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segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Como criar uma nacao de assistidos - Paulo Roberto de Almeida (2007)


Como criar uma nação de assistidos

Paulo Roberto de Almeida

Segundo anúncios feitos por quem de direito, o Brasil comportava, em 2007, em seu programa oficial de assistência social, mais de 11,1 milhões de famílias inscritas, ou perto de 46 milhões de pessoas, formalmente dependentes da ajuda governamental. A primeira formatação do programa, nos idos de 2003, era de que se tratava de um “fome zero”, ou seja, existia um número enorme de brasileiros que não dispunham de recursos para se alimentar decentemente. Ninguém duvida que o Brasil exibisse um volume anormalmente grande de pobres e miseráveis, mas o que não se sabia, ao certo, era que esses pobres e miseráveis estavam morrendo de fome.
Dito assim, de chofre, seria difícil que alguém se opusesse a uma iniciativa que visava, ao que parece, aplacar a fome desse imenso contingente de miseráveis. Muitos desses eram visíveis, nos semáforos das grandes cidades, nas favelas das metrópoles, nos arrabaldes das aglomerações menores e, sobretudo, nas regiões rurais do imenso interior do país. Mas, salvo engano, não se tinha a impressão, de que estivessem todos morrendo de fome, inclusive porque o instinto de sobrevivência parece inato no homem, como entre os animais diga-se de passagem. Esses pobres, andrajosos que fossem, pareciam aplacar a sua fome mediante estratégias diversas: xepa nas feiras das cidades, pequena produção de subsistência nas zonas rurais, trabalhos precários aqui e ali, enfim, não se tinha notícia de que pessoas estavam morrendo de fome nas cidades e nos campos do Brasil. Claro, sempre havia o problema da insegurança e da carência alimentar, mas mesmo os mais pobres deviam ter estratégias de sobrevivência, pois os registros disponíveis não indicam um morticínio muito grande pela privação alimentar, salvo casos localizados em fases de desequilíbrio climatológico em certas regiões do país.
Como é que se pôde chegar, então, a esse número preciso de 11,1 milhões de famílias carentes que necessitavam absolutamente da ajuda governamental? Suspeito que por cálculos aproximados quanto à renda disponível dos cidadãos, renda essa que é sempre subestimada para as faixas inferiores de rendimentos. Seja como for, se montou no Brasil um imenso programa de ajuda oficial que talvez não encontre paralelo no mundo: trata-se, afinal de contas, de toda uma “Argentina” vivendo no cartão magnético, segundo um cadastro que é conduzido pelos prefeitos e pelos órgãos oficiais (federais e locais) de assistência pública. Acredito, pessoalmente, que a tentação de superestimar o número de necessitados é enorme, nas diversas pontas do processo: políticos que queiram constituir uma clientela eleitoral, intermediários que queiram incluir o maior número de “necessitados” para demonstrar “produtividade” e os próprios interessados, enfim, pessoas pobres que não teriam nada contra receber mensalmente 50 ou 80 reais, um maná dos céus em face da sua pobreza real, independentemente de a quanto se eleve a sua pobreza efetiva (ou falta de renda). Devem existir, claro, aqueles que não são exatamente “sem renda”, mas aos quais não falta a cara de pau de se inscrever num programa absolutamente generoso de distribuição de verbas públicas, aparentemente quase sem contrapartidas: basta ser pobre e, plim-plim, pinga aquela verbinha no final (ou no começo?) do mês, apta a comprar o trivial costumeiro no empório da esquina.
Em condições normais, presumo que a massa de novos consumidores – desobrigados, ao que parece, de lutar pelo seu próprio alimento – poderia provocar certa inflação sobre os preços dos alimentos, pois o movimento corresponderia a uma elevação da demanda por esses bens de primeira necessidade sem que os próprios interessados estivessem participando do processo produtivo (uma vez que suspeito que, mesmo a agricultura familiar de subsistência, ficaria “prejudicada”, dispondo-se da alternativa de compra direta dos alimentos no empório da aldeia). Não parece ter ocorrido essa pressão inflacionista, uma vez que a oferta alimentar no Brasil permanece abundante, graças, em grande medida, à pujança da agricultura de mercado.
Mas, entendo, com meus modestos conhecimentos de economia, que a pressão sobre os mercados de trabalho já estejam se exercendo com toda uma sinalização negativa para a demanda de trabalho não especializado. Colhedores de algodão, de cana, de café podem se tornar arredios a um trabalho vil e mal pago, o que obrigará os produtores – capitalistas gananciosos, por certo – seja a elevar os salários pagos, seja empreender um movimento que redundará na mecanização ampliada de suas culturas, elevando, portanto, as cifras de desemprego (se é verdade que os contemplados do programa de ajuda freqüentam essas listas, do que duvido). As conseqüências serão, de todo modo, igualmente nefastas no plano da previdência social, pois um contingente enorme de trabalhadores que poderia ser formalizado no mercado de trabalho permanecerá à margem dos registros oficiais, sem deixar, contudo, de se bater às portas da previdência, quando a ocasião se apresentar. Já nos níveis mais baixos de salário isso ocorre com grande intensidade: por que contribuir agora sobre um salário mínimo – diminuindo a renda pessoal em 10%, aproximadamente – se a aposentadoria virá inevitavelmente, no futuro, exatamente no mesmo valor da remuneração de base? Os pobres podem não ter educação formal, mas não deixam de ser espertos...
Em qualquer hipótese, um programa como esse parece fácil de ser criado, mas deve ser uma das coisas mais difíceis de terminar, ou diminuir. Ainda que os pobres não tenham acesso aos meios de comunicação e não costumam vir a Brasília reclamar “direitos”, eles votam, pelo menos a cada dois anos, e esse fator é um poderoso indutor político para a continuidade, e até a ampliação, de programas desse tipo. Finalmente, não se pode desprezar um contingente de algo como 20 milhões de votos, segundo calculo, incluindo ai os organizadores e os que capitalizam em cima da ajuda que eles não recebem, mas que ajudam a prestar.
Independentemente da existência de pobres e muito pobres no Brasil, o que não nego, tenho por mim que estamos criando um exército de assistidos que se constituirá em fator bastante negativo na conformação futura das políticas públicas, sobretudo setoriais. A nação está sendo dividida em “pagadores” e “recebedores” e isso não me parece bom no plano dos “costumes” sociais. Sempre achei que o trabalho deveria merecer remuneração adequada e que as pessoas devem encontrar uma forma de sustento pelo seu próprio trabalho, não pela benemerência pública, à exceção, obviamente, dos incapazes e necessitados absolutos. O país está assistindo à lenta elaboração de um novo tipo de apartheid, os do Bolsa-Família – um quarto, ao que parece, da população – e todos os demais, alguns até pobres, mas que não tiveram a “sorte” de entrar no programa oficial (mas que fariam algum esforço para entrar, suspeito, aumentando a pressão para a continuidade e a expansão do programa, a partir de seus níveis atuais).
Tenho por mim que ainda se aplica aquele antigo versinho de um nordestino também saído de uma região muito pobre, mas que se fez pelo seu esforço na grande cidade:
“Meu sinhô, uma esmola, para um pobre que é são,
Ou lhe mata de vergonha, ou vicia o cidadão...”

Brasília, 25 de agosto de 2007

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