O espectro
do globalismo: a emergência da irracionalidade oficial
Paulo Roberto de Almeida
Professor de Econômica Política nos programas de mestrado e
doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).
Um espectro ronda o Brasil, assim como
vários outros países: o espectro é esse mesmo do título, o globalismo, cujas
alegadas manifestações concretas, contra a soberania dos Estados nacionais poderiam
passar apenas e tão somente por um mero exercício de alienação acadêmica. Mas, ao
se tornar uma bandeira de oposição a um suposto processo globalista que estaria
trazendo prejuízos ao Estado e à sociedade, esse tipo de postura paranoica arrisca
causar danos irremediáveis ao país, ao se converter em programa de governo e,
no plano de sua diplomacia, em uma nova palavra de ordem para o corpo
diplomático profissional: o combate às “estruturas do pensamento globalista”. Este
curto ensaio pode ser identificado como um manifesto anti-antiglobalista, à
falta de melhor expressão. Antes, uma pequena recordação.
Naquela época, mais de quinze anos atrás,
a partir dos primeiros grupos de ativistas europeus e americanos de tendência
antiglobalizadora (os franceses preferiam se dizer alter-mundialistas), movimentos
e correntes na mesma linha disseminaram-se pelo mundo – sobretudo na América
Latina, na onda dos governos de esquerda –, passando a empreender grandes e
ruidosas manifestações de protesto contra as entidades mais representativas da
globalização: FMI, Banco Mundial, OMC, OCDE, Fórum Econômico Mundial de Davos,
cúpulas do G-7 ou quaisquer outras reuniões identificadas com o capitalismo global.
Para se contrapor de forma mais ou menos organizada a essas entidades
perversas, esses movimentos passaram a se reunir no âmbito do Fórum Social
Mundial, com muitos encontros realizados no próprio Brasil, durante os governos
do PT. Em seu primeiro ano de governo, o presidente Lula compareceu quase
simultaneamente ao encontro de Davos e à reunião do FSM em Porto Alegre, com
habilidade suficiente para ser aplaudido em ambas as ocasiões.
Como é meu hábito de estudioso, sempre
segui os debates das entidades da interdependência global, assim como os
argumentos daqueles que lhes são opostos, daí resultando uma série de ensaios,
desde meados anos 1990, cuja síntese se encontra nesse trabalho de 2004. Nele
eu examinava cada uma das alegações e acusações dos antiglobalizadores contra o
capitalismo global, demonstrando cabalmente, como aliás indicado no subtítulo
do ensaio, as contradições conceituais e insuficiências empíricas desses
ataques ingênuos, mas sobretudo os impasses políticos e econômicos a que
conduziriam as “teses” sustentadas por eles, se por acaso fossem aplicadas na
prática por governos ou entidades internacionais (algumas o foram, por regimes de
esquerda, os “bolivarianos”, por exemplo, ou expressas em textos enviesados e
politicamente desonestos, como os relatórios da Oxfam). Como era evidentemente,
desde o início, esses antiglobalizadores foram derrotados por suas próprias
contradições: dispondo das mais cômodas e modernas facilidades em comunicações
e informação, oferecidas pelas empresas do capitalismo global, eles fizeram,
nas palavras de Shakespeare, muito barulho por nada. Pouco a pouco, aquele
entusiasmo juvenil, alimentado por alguns profissionais do anticapitalismo
visceral, tornados órfãos pela implosão de todos – ou quase todos – os
“socialismos reais”, foi perdendo ímpeto e interesse, até que suas teses
bizarras já não mobilizavam praticamente ninguém.
Dei por encerrada minha atividade
didática e pedagógica nessa vertente, inclusive porque essas reuniões do FSM
foram rareando, com um alcance diáfano entre os universitários, todos eles ultra-ligados
nas últimas novidades da globalização. Em seu lugar, começou a pipocar, em
alguns sites e blogs de movimentos de direita, um novo espectro, um tal de “globalismo”,
contra o qual palavras de ordem passaram a apimentar alguns debates nessas
esferas. Não dei importância a mais essa bizarrice de novos grupos políticos,
tanto porque a globalização alimenta, justamente, todas as crendices mais
estapafúrdias que possam a surgir de mentes doentias, por profetas do
apocalipse, em alertas estridentes de arautos de algum desastre iminente.
Algo de novo, todavia, surgiu no Brasil,
durante a campanha presidencial de 2018, quando um colega diplomata passou a
sustentar ativamente o candidato da direita, escondendo sua personalidade –
depois revelada na imprensa – nas postagens surpreendentes de um blog
coincidentemente chamado de “Metapolítica 17”, por acaso o número desse
candidato, cujo subtítulo (todo um programa e manifesto político) era este:
“contra o globalismo”. Só vim a tomar conhecimento dos estranhos,
estranhíssimos, textos nele contidos, na própria noite de sua escolha, pelo
presidente eleito, como futuro chanceler do Brasil: confesso que fiquei
“imprecionado”, como diria o segundo ministro da Educação desse governo.
Estarrecido seria a palavra mais exata, já que dificilmente se poderia
acreditar que um diplomata normal, que nunca tinha revelado tais tendências
bizarras, pudesse defender causas tão estranhas quanto as do
antimultilateralismo, anticomercialismo, anticlimatismo e a do novo espectro preferido
pelos paranoicos da globalização, o antiglobalismo, justamente.
Foi aí que comecei a prestar alguma atenção
a essas “teses” antiglobalistas, tão estapafúrdias e equivocadas quanto as dos
antigos antiglobalizadores: busquei então alguma literatura de qualidade sobre
o tal de globalismo. Confesso que não achei praticamente nada, a não ser
subliteratura de baixíssima qualidade conceitual, sem qualquer fundamentação
empírica, apenas alertas desprovidos de qualquer apoio em dados concretos sobre
os supostos perigos de um assalto à soberania dos Estados nacionais, vindos de
organizações internacionais, ricaços de esquerda e representantes do chamado
“marxismo cultural”. Na verdade, o globalismo, sob a pena de estudiosos sérios,
nada mais é do que a vertente política da globalização econômica, ou seja, a
interconexão de diferentes estruturas institucionais existentes no sistema
multilateral, e conectadas aos fluxos e transferências de ativos
transnacionais: comércio de bens e serviços, investimentos diretos, movimentos
de capitais autônomos, enfim, tudo aquilo que subjaz à crescente regulação
política mundial das relações econômicas internacionais. Joseph Nye trata
extensivamente do tema em alguns de seus livros.
Em uma palavra, o globalismo é o universo
conceitual e prático no qual trabalham os diplomatas e todos os agentes
econômicos ou políticos que gravitam em torno dessas interações que se
estabelecem entre diferentes economias nacionais e Estados soberanos ao redor
de um planeta cada vez mais interligado. Atenção: mas não para os paranoicos do
antiglobalismo, que transformaram esse conceito aparentemente inocente num
horrível e malfadado espectro perverso, um monstro metafísico devotado a
retirar soberania política desses Estados e a deixá-los sob as ordens de
organismos internacionais intrusivos, submetidos aos projetos maléficos de
burocratas não eleitos. Das antigas acusações dos antiglobalizadores – o mundo
sendo dominado por gigantescas multinacionais empenhadas em abolir direitos
trabalhistas, devastar o meio ambiente, sugar os trabalhadores e países pobres
em busca de lucros usurários –, passamos agora às ridículas alegações dos
antiglobalistas, a de um mundo também dominado por estruturas gigantescas,
empenhadas na construção forçada de um governo mundial, substituindo-se à
soberania dos Estados nacionais.
Tentei achar elementos probatórios desses
cenários conspiratórios, mas confesso que tenho sido infeliz em minhas buscas,
pois a única coisa que encontrei foram slogans, alegações, alertas e
premonições, mas nenhuma evidência concreta de que essa dominação globalista
esteja sendo implementada pela ONU, suas agências especializadas, ou quaisquer
outras entidades multilaterais ou transnacionais. O mais preocupante, porém,
não é que as antecipações paranoicas estejam sendo veiculadas pelos conhecidos
profetas do apocalipse e outros alarmistas doentios, mas que elas tenham sido
incorporadas em programas de governo e estejam servindo de bandeira e
justificativa para uma luta inglória, insana e estúpida, contra o
multilateralismo e outras instâncias do globalismo normal, isto é, a do sistema
internacional construído progressivamente desde Bretton Woods e em constante
aperfeiçoamento desde então.
Custa a crer que o governo brasileiro,
pela voz e ação de vários de seus mais altos dirigentes, de representantes diplomáticos
e outros funcionários qualificados, estimulados por algumas mentes doentias que
circulam à sua volta, tenha embarcado nessas fantasias ridículas do
antiglobalismo como programa de governo, como bandeira de luta, supostamente
contra uma ameaça real aos interesses do país. O grau de irracionalismo embutido
nesse tipo de discurso é propriamente estarrecedor, sobretudo no âmbito das
relações exteriores do país e no de sua diplomacia prática.
Como diplomata de carreira, e estudioso
das relações internacionais do Brasil, inquieta-me a capacidade que têm os discípulos
de uma paranoia, sem qualquer fundamento na realidade, de projetar uma imagem
distorcida do país no plano internacional, diminuindo sua credibilidade
diplomática e projetando uma sombra de escárnio sobre nossas posturas em
relação a diversos itens da agenda mundial. Meus espaços públicos estão abertos
a um debate qualificado, bem informado, intelectualmente honesto e
empiricamente fundamentado sobre todos os fatos concretos e os elementos
conceituais que poderiam sustentar a “tese” de que o tal de globalismo – que não
vejo senão como um espectro pueril – possa, de alguma forma, trazer prejuízos
ao Brasil e à sua sociedade. Estou sempre aberto ao diálogo, como sempre estive
à época das bizarrices antiglobalizadoras, sem ter tido, de fato, oponentes
credíveis. A luta continua, desde meu quilombo de resistência intelectual.
Brasília, 1 de fevereiro de 2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário