Críticas do alto da torre de marfim
Paulo Roberto de Almeida
Filadélfia, 30 de junho de 2003
Comentários a entrevista transcrita no Jornal da Ciência (JC E-Mail), Edição 2309, de 30 de junho de 2003, publicada, sob o título “Sociólogo comenta entrevista de José Murilo de Carvalho”, na edição nº 2311, de 2 de julho de 2003 (matéria 25)
Mensagem do sociólogo e diplomata Paulo Roberto de Almeida:
Apenas um comentario de ordem geral a respeito da entrevista de Jose Murilo de Carvalho ao Globo(29.06), transcrito no JC de 30.06.
Sua entrevista é bastante equilibrada e denota alto senso de realismo em relação aos problemas da governança, sempre difíceis em países vulneráveis à ação de forcas externas, sobre as quais não se tem controle, como o Brasil.
Mas, como muitos de seus colegas de academia (vide o manifesto dos economistas, por exemplo), ele se permite formular julgamentos a partir de uma posição relativamente confortável, pois que não assumindo funções executivas no governo.
Ele diz, por exemplo: 'Estabilizado o sistema, como já está, não há mais desculpas para a falta de resultados na área social.'
Permito-me apenas chamar a atenção para o fato de que muitos acadêmicos, num total isolamento dos problemas reais de governabilidade, estipulam metas, fixam prazos, cobram resultados, em total abstração dos problemas reais de administração da economia, como se orçamentos fossem elásticos, como se a vontade política bastasse para produzir resultados, e como se a indignação moral fosse um bom substituto da racionalidade econômica.
Ajudar o governo a cumprir as metas anunciadas durante a campanha eleitoral, quando todas as liberdades com a realidade são permitidas, implica igualmente fazer uma avaliação realista das possibilidades e limites da gestão econômica e procurar colaborar no que for possível.
Cobranças do alto da torre de marfim conseguem tão somente aumentar o grau de frustração social.
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From: Jornal da Ciência <jcemail@jornaldaciencia.org.br
Date: Mon, 30 Jun 2003 15:33:28 -0300
Subject: JC e-mail 2309, de 30 de junho de 2003.
José Murilo de Carvalho sobre o Governo Lula: 'Não há mais desculpas para a
falta de resultados'
O historiador diz que o governo Lula está diante do mesmo desafio que enfrentava ao assumir: conciliar a ortodoxia econômica com avanços sociais. Embora diga que era preciso acalmar a "banca internacional", ele cobra atitudes concretas, pois o desempenho no social tem sido pífio.
Eis a entrevista com José Murilo de Carvalho, membro da Academia Brasileira de
Ciências, feita por Carter Anderson para 'O Globo':
- O governo Lula sofre pressões cada vez maiores para mudar a política econômica. Acabou a lua-de-mel e começou o inferno astral?
José Murilo de Carlaho - A lua-de-mel está acabando, o inferno astral não começou. O presidente ainda é popular entre o povão e ainda tem cacife no mundo político. O que está havendo é o que observadores menos parciais, ou menos românticos, previram: a eleição de Lula não levaria à refundação do Brasil. A forte proposta de renovação, ancorada sobretudo no carisma do presidente, teria que enfrentar sérios obstáculos, como a resistência do privilégio, a impaciência dos radicais e os constrangimentos dos mecanismos democráticos de decisão. É o que está havendo.
- Ao avaliar o primeiro mês, o senhor disse que Lula teria que juntar duas cabeças: a da ortodoxia econômica e a da reforma social. Está conseguindo?
José Murilo - Não está. É óbvio para todos que, por enquanto, o governo tratou de segurar a economia recorrendo à mesma política do governo anterior, presa à receita do FMI, em prejuízo quase total da agenda social. A frustração é grande. Mas deve-se concluir que Lula e o PT se transmudaram em neoliberais, traíram o eleitor, cometeram estelionato eleitoral? Tirar tal conclusão é tão precipitado como foi esperar mudanças radicais. Com razão ou não, a banca internacional estava em pânico, o real despencava, o risco Brasil disparava. E isso em boa parte devido a posições defendidas pelo próprio PT quando oposição. Seria muito arriscado alterar o rumo sem antes estabilizar o sistema. Há ainda três anos e meio para fazer pender a balança para o lado social.
- O governo briga com setores que sempre estiveram ligados ao PT. Esses setores buscarão outras formas de representação política?
José Murilo - Algum realinhamento de forças deverá acontecer. Alguns petistas sairão ou serão saídos do partido. A CUT já se dividiu entre os sindicatos do setor privado e os do setor público. Lula arriscaria ser vaiado se aparecesse nas universidades, onde a senadora Heloísa Helena é ovacionada. Tudo isso era de se esperar e não é necessariamente mau. Aliás, é bom, sacode ortodoxias, abala corporativismos. Má tem sido a atitude dos caciques do PT quando acusam correligionários que se mantiveram fiéis ao programa do partido de fazerem o jogo da direita. A atitude denuncia mentalidade ainda não totalmente afeita ao jogo democrático.
- O desempenho na área social decepcionou?
José Murilo - Lula e o PT prometeram reorientar a economia e priorizar o social para eliminar, ou pelo menos reduzir substancialmente, a persistente desigualdade social que amarra, atrofia e envergonha o país. Os resultados até agora são pífios. Em parte, pelas razões mencionadas acima, mas também por erros de concepção e incompetência gerencial. O que se passa com o assistencialista Fome Zero, lançado com tanto estardalhaço? Alguém sabe o que faz no governo a ministra da Assistência e Promoção Social? Quais são os planos para a melhoria da qualidade do ensino fundamental? Por que o MST continua invadindo terras? Estabilizado o sistema, como já está, não há mais desculpas para a falta de resultados na área social. Por eles será julgado o governo Lula.
- Que outros aspectos estão aquém do esperado?
José Murilo - Há alguma movimentação na área da segurança pública, mas ainda muito aquém do exigido pela gravidade do problema. As propostas enviadas ao Congresso não tocam em pontos chaves para acabar com a impunidade, como a reforma das polícias e do Judiciário, cujos lobbies sempre derrotaram medidas reformistas. A trombada com os artistas, sobretudo os ligados ao cinema, foi mistura de inabilidade política com concepção stalinista do que deva ser contrapartida social. Os improvisos do presidente, em especial aquele em que se colocou logo abaixo de Deus, acima do Judiciário e do Congresso, também não têm ajudado.
- Lula diz que o Brasil nunca foi tão respeitado no exterior.
José Murilo - No governo passado, o Brasil também era respeitado. O que há de novo agora é generalizada expectativa internacional em relação ao programa de reformas do governo e grande simpatia pela pessoa do presidente. Mas há deslumbramento da parte de Lula. As expectativas da turma do Fórum Social, dos grupos anti-globalização, estão murchando e os membros do G-8 já demonstraram que simpatia não é amor. Ouviram com polidez a proposta levada pelo presidente à sua reunião mas a ignoraram na declaração final. O apoio do governo ao início da Alca em 2005 também vai gerar muito desgaste interno, inclusive no próprio governo. Mas, no geral, a política externa foi bem. Ajudou o fato de a Venezuela ter saído das manchetes.
- Que outros aspectos são positivos?
José Murilo - O que desapontou foi em parte bom. O Brasil é muito complexo internamente e muito frágil externamente para ter agüentado uma guinada na política econômica, sem prévia estabilização. Os custos políticos da ortodoxia econômica têm sido muito altos, mas seis meses de arrumação não comprometerão necessariamente o resto do mandato. A guinada brusca é que poderia ter comprometido tudo. O que irritou também não tem sido de todo mau. Foi corajoso da parte do governo enfrentar de saída reformas difíceis como a da Previdência e a tributária. Sem discutir o mérito das propostas (a da Previdência pode atingir alvos errados) pode-se concordar que nessas áreas se localizam alguns dos focos de nossas desigualdades, alguns dos mais resistentes núcleos de privilégios arraigados. O exemplo mais gritante disso é sem dúvida o do Judiciário, cujo corporativismo e apego a privilégios ofendem o país.
(O Globo, 29/6)
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