uma
reflexão a partir da experiência de George Kennan
Paulo Roberto de Almeida
Lendo a biografia de John
Lewis Gaddis, sobre o grande diplomata e historiador americano, que dominou a
segunda metade do século XX, George F.
Kennan: An American Life (New York: The Penguin Press, 2011), deparo-me com
um trecho, relativo ao ano de 1943, quando Kennan era encarregado de negócios
na legação dos Estados Unidos em Lisboa; negociações eram conduzidas na capital
portuguesa para assegurar o uso, por forças americanas, dos Açores, como plataforma
absolutamente indispensável para conduzir as operações europeias da Segunda
Guerra Mundial em sua vertente norte-atlântica:
“[George
Kennan] began to develop... a new sense of responsibility within the duties
assigned to him: at several points over the next few years Kennan took risks
that jeopardized his own Foreign Service career because he thought that the national interest demanded that he do
so. Obliged to operate for the first time at the level of grand strategy, he
found the rules oh his profession falling short. He chose, successfully but
dangerously, to violate them.” [Loc 3387 of 18204 Kindle edition, Ó Amazon].
Gaddis informa ainda, na
sequência dessa passagem, as circunstâncias em que Kennan decidiu assumir
vários riscos em sua carreira, violando deliberadamente várias regras do jogo,
tal como definidas por instituições excessivamente burocráticas ou muito
conservadoras, quanto o Departamento de Estado ou o comando das Forças Armadas,
como se pode depreender desta transcrição adicional:
“During the
Azores base negotiations [com o próprio Primeiro-Ministro português Antonio de Oliveira
Salazar], Kennan violated at least four rules, any one of
which could have him sacked from the Foreign Service. He exceeded his
instructions in a conversation with a foreign head of government. He refused to
carry out a presidential order. He lied, to another government, about the
position of his own. And he went over the heads of his superiors in the State
Department – as well as the secretary of war and the Joint Chiefs of Staff – to
make direct appeal to the White House.” (Loc 3436 of 18204 Kindle edition, Ó Amazon).
Estas passagens
chamaram-me obviamente a atenção, ou “struck a cord on me”, como diria o
próprio Gaddis, provavelmente o maior historiador vivo da Guerra Fria e o único
biógrafo autorizado de George Kennan. Explico por que, já que isso tem a ver
com a mesma sensação de barreiras burocráticas e conservadoras, em assuntos que
demandariam uma visão mais larga dos processos diplomáticos, que eu já enfrentei
na carreira. Não querendo me comparar a George Kennan, possivelmente o maior
especialista diplomático americano em assuntos russos que jamais existiu nos
anais daquele serviço diplomático, mas eu também adquiri, ainda antes de
ingressar no serviço diplomático, uma percepção histórica e estrutural de
muitos dos temas que compõem, burocraticamente, a agenda diplomática corrente.
Tendo começado a estudar
os assuntos brasileiros desde muito cedo – compulsando uma bibliografia de
nível universitário, ou de pesquisa especializada, ainda quando estava em meio
aos estudos do ciclo médio – desenvolvi provavelmente de maneira muito precoce
um cuidado com a análise do contexto, dos precedentes históricos, e dos
impactos estruturais ou implicações políticas de cada um dos problemas com que
me deparava em minhas leituras ou pela leitura dos jornais de maior qualidade
em suas edições dominicais (invariavelmente o velho jornal conservador O Estado de São Paulo, ainda quando
discordasse profundamente de seus editoriais, que julgava representativos das
opiniões da “classe dominante”). Foram anos, em meados da década de 1960, em
que eu lia os grandes mestres da teoria social brasileira, entre eles os representantes
da “escola paulista de Sociologia” – que pouco depois se tornaria minha alma mater, ao ter ingressado no curso
de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
– e através dos quais eu filtrava minhas reações aos editoriais “reacionários”
do Estadão, combinando todas essas leituras para refletir sobre os caminhos do
desenvolvimento econômico e político brasileiro, no quadro das crises contínuas
que agitavam o período que se tinha iniciado com o golpe de 1964, e que eu
imaginava combater pela via do socialismo e de um governo comprometido com a
“ditadura do proletariado”.
Independentemente dessas
ilusões e descaminhos ideológicos – que foram sendo corrigidos tão pronto eu
deixei o país, no final de 1970, para conhecer o triste cenário do socialismo
real do leste europeu e as nuances dos capitalismos realmente existentes na
Europa, durante quase sete anos – eu adquiri, a partir desses hábitos juvenis
de leitura, um sentido de abrangência analítica e de inserção contextual que me
acompanharia pelo resto da vida, sobretudo no domínio profissional, quando
ingressei na carreira diplomática, poucos meses depois de voltar da Europa em
1977. Mas o que isso quer dizer, no quadro desta seleção de trechos da
biografia de Kennan por Lewis Gaddis? Explico-me agora mais detalhadamente.
Ingressei no Itamaraty
ainda na era militar, quando ainda pensava em derrubar o regime, embora não
mais pela via das armas e sim pela via da pressão democrática. Tampouco
pretendia converter o Brasil em uma nova Cuba ou uma nova China, como talvez
fosse a intenção em meados dos anos 1960; mas o modelo ainda seria algo bem próximo
do socialismo democrático europeu, que eu julgava bem mais propenso a
empreender a correção das tremendas injustiças sociais em vigor no Brasil,
desde sempre, do que, alternativamente, a visão mais pró-mercado que não tenho
hesitação em defender atualmente. Nessa época, eu ainda era obrigado a escrever
artigos com algum nom de plume, já que minhas “convicções radicais”
provavelmente chocariam meus colegas e superiores diplomáticos – que eu considerava
todos alinhados ao regime – e chamariam a atenção dos órgãos de segurança,
especialmente ativos naquela conjuntura, quando a repressão física tinha
amainado, mas o controle de inteligência continuava atento a todas as manobras
da oposição ao governo militar.
Tendo iniciado minha
carreira no Itamaraty por uma divisão secundária, a do Leste Europeu (então
todo ele dominado pela União Soviética), pude distinguir-me rapidamente em
alguns trabalhos analíticos, inclusive porque, ademais dos boletins da Radio
Free Europe e da Radio Liberty – ambas financiadas pela CIA, obviamente – que líamos
na DE-II, eu possuía um conhecimento interno, se ouso dizer, sobre o
funcionamento desses regimes autoritários, já que tinha militado na esquerda
marxista durante tempo suficiente para aprender – e apreender – todos os
trejeitos vocabulares e as muitas peculiaridades políticas do mundo comunista. Recordo-me,
em todo caso, de uma informação que preparei sobre o quadro político no leste
europeu, em especial sobre a situação da Polônia, no imediato seguimento, em
1978, da surpreendente eleição do cardeal Karol Wojtila como o novo papa, de
nome João Paulo II. Ao que parece, minha análise abrangente das implicações
dessa escolha para todo o leste europeu e para o poder comunista foi
devidamente apreciada pelos meus superiores, para ascender ao conhecimento do
Gabinete do ministro, o que constitui, no Itamaraty, uma marca de distinção a dividir
os assuntos que permanecem na “senzala”—como sempre foram depreciativamente
chamados os serviços setoriais das divisões, no Anexo – e os que ascendem ao
conhecimento da Casa Grande, como se designavam, respeitosamente, os dois
gabinetes do Palácio.
Não exatamente por esse
episódio específico, mas talvez mais pelo meu jeito histórico-intelectual de
interpretar cada iniciativa ou resposta do serviço diplomático brasileiro, em
função de um contexto mais vasto, no tratamento dos assuntos da agenda corrente,
fui sendo considerado um diplomata especial, ou diferente, talvez bizarro, em
todo caso colocado num clube à parte, não necessariamente melhor, dessa tribo
de elite dos servidores do Estado. De um lado, nunca tive que mendigar postos
ou posições no curso da carreira, já que em geral recebia convites para servir
em tal posto ou tal unidade da Secretaria de Estado; de outro lado, jamais me
dediquei a “pescar” votos de colegas ou implorar apoio de chefes para ser
promovido na escala funcional, o que ofenderia meus princípios pessoais, ou
minha maneira de ser, mas que pode ter irritado muita gente da corporação.
Tampouco pedia permissão
para escrever à minha maneira – e não naquele burocratês diplomático que tanto
desprezo – ou sequer me desculpava por pensar de forma muito diferente da maior
parte dos colegas ou mesmo dos superiores, e mais de uma vez ousei contestar
opiniões de chefes em reuniões de coordenação, quando os fundamentos de minha
posição me pareciam suficientemente sólidos para levantar o dedo e exclamar –
algumas vezes na estupefação dos colegas e alguns superiores – uma frase do
tipo: “Não é bem assim [Fulano]!” Acho que isso talvez não tenha ajudado no
curso ulterior, ou superior, da carreira. Já ao ingressar na carreira,
revoltei-me contra a exigência, que sempre julguei absurda – e
anticonstitucional, em todo caso violadora dos direitos individuais, que
invariavelmente coloco acima dos interesses do Estado –, de ter de pedir
permissão às autoridades pertinentes para contrair matrimônio com minha esposa:
um abuso e uma indignidade, a que meu espírito anarquista jamais consentiu por
princípio. Numa etapa intermediária, cansado do ritual de ter de pedir
permissão para publicar que fosse uma simples resenha de livro sobre temas da
diplomacia, deixei de submeter textos à apreciação superior, e passei a
publicar o que julgava apropriado e conveniente (ainda que exercendo algum grau
de autocensura no que era cabível dizer de público sobre tão augusta Casa e tão
distinguido Serviço Exterior).
De fato, se ouso julgar,
agora, as características do serviço em prol do qual exerci meus talentos nas
últimas três décadas e meia, eu diria que o Itamaraty tem uma cultura muito especial, em todo caso
diferente das demais corporações a serviço do Estado. Confessadamente, eu nunca
fui muito adepto das manias e trejeitos dos meus colegas diplomatas: trata-se
de uma carreira ultra competitiva, com altas doses de autocontenção, marcada
por dogmas de disciplina e hierarquia que nunca se encaixaram bem ao meu
natural libertário, exigindo ainda certo enquadramento nos rituais internos
para que essa competição seja bem sucedida no plano individual, ou seja, para
que ela se reflita na progressão funcional, na atribuição de postos e outras
distinções. Visivelmente, eu nunca pretendi me enquadrar no estilo de rigor.
Sempre mantive meus hábitos de trabalho, em parte isolado, estudando e
escrevendo, de outra parte falando com sinceridade aquilo que me parecia
negativo do ponto de vista da pura racionalidade instrumental dos objetivos
diplomáticos. Ainda que tal tipo de atitude possa suscitar admiração em certas
áreas, acredito que essas não são as qualidades requeridas para se triunfar numa
Casa que faz da obediência estrita aos superiores a pedra de toque para a
inserção no inner circle dos
premiados oficiais.
Tomando como base o que
acima vai descrito, não tenho qualquer restrição mental em confessar que, em
diversas ocasiões, dissenti das opiniões oficiais da Casa – ou seja, aprovadas
em alguma instância superior – no tratamento de temas específicos ou na
condução de algumas negociações para as quais eu me julgava especialmente
preparado, em função, justamente, dos estudos que eu conduzia paralelamente à
carreira, para aprofundar-me nos assuntos que me eram atribuídos. Uma atitude
desse tipo não é fácil de ser assumida, quando se trata, não das preliminares
para a formulação de uma posição negociadora, mas de instruções formais,
consubstanciadas em telegrama da série, com base na qual a resposta invariável
do diplomata obediente deve ser: “Cumpri instruções”, e o chefe do posto passa
a relatar como ele se ateve fielmente às ordens emanadas da Santa Casa.
Pessoalmente, já passei por esse tipo
de situação, envolvendo uma negociação internacional de um tratado multilateral.
Tendo me ocupado do tema durante meses e meses, eu literalmente dominava o
assunto, técnica e diplomaticamente, e as instruções formuladas em Brasília, de
nítido corte tradicional, eram claramente inadequadas. Os argumentos que poderiam
ser mobilizados em favor de teses diferentes ou alternativas, por mais
racionais ou “probatórios” que sejam (com base numa análise histórica, nos
dados da economia, numa visão de longo prazo), nem sempre são convincentes ou
suficientes para “dobrar” o burocrata na outra ponta do processo ou até fazer
com que a instituição como um todo se mova em outra direção. Esse tipo de
situação pode ser terrível, pois aparentemente (ou concretamente) o diplomata
em causa pode estar se colocando contra as instruções da sua instituição.
Não tive medo de fazê-lo, naquele
momento preciso, assim como em outras circunstâncias posteriores. De certa
forma, esse tipo de atitude me prejudicou, pois fiquei com fama de rebelde, de
dissidente, de arrogante, de pretencioso “sabe-tudo” e outros qualificativos
mais, que nem são do meu conhecimento. Se insisto em certas teses é, contudo,
com base num estudo profundo das problemáticas das quais me é dado ocupar. Sou
por excelência um estudioso compulsivo, e não costumo me dobrar a nenhum
argumento de autoridade, e sim à autoridade do argumento. Numa casa “feudal”,
como é o Itamaraty, isso é quase um crime de lesa-majestade.
Mas o assunto supera as
atitudes individuais de um diplomata, para adentrar no terreno mais complicado
das questões macro-políticas, ou se quisermos, no eterno debate sobre como
interpretar o chamado “interesse nacional”, um conceito altamente difuso para
permitir qualquer tipo de argumento não fundamentado ou especioso. Não vou
tratar das bases epistemológicas do que, exatamente, constituiria o interesse
nacional nos limites desta reflexão, mas vou tratar da questão no contexto da
própria formação e educação dos diplomatas. Acredito, com base numa avaliação puramente subjetiva,
que poucos diplomatas têm uma cultura econômica verdadeira, ou seja, o
instrumental analítico de cunho histórico e econômico que poderia levá-los a
analisar uma questão qualquer de política externa do ponto de vista daquilo que
os economistas chamam de custo-oportunidade do capital, ou seja, a eficiência
paretiana dos meios e fins, que não se restringe ao melhor emprego dos
recursos, ou a um cálculo sobre o retorno dos investimentos, mas envolve todos
os “fatores de produção” de um determinado assunto diplomático. Tudo, ou quase
tudo, na diplomacia, é feito de forma muito politizada e, por vezes, de forma
irracional, já que levando em conta circunstâncias imediatas e as preferências
políticas de quem manda, não necessariamente os interesses de mais longo prazo
da nação.
Teríamos inúmeros exemplos de decisões claramente absurdas, no contexto
mais vasto das tradições diplomáticas brasileiras, tomadas em certo período, e que
no entanto foram tomadas, ao arrepio de qualquer racionalidade administrativa
ou mesmo política; eximo-me, por razões diversas, mas claramente compreensivas,
de discorrer sobre elas neste momento. O fato é que, em momentos como esses, o
ator em questão tem várias escolhas, todas elas difíceis: submeter-se
passivamente a instruções que ele pode julgar prejudiciais ao país ou ao
serviço, no contexto dos interesses de mais longo prazo; negar cumprimento e
argumentar alternativamente ao que julga contrário a suas convicções ou
avaliação do tema em apreço; afastar-se do processo, com prejuízo pessoal ou
fricção funcional.
Minhas próprias atitudes
sempre foram pautadas em função de minha trajetória habitual de estudos e de busca de coerência lógica no
processo decisório, esforçando-me por manter minha indispensável integridade
intelectual, em face de eventuais adversidades momentâneas, que sempre julgo
devam ser afrontadas com serenidade e com a dignidade funcional que devem guiar
o comportamento de membros de uma corporação como esta à qual pertenço. Em
tempos difíceis de submissão a vocações autoritárias essas atitudes cobram um
preço por vezes difícil em termos pessoais, mas a coerência e a honestidade na
defesa de certos princípios, que reputamos mais elevados do que a acomodação
servil, e a consciência de se estar defendendo causas mais altas do que as
escolhas sectárias do momento constituem os prêmios mais gratificantes que se
possa ter num itinerário de vida.
Vale persistir, como aliás demonstrou o próprio George Kennan, ao
abandonar a carreira diplomática, para ingressar numa categoria à parte da
história intelectual de seu país, como um grande pensador das relações
internacionais dos Estados Unidos. Sem aspirar a tanto, e sem renunciar a uma
carreira que me trouxe tantos benefícios intelectuais e pessoais, vou persistir
na defesa da coerência com o livre pensamento mesmo nos tempos sombrios e
tristes de um outro regime autoritário.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2409: 14 de julho de 2012.
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