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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Le Monde, sobre o Itamaraty bolsonarista (em Português)


Le grand blues des diplomates brésiliens
Por Bruno Meyerfeld, publicado originalmente no Le Monde, 5/02/2020

O homem nos abre a porta e nos recebe com um sorriso. Fecha-a em seguida e se deixa desfalecer sobre uma cadeira, desacorçoado. “Muitas pessoas aqui estão em depressão. Por enquanto estou conseguindo levar sem tomar remédios, murmura, lágrimas nos olhos, este diplomata de alto escalão do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Antes, ia todos os dias trabalhar cheio de adrenalina, enlevado. Hoje, só vou por obrigação. Até pensei em deixar tudo. É infinitamente triste ... "Dele não revelaremos nem o nome nem a função. "Desde que a extrema direita de Jair Bolsonaro está no poder, qualquer pessoa que expresse pensamento crítico é punida", deixa escapar. “É um clima de caça às bruxas.” Ainda assim, meia dúzia de outros diplomatas concordou em testemunhar ao Le Monde, na maioria das vezes de forma anônima, sobre o que considera ser a "destruição" em marcha de seu ministério. E com ele, da imagem do Brasil no mundo.
Antes de mais nada, convém lembrar a importância neste país do Ministério das Relações Exteriores, chamado de "Itamaraty", este palácio de "pedras livres" na língua indígena. Um "templo" de concreto projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer e inaugurado em 1970 sobre o eixo monumental de Brasília. Adornado com um jardim aquático e cercado por altas colunas, possui salões de prestígio e, conduzindo aos andares de cima, uma escada excepcional em forma de hélice, sem vigas ou corrimão, como que num passe de mágica.

O culto ao Itamaraty
Mas o poder do Itamaraty não se resume apenas à arquitetura. Com 222 representações no exterior (entre embaixadas e consulados), o país possui o oitavo maior serviço diplomático do planeta. Melhor do que Itália, Espanha ou Reino Unido. "Poucos países devem tanto à diplomacia", escreveu o embaixador e historiador Rubens Ricupero (autor de “A Diplomacia na Construção do Brasil”, 2016, sem tradução). Segundo ele, a instituição teria até forjado, ao longo do tempo, "certa ideia do Brasil": a de um gigante “feliz (...), em paz (...), confiante no direito e nas soluções negociadas (... ), força criadora de moderação e equilíbrio”.

O embaixador brasileiro deve ser charmoso, elegante, culto e especialista em tudo

O país, portanto, venera seus diplomatas. E seu Deus se chama José Maria da Silva Paranhos Junior, Barão de Rio Branco - Ministro das Relações Exteriores de 1902 até sua morte em 1912 - que elevou o Itamaraty à justa medida de suas ambições. Esse homem refinado, bigode aparado no estilo inglês, estabilizou as fronteiras, assinou tratados de paz com uma dezena de países vizinhos, ampliou pacificamente o território em 190.000 km2 e legitimou a jovem república aos olhos do mundo. Quando ele faleceu, em pleno carnaval, até as festividades por foram adiadas por algumas semanas.Desde então, como o “barão”, o embaixador brasileiro deve ser charmoso, elegante, culto e especialista em tudo (“clones de Filipe II da Espanha; altivos, barbudos, cultos, severos e desdenhosos" troça um diplomata europeu). Formados no Instituto Rio Branco, em Brasília, tais funcionários são recrutados em um concurso considerado o mais difícil da república: 6.400 candidatos para 20 vagas em 2019. Os “itamaratistas”, pelo menos trilíngues, dominam também tanto os textos antigos como o direito internacional e são frequentemente “emprestados” a outros ministérios, a gestões locais e até às empresas públicas. “Nós somos o “estado profundo””, resume um embaixador. Em outras palavras, aqueles que dão as cartas no jogo brasileiro.

"Perseguição ideológica"
Nessas condições, não é de surpreender que o Itamaraty tenha se tornado o alvo de Jair Bolsonaro, modesto capitão de reserva, que abomina essa "aristocracia" tão orgulhosa quanto letrada. Para piorar a situação, o Itamaraty é visto pelo governo como um ninho de esquerdistas, "um dos ministérios onde a ideologia marxista está mais arraigada", nas palavras de Eduardo Bolsonaro, filho influente do presidente. A partir daí, um expurgo, acompanhado de um sangramento, parecia aos novos donos do poder absolutamente obrigatório.
"Araújo quis se cercar de pessoas inexperientes, que lhe devem tudo e não podem contradizê-lo", disse um funcionário do ministério.
Em um ano, cinco embaixadas foram fechadas no Caribe e espera-se que mais duas ou três sejam fechadas em breve na África. O número de "secretarias" - equivalente às diretorias gerais do Quai d'Orsay na França - foi reduzido de nove para sete, e todos os seus chefes eliminados de seus cargos, substituídos por diplomatas de menor estofa e menor grau hierárquico "O novo ministro Ernesto Araujo queria se cercar de pessoas de confiança, justifica-se a administração do Itamaraty. É natural, no mundo inteiro é assim!" Mentira, respondem vários agentes do ministério solicitados por Le Monde. "Demitir todos os chefes de uma só vez é sem precedentes", diz um deles. “Araújo queria cercar-se de pessoas sem experiência, que lhe devem tudo e não podem contradizê-lo.”

"Uma reorientação estratégica do lugar do Brasil no mundo"

Segundo os diplomatas entrevistados, "perseguições ideológicas" estariam em curso, orquestradas por um gabinete que “dissemina o terror”, descrito como "totalitário" ou "inquisitorial", visando prioritariamente os "barbudinhos", esses "pequeno barbudos" saídos da esquerda, e ingressos no órgão durante as presidências de Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Dentre os casos citados, o do diplomata Audo Faleiro: nomeado em outubro de 2019 à frente da divisão "Europa" do ministério, ele foi demitido de suas funções apenas alguns dias depois de sua nomeação, como consequência da pressão de grupos de extremos direita.

"A casa ficou em silêncio"
Citando Luiz Alberto Figueiredo (no Catar), Mauro Vieira (na Croácia) e Antonio Patriota (no Egito), uma fonte constata que "todos os ministros das Relações Exteriores de Dilma foram enviados para embaixadas de segunda importância". Para alguns, é um castigo. Para outros, uma escolha. "Não ia representar esse governo de palhaços no exterior! Preferi dar um passo atrás", diz um diplomata, conhecido por sua visão mais à esquerda, que aceitou uma posição subalterna no exterior.Em Brasília, “realocados para cargos inferiores ou deixados sem encargos específicos” os ex-chefes de serviço, vêm ao ministério para tomar um café, sentar em uma cadeira, olhar para as paredes. É muito humilhante", comenta-se. Dentre esses funcionários ociosos, Paulo Roberto de Almeida é um dos poucos a testemunhar com o rosto descoberto. Ex-diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), ele foi demitido em março de 2019 por conta de postagens críticas ao Ministro, publicadas em seu blog. Desde então, esse homem de 70 anos foi "relegado" aos arquivos do ministério. "Não me foi atribuída nenhuma função específica ... por isso, venho preenchendo meu tempo da melhor maneira possível: passo o dia na biblioteca, leio, escrevo livros ...", diz ele.Enquanto isso, o Sr. Almeida - embora conhecido por suas posições à direita - diz ter perdido sua "gratificação", um complemento salarial para os chefes de departamento: "Minha renda caiu um quarto, de 26.000 [5.490" euros] para 21.000 reais [4.430 euros]”, detalha ele, denunciando um clima de “perseguição, intimidação, acrescido de vingança pessoal”. "Ninguém ousa falar livremente, os corredores estão vazios. As pessoas se trancam em seus escritórios. A casa mergulhou no silêncio."

Trump, "Salvador da Alma do Ocidente"
No Itamaraty, em um dos salões decorados com obras de arte e tapeçarias, estava até recentemente o busto de um cavalheiro austero, calvo, dotado de fino bigode: San Tiago Dantas, ministro das Relações Exteriores no início da década de 1960. Na época, ele fora o defensor de uma política externa independente, solidaria aos países em desenvolvimento e crítica dos Estados Unidos. Segundo a imprensa, sua estátua teria sido removida discretamente.
Isso se explica porque, liderada pelo ministro Ernesto Araujo, e visando a própria tradição histórica das relações exteriores do país, é lançada uma ofensiva de ordem ideológica em paralelo. Climático-cético assumido, fazedor de complôs notório, este diplomata um tanto quanto esdrúxulo, capaz de citar no mesmo discurso, Proust e uma réplica da novela, defende a construção de um eixo mundial "cristão-conservador", liderado pelo americano Donald Trump, "Salvador da alma do Ocidente". Consequência: no Itamaraty, foi criada uma nova secretaria de "soberania nacional e cidadania", enquanto que aquela o dedicada ao meio ambiente simplesmente desapareceu.
Até então motor da integração regional, o Brasil anunciou no início de 2020 sua saída da Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe (Celac). Anteriormente líder em negociações climáticas, participou ativamente do desastre da COP25 em Madri. Investido pesadamente no passado na defesa dos direitos humanos nas Nações Unidas, hoje bloqueia numerosas discussões sobre migração, gênero ou direito ao aborto.

"Vamos parar com essas besteiras!"
"A nova diplomacia brasileira é o fim do Fórum de São Paulo [organização que reúne partidos de esquerda sul-americanos] e do desalinhamento automático com os Estados Unidos", comemora Luis Fernando Serra, nomeado em 2019 embaixador do Brasil em Paris. Esse diplomata em ascensão, pressentido em determinado momento para dirigir o Itamaraty bolsonarista, evoca um simples "reequilíbrio": "Agora, com Jair Bolsonaro, temos uma diplomacia pragmática e aberta. Não estamos submetidos aos Estados Unidos e não estamos renunciamos à Europa.”
Bolsonaro coloca em questão a integração do Brasil no mundo e os fundamentos de nossa diplomacia", decifra Hussein Kalout 
Para os especialistas, o viés é óbvio: "Há um ano que o alinhamento com Washington é total e incondicional", analisa Hussein Kalout, professor de relações internacionais da Universidade de Harvard, citando o recente voto de Brasília contra o fim do embargo americano a Cuba ou o apoio de Jair Bolsonaro ao assassinato do general iraniano Soleimani. "Bolsonaro coloca em questão a integração do Brasil no mundo e os fundamentos de nossa diplomacia, fundada no multilateralismo, na resolução pacífica de conflitos e no respeito à soberania nacional. É sem precedentes", diz Kalout.Mas Araujo não dispõe do poder total. Em várias ocasiões, sob a pressão combinada do agronegócio e do exército, ele teve de recuar, interromper seus ataques à China comunista, renunciar a sair do MERCOSUL ou a mudar a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém e, foi obrigado, acima de tudo, a permanecer no Acordo de Paris sobre o Clima. “Em questões-chave, forças externas ao ministério estão se levantando para dizer: “Vamos parar com essas loucuras!’’’, observa um diplomata europeu.

"Antidiplomacia!"
"Chamo isso de antidiplomacia!”, se enfurece Celso Amorim, 77 anos, antigo grande chefe da diplomacia de Lula. Para este refinado "itamaratista", que nos recebe em seu apartamento com vista para a praia de Copacabana, cheio de livros em francês e obras de arte, “a diplomacia é resolver os problemas por meio do diálogo. Hoje, temos um discurso belicista, pode-se dizer guerreiro. Por mais que tente me recordar, mesmo durante a ditadura, nunca senti tanta vergonha na política externa do meu país", entristece-se, observando as ondas à distância, essa lembrança viva de outros áureos tempos.Mas quando a onda se for, o que restará na costa brasileira, além de um navio do Itamaraty encalhado? Antes de reabrir a porta e dizer adeus, nosso primeiro diplomata confidencia uma última vez: "É uma patrimônio nacional que está sendo dilapidado. Nosso país não é um líder natural, como a França ou os Estados Unidos. Nossa influência é relativa. Tivemos que conquistá-la. Um dia acordaremos desse pesadelo e nos perguntaremos: onde está o soft power brasileiro? Ele terá desaparecido."

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