Um texto de 2008, mas que preserva inteiramente sua validade...
Paulo Roberto de Almeida
Sobre mudar de idéias
Paulo Roberto de Almeida
É conhecida a resposta de John Maynard Keynes dirigida a alguém
que lhe questionava a postura de mudar de opinião quando suas antigas idéias já
não mais se encaixavam em novas circunstâncias; a crítica se referia
especificamente ao fato de ele ter mudado sua orientação em política monetária
logo após a depressão instalada na seqüência da crise de 1929. O economista
britânico respondeu calmamente a seu interlocutor: “When the facts change, I change my mind. What do you do,
sir?”
Essa frase me veio à lembrança a propósito da questão que, no
início de 2008, o site The Edge (http://www.edge.org/),
especializado em ciência e pesquisa, apresentou à comunidade de cientistas. A
cada início de ano, desde 1998, uma questão provocadora é colocada para
reflexão de grande número de pesquisadores; esta foi a deste ano: “em que você
mudou de opinião e por quê?” (As contribuições recebidas pelo The Edge em
reação à questão do presente ano podem ser lidas aqui: http://www.edge.org/q2008/q08_index.html;
para conhecer todas as questões feitas a cada ano, a partir de 1998, ver este
link: http://www.edge.org/questioncenter.html).
O site defende a ciência, mas não
apresenta posições dogmáticas ou sectárias. Seus argumentos podem ser resumidos
nestas três afirmações: “quando o pensamento muda as suas idéias, isto é
filosofia; quando Deus muda a sua opinião, isto é fé; quando os fatos mudam as
suas idéias, isto é ciência”. Para orientar as respostas da questão anual de
2008, o site renovou os seus argumentos. “A ciência é baseada em evidências. O
que acontece quando os dados mudam? Em que as descobertas ou argumentos
científicos mudaram a sua opinião?”
Pois bem, sem pretender me colocar entre a comunidade de
cientistas contatados pelo The Edge, ofereço, a seguir, um texto que pretende
contribuir com esse tipo de reflexão.
Mudei quanto aos meios de tornar a sociedade mais inclusiva e como
melhor “produzir” desenvolvimento econômico e maior justiça social. Quanto aos
objetivos, continuo comprometido com a idéia de fazer do Brasil um país melhor
para os seus cidadãos e, sobretudo, uma sociedade mais justa para os mais
humildes. Ou seja, a minha idéia básica permanece a mesma, desde que me
considero um cidadão ativo e comprometido com uma determinada “causa”, em torno
dos 14 ou 15 anos de idade. Apenas os meios ou instrumentos para alcançar esse
objetivo central é que mudaram significativamente desde algum tempo,
aproximadamente dez anos depois de tomada aquela decisão básica.
Durante minha formação intelectual, na adolescência, aderi
precocemente ao socialismo e às soluções estatais no que concerne a organização
econômica da sociedade. Não se tratou apenas de uma adesão intelectual, isto é,
derivada de leituras e influências intelectuais típicas da época – ou seja,o
grande debate comunismo versus capitalismo do final dos anos 1950 e início dos
60, com a forte predominância do marxismo entre os intelectuais e
universitários em geral –, mas também de uma escolha “prática”, derivada de
minha condição social e situação econômica à época: vindo de uma família pobre,
tive de trabalhar desde cedo e não podia, obviamente, dispor de muitos bens –
brinquedos, bicicleta, roupas caras, clubes ou restaurantes – ou de facilidades
que eram oferecidas a muitos dos meus colegas de estudo: férias com viagens,
cursos de língua, ou, simplesmente, TV e telefone em casa. Nada disso estava ao
meu alcance, senão pelo trabalho duro e contínuo.
Lancei-me, portanto, na militância socialista desde muito cedo,
com o objetivo de mudar o Brasil para o que me parecia ser a “redenção dos mais
pobres”, armado de todo o arsenal de idéias que eram as daquela época:
confrontação de modelos de desenvolvimento (o socialismo aparentemente crescia
mais rápido do que os regimes capitalistas, e deveria, segundo Kruschev,
superá-los em mais alguns anos); reforma agrária radical em benefício dos
camponeses pobres (como prometiam os modelos chinês e cubano); promoção da
educação das massas (e esta parecia ser a grande atração do socialismo para
países como os latino-americanos); industrialização rápida (essa parecia ser a
única justificativa do stalinismo); avanços científicos (o Sputnik era a prova
disso); tudo isso, de acordo com o historicismo marxista, no exato sentido da
história, do progresso, do avanço inelutável dos modos de produção, que
prediziam que o socialismo iria fatalmente superar o capitalismo, de acordo com
as análises aparentemente inatacáveis de Marx e Engels.
A opção era tanto mais aceitável em países como os
latino-americanos quanto as oligarquias locais eram de fato reacionárias,
opostas aos direitos trabalhistas dos “servos dos latifúndios”, ao passo que as
burguesias já tinha renunciado a qualquer “projeto nacional”, preferindo
aliar-se ao imperialismo na exploração das massas trabalhadoras. No plano
intelectual, as ciências sociais no âmbito universitário eram inegavelmente
influenciadas pelo marxismo ou por diferentes vertentes do socialismo, o que
nos conduzia naturalmente a preconizar a “revolução socialista”, a tomada do
poder pelo partido da vanguarda – não havia clareza quanto à identidade do
partido, pois o Partidão, o PCB, já era considerado reformista, conciliador,
aliado da burguesia nacional, e portanto, incapaz de conduzir a revolução à sua
versão mais radical – e a construção do socialismo, após uma “breve fase” de
ditadura do proletariado. O que mais nos seduzia era o modelo cubano, não
aqueles soviéticos sem graça, burocratas sem alma, e tampouco os chineses, que
até o momento da gloriosa Revolução Cultural permaneciam misteriosos para a
maior parte dos militantes da causa.
Não preciso retomar aqui o itinerário de ascensão de “lutas
populares” contra a ditadura militar no Brasil, a passagem (equivocada) à luta
armada e todo o cortejo de tragédias individuais e coletivas que se abateu
sobre os militantes a partir do endurecimento do regime, em 1968-69, e do
recrudescimento da repressão sobre os movimentos de esquerda, não só os
armados. Mesmo o Partidão, que não passou à luta armada, sofreu duramente
durante os chamados “anos de chumbo”, quando os limites da legalidade – ou do
simples respeito aos direitos humanos – foram rompidos pelas chamadas “forças
da repressão”. Para resumir: saí do Brasil, como vários outros de minha geração
(colegas de luta, inclusive), embora, no meu caso, o tenha feito em relativa
legalidade, sem fuga e dotado de passaporte próprio.
Creio que comecei a mudar de opinião desde minha chegada ao meu
primeiro local de “exílio voluntário”, a então República Socialista da
Tchecoslováquia, recém entrada na repressão que seguiu à invasão militar
soviética para liquidar a chamada “primavera de Praga”. Cheguei sem bolsa e sem
visto de permanência, à diferença de alguns colegas que tinham conseguido
admissão na Universidade 17 de Novembro, dedicada à “solidariedade socialista”
com estudantes do Terceiro Mundo. Abrigado provisoriamente na residência
universitária de Praga, chegado em pleno inverno de 1970-71, comecei a tomar
contato com a burocracia socialista ao mesmo tempo em que lia o grande livro,
“O Processo”, do escritor tcheco por excelência, Franz Kafka, numa tradução
para o espanhol editado pela Casa de las Américas, de Cuba. O clima kafkiano
era exatamente aquilo que eu via, no contato com as autoridades e na vida
diária. O ambiente de penúria diária, a falta de produtos básicos, a
rusticidade da vida “normal” logo me apareceram como características básicas do
socialismo.
A atenta observação da realidades nesses países – eu viajei para
alguns dessa área –, a constatação clara de que a mentira era uma forma de
vida, a repressão burra, estúpida, contra as idéias e materiais do Ocidente me
fizeram refletir sobre a natureza do socialismo. Para me informar sobre o que
estava se passando no mundo, e até no próprio socialismo, eu tinha de ir ler o Le Monde na Alliance Française de Praga,
um dos poucos lugares onde se podia ler revistas e jornais ocidentais. Eu
ficava também observando as velhas senhoras freqüentadoras do local, damas
vistosas, a despeito de suas roupas fora de moda e seu ar melancólico. Minha
conclusão foi inevitável: além de todas as misérias materiais, evidentes na vida
diária, o que o socialismo mais produzia eram mesquinharias morais, uma pobreza
ética, um reino da mentira.
Depois de alguns meses abandonei o socialismo e viajei para o
capitalismo, vindo a instalar-me em Bruxelas, na Bélgica, onde retomei os
estudos de ciências sociais, começados e abandonados na USP. Continuei
viajando, sempre que possível, tanto para o socialismo quanto para os países
capitalistas, assim como estabeleci, para mim mesmo, um imenso programa de
leituras, obviamente centradas (ainda) no marxismo, o que me converteu em um
“rato de biblioteca”, voltado para um intenso estudo dos clássicos do
pensamento socialista e em várias outras áreas de ciências sociais na
biblioteca do Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas.
Minha “mudança de idéias” derivou, portanto, não apenas de um
atento estudo dos processos sociais, em perspectiva histórica, mas igualmente
de uma observação atenta da realidade, com destaque para os “socialismos
realmente existentes”. Não era possível lutar por um regime como aqueles, no
Brasil, e o novo ideal seria buscado na direção das social-democracias
européias, ou seja, do socialismo reformista. Eu ainda mudaria substantivamente
de idéias nesse mesmo terreno, sobretudo no que se refere às formas de organização
econômica da sociedade, afastando-me gradualmente do estatismo ainda exacerbado
no socialismo reformista (com a melhor das intenções, cabe sublinhar).
Quanto às razões dessa mudança, elas estão inteiramente na linha
aquilo que o The Edge apresenta como argumento para o pensamento científico: “quando os fatos mudam as suas idéias, isto é
ciência”. Os fatos são as observações diretas, tiradas de minha
experiência nos diversos socialismos que pude conhecer, assim como o mesmo
exercício conduzido nos vários capitalismos realmente existentes que fui
conhecendo em minhas viagens, para países desenvolvidos e “subdesenvolvidos”,
sem qualquer tipo de preconceito contra os fatos coletados. Tudo isso foi
colocado na perspectiva da história, uma convivência constante, fiel e
extremamente benéfica para a correta avaliação das realidades contemporâneas,
retirada de um imenso cabedal de leituras, de todos os tipos. Acredito ter lido
a quase totalidade da literatura marxista conhecida, assim como busquei todas
as outras opiniões e argumentos em estudos especializados de todas as linhas
filosóficas e políticas.
Atualmente não me considero nem socialista, nem liberal (no
sentido inglês da expressão), tão simplesmente um cidadão bem informado, um
estudioso que se pauta por um extremo rigor na avaliação das fontes e que
prima, antes de mais nada, pela honestidade intelectual e pela racionalidade
plena, em todos os seus sentidos. Minhas opiniões podem ser encontradas nos
muitos livros e artigos que publiquei, assim como nos textos que divulgo no meu
site ou nos meus blogs. Elas poderiam ser resumidas, como segue, retomando aqui
uma inserção informativa nos meus blogs: “Minhas preocupações cidadãs voltam-se para os objetivos do
desenvolvimento nacional, do progresso social e da inserção internacional do
Brasil. Entendo que quatro das condições básicas para que tais objetivos sejam
atingidos podem ser resumidas como segue: uma macroeconomia estável, uma
microeconomia competitiva, uma alta qualidade dos recursos humanos e a abertura
ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros.”
Acredito que pautei minha carreira acadêmica e profissional pelos
princípios da honestidade intelectual e pela busca do bem comum. Por isso,
mudei de idéias. Acho que vou continuar mudando, sempre quando isso for o
resultado de dados objetivos e de argumentos racionais. Isto é ciência.
Basta-me isso...
[Brasília,
14.02.2008; revisão: 25.06.2008]
Nenhum comentário:
Postar um comentário