar decentemente. Ninguém duvida que o Brasil exibisse um volume
anormalmente grande de pobres e miseráveis, mas o que não se sabia, ao certo, era
que esses pobres e miseráveis estavam morrendo de fome.
Dito assim, de chofre, seria difícil que alguém se
opusesse a uma iniciativa que visava, ao que parece, aplacar a fome desse
imenso contingente de miseráveis. Muitos desses eram visíveis, nos semáforos
das grandes cidades, nas favelas das metrópoles, nos arrabaldes das
aglomerações menores e, sobretudo, nas regiões rurais do imenso interior do
país. Mas, salvo engano, não se tinha a impressão, de que estivessem todos
morrendo de fome, inclusive porque o instinto de sobrevivência parece inato no
homem, como entre os animais diga-se de passagem. Esses pobres, andrajosos que
fossem, pareciam aplacar a sua fome mediante estratégias diversas: xepa nas
feiras das cidades, pequena produção de subsistência nas zonas rurais,
trabalhos precários aqui e ali, enfim, não se tinha notícia de que pessoas
estavam morrendo de fome nas cidades e nos campos do Brasil. Claro, sempre
havia o problema da insegurança e da carência alimentar, mas mesmo os mais
pobres deviam ter estratégias de sobrevivência, pois os registros disponíveis
não indicam um morticínio muito grande pela privação alimentar, salvo casos
localizados em fases de desequilíbrio climatológico em certas regiões do país.
Como é que se pôde chegar, então, a esse número preciso
de 11,1 milhões de famílias carentes que necessitavam absolutamente da ajuda
governamental? Suspeito que por cálculos aproximados quanto à renda disponível
dos cidadãos, renda essa que é sempre subestimada para as faixas inferiores de
rendimentos. Seja como for, se montou no Brasil um imenso programa de ajuda
oficial que talvez não encontre paralelo no mundo: trata-se, afinal de contas,
de toda uma “Argentina” vivendo no cartão magnético, segundo um cadastro que é
conduzido pelos prefeitos e pelos órgãos oficiais (federais e locais) de
assistência pública. Acredito, pessoalmente, que a tentação de superestimar o
número de necessitados é enorme, nas diversas pontas do processo: políticos que
queiram constituir uma clientela eleitoral, intermediários que queiram incluir
o maior número de “necessitados” para demonstrar “produtividade” e os próprios
interessados, enfim, pessoas pobres que não teriam nada contra receber
mensalmente 50 ou 80 reais, um maná dos céus em face da sua pobreza real, independentemente
de a quanto se eleve a sua pobreza efetiva (ou falta de renda). Devem existir,
claro, aqueles que não são exatamente “sem renda”, mas aos quais não falta a
cara de pau de se inscrever num programa absolutamente generoso de distribuição
de verbas públicas, aparentemente quase sem contrapartidas: basta ser pobre e,
plim-plim, pinga aquela verbinha no final (ou no começo?) do mês, apta a
comprar o trivial costumeiro no empório da esquina.
Em condições normais, presumo que a massa de novos consumidores
– desobrigados, ao que parece, de lutar pelo seu próprio alimento – poderia
provocar certa inflação sobre os preços dos alimentos, pois o movimento
corresponderia a uma elevação da demanda por esses bens de primeira necessidade
sem que os próprios interessados estivessem participando do processo produtivo
(uma vez que suspeito que, mesmo a agricultura familiar de subsistência,
ficaria “prejudicada”, dispondo-se da alternativa de compra direta dos
alimentos no empório da aldeia). Não parece ter ocorrido essa pressão
inflacionista, uma vez que a oferta alimentar no Brasil permanece abundante,
graças, em grande medida, à pujança da agricultura de mercado.
Mas, entendo, com meus modestos conhecimentos de
economia, que a pressão sobre os mercados de trabalho já estejam se exercendo
com toda uma sinalização negativa para a demanda de trabalho não especializado.
Colhedores de algodão, de cana, de café podem se tornar arredios a um trabalho
vil e mal pago, o que obrigará os produtores – capitalistas gananciosos, por
certo – seja a elevar os salários pagos, seja empreender um movimento que
redundará na mecanização ampliada de suas culturas, elevando, portanto, as
cifras de desemprego (se é verdade que os contemplados do programa de ajuda
freqüentam essas listas, do que duvido). As conseqüências serão, de todo modo,
igualmente nefastas no plano da previdência social, pois um contingente enorme
de trabalhadores que poderia ser formalizado no mercado de trabalho permanecerá
à margem dos registros oficiais, sem deixar, contudo, de se bater às portas da
previdência, quando a ocasião se apresentar. Já nos níveis mais baixos de
salário isso ocorre com grande intensidade: por que contribuir agora sobre um
salário mínimo – diminuindo a renda pessoal em 10%, aproximadamente – se a
aposentadoria virá inevitavelmente, no futuro, exatamente no mesmo valor da
remuneração de base? Os pobres podem não ter educação formal, mas não deixam de
ser espertos...
Em qualquer hipótese, um programa como esse parece fácil
de ser criado, mas deve ser uma das coisas mais difíceis de terminar, ou
diminuir. Ainda que os pobres não tenham acesso aos meios de comunicação e não
costumam vir a Brasília reclamar “direitos”, eles votam, pelo menos a cada dois
anos, e esse fator é um poderoso indutor político para a continuidade, e até a
ampliação, de programas desse tipo. Finalmente, não se pode desprezar um
contingente de algo como 20 milhões de votos, segundo calculo, incluindo ai os
organizadores e os que capitalizam em cima da ajuda que eles não recebem, mas
que ajudam a prestar.
Independentemente da existência de pobres e muito pobres
no Brasil, o que não nego, tenho por mim que estamos criando um exército de
assistidos que se constituirá em fator bastante negativo na conformação futura
das políticas públicas, sobretudo setoriais. A nação está sendo dividida em
“pagadores” e “recebedores” e isso não me parece bom no plano dos “costumes”
sociais. Sempre achei que o trabalho deveria merecer remuneração adequada e que
as pessoas devem encontrar uma forma de sustento pelo seu próprio trabalho, não
pela benemerência pública, à exceção, obviamente, dos incapazes e necessitados
absolutos. O país está assistindo à lenta elaboração de um novo tipo de
apartheid, os do Bolsa-Família – um quarto, ao que parece, da população – e
todos os demais, alguns até pobres, mas que não tiveram a “sorte” de entrar no
programa oficial (mas que fariam algum esforço para entrar, suspeito,
aumentando a pressão para a continuidade e a expansão do programa, a partir de
seus níveis atuais).
Tenho por mim que ainda se aplica aquele antigo versinho
de um nordestino também saído de uma região muito pobre, mas que se fez pelo
seu esforço na grande cidade:
“Meu sinhô, uma esmola, para um pobre que é são,
Ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão...”
Brasília,
25 de agosto de 2007
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