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sábado, 1 de fevereiro de 2020

O espectro do globalismo: a emergência da irracionalidade oficial - Paulo Roberto de Almeida

O espectro do globalismo: a emergência da irracionalidade oficial

Paulo Roberto de Almeida
Professor de Econômica Política nos programas de mestrado e doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

Um espectro ronda o Brasil, assim como vários outros países: o espectro é esse mesmo do título, o globalismo, cujas alegadas manifestações concretas, contra a soberania dos Estados nacionais poderiam passar apenas e tão somente por um mero exercício de alienação acadêmica. Mas, ao se tornar uma bandeira de oposição a um suposto processo globalista que estaria trazendo prejuízos ao Estado e à sociedade, esse tipo de postura paranoica arrisca causar danos irremediáveis ao país, ao se converter em programa de governo e, no plano de sua diplomacia, em uma nova palavra de ordem para o corpo diplomático profissional: o combate às “estruturas do pensamento globalista”. Este curto ensaio pode ser identificado como um manifesto anti-antiglobalista, à falta de melhor expressão. Antes, uma pequena recordação.
Um de meus trabalhos mais acessados, em toda a história da livre divulgação de meus textos, em diversas plataformas, foi um produzido e liberado em 2004, mas que só veio a tomar impulso exponencial uma década atrás, aproximadamente, quando um curso online de relações internacionais o adotou como texto-base: “Contra a antiglobalização: contradições, insuficiências e impasses do movimento antiglobalizador” (disponível, entre outras fontes, na plataforma Academia.edu; link: https://www.academia.edu/5873102/1297_Contra_a_antiglobalização_Contradições_insuficiências_e_impasses_do_movimento_antiglobalizador_2004_).
Naquela época, mais de quinze anos atrás, a partir dos primeiros grupos de ativistas europeus e americanos de tendência antiglobalizadora (os franceses preferiam se dizer alter-mundialistas), movimentos e correntes na mesma linha disseminaram-se pelo mundo – sobretudo na América Latina, na onda dos governos de esquerda –, passando a empreender grandes e ruidosas manifestações de protesto contra as entidades mais representativas da globalização: FMI, Banco Mundial, OMC, OCDE, Fórum Econômico Mundial de Davos, cúpulas do G-7 ou quaisquer outras reuniões identificadas com o capitalismo global. Para se contrapor de forma mais ou menos organizada a essas entidades perversas, esses movimentos passaram a se reunir no âmbito do Fórum Social Mundial, com muitos encontros realizados no próprio Brasil, durante os governos do PT. Em seu primeiro ano de governo, o presidente Lula compareceu quase simultaneamente ao encontro de Davos e à reunião do FSM em Porto Alegre, com habilidade suficiente para ser aplaudido em ambas as ocasiões.
Como é meu hábito de estudioso, sempre segui os debates das entidades da interdependência global, assim como os argumentos daqueles que lhes são opostos, daí resultando uma série de ensaios, desde meados anos 1990, cuja síntese se encontra nesse trabalho de 2004. Nele eu examinava cada uma das alegações e acusações dos antiglobalizadores contra o capitalismo global, demonstrando cabalmente, como aliás indicado no subtítulo do ensaio, as contradições conceituais e insuficiências empíricas desses ataques ingênuos, mas sobretudo os impasses políticos e econômicos a que conduziriam as “teses” sustentadas por eles, se por acaso fossem aplicadas na prática por governos ou entidades internacionais (algumas o foram, por regimes de esquerda, os “bolivarianos”, por exemplo, ou expressas em textos enviesados e politicamente desonestos, como os relatórios da Oxfam). Como era evidentemente, desde o início, esses antiglobalizadores foram derrotados por suas próprias contradições: dispondo das mais cômodas e modernas facilidades em comunicações e informação, oferecidas pelas empresas do capitalismo global, eles fizeram, nas palavras de Shakespeare, muito barulho por nada. Pouco a pouco, aquele entusiasmo juvenil, alimentado por alguns profissionais do anticapitalismo visceral, tornados órfãos pela implosão de todos – ou quase todos – os “socialismos reais”, foi perdendo ímpeto e interesse, até que suas teses bizarras já não mobilizavam praticamente ninguém.
Dei por encerrada minha atividade didática e pedagógica nessa vertente, inclusive porque essas reuniões do FSM foram rareando, com um alcance diáfano entre os universitários, todos eles ultra-ligados nas últimas novidades da globalização. Em seu lugar, começou a pipocar, em alguns sites e blogs de movimentos de direita, um novo espectro, um tal de “globalismo”, contra o qual palavras de ordem passaram a apimentar alguns debates nessas esferas. Não dei importância a mais essa bizarrice de novos grupos políticos, tanto porque a globalização alimenta, justamente, todas as crendices mais estapafúrdias que possam a surgir de mentes doentias, por profetas do apocalipse, em alertas estridentes de arautos de algum desastre iminente.
Algo de novo, todavia, surgiu no Brasil, durante a campanha presidencial de 2018, quando um colega diplomata passou a sustentar ativamente o candidato da direita, escondendo sua personalidade – depois revelada na imprensa – nas postagens surpreendentes de um blog coincidentemente chamado de “Metapolítica 17”, por acaso o número desse candidato, cujo subtítulo (todo um programa e manifesto político) era este: “contra o globalismo”. Só vim a tomar conhecimento dos estranhos, estranhíssimos, textos nele contidos, na própria noite de sua escolha, pelo presidente eleito, como futuro chanceler do Brasil: confesso que fiquei “imprecionado”, como diria o segundo ministro da Educação desse governo. Estarrecido seria a palavra mais exata, já que dificilmente se poderia acreditar que um diplomata normal, que nunca tinha revelado tais tendências bizarras, pudesse defender causas tão estranhas quanto as do antimultilateralismo, anticomercialismo, anticlimatismo e a do novo espectro preferido pelos paranoicos da globalização, o antiglobalismo, justamente.
Foi aí que comecei a prestar alguma atenção a essas “teses” antiglobalistas, tão estapafúrdias e equivocadas quanto as dos antigos antiglobalizadores: busquei então alguma literatura de qualidade sobre o tal de globalismo. Confesso que não achei praticamente nada, a não ser subliteratura de baixíssima qualidade conceitual, sem qualquer fundamentação empírica, apenas alertas desprovidos de qualquer apoio em dados concretos sobre os supostos perigos de um assalto à soberania dos Estados nacionais, vindos de organizações internacionais, ricaços de esquerda e representantes do chamado “marxismo cultural”. Na verdade, o globalismo, sob a pena de estudiosos sérios, nada mais é do que a vertente política da globalização econômica, ou seja, a interconexão de diferentes estruturas institucionais existentes no sistema multilateral, e conectadas aos fluxos e transferências de ativos transnacionais: comércio de bens e serviços, investimentos diretos, movimentos de capitais autônomos, enfim, tudo aquilo que subjaz à crescente regulação política mundial das relações econômicas internacionais. Joseph Nye trata extensivamente do tema em alguns de seus livros.
Em uma palavra, o globalismo é o universo conceitual e prático no qual trabalham os diplomatas e todos os agentes econômicos ou políticos que gravitam em torno dessas interações que se estabelecem entre diferentes economias nacionais e Estados soberanos ao redor de um planeta cada vez mais interligado. Atenção: mas não para os paranoicos do antiglobalismo, que transformaram esse conceito aparentemente inocente num horrível e malfadado espectro perverso, um monstro metafísico devotado a retirar soberania política desses Estados e a deixá-los sob as ordens de organismos internacionais intrusivos, submetidos aos projetos maléficos de burocratas não eleitos. Das antigas acusações dos antiglobalizadores – o mundo sendo dominado por gigantescas multinacionais empenhadas em abolir direitos trabalhistas, devastar o meio ambiente, sugar os trabalhadores e países pobres em busca de lucros usurários –, passamos agora às ridículas alegações dos antiglobalistas, a de um mundo também dominado por estruturas gigantescas, empenhadas na construção forçada de um governo mundial, substituindo-se à soberania dos Estados nacionais.
Tentei achar elementos probatórios desses cenários conspiratórios, mas confesso que tenho sido infeliz em minhas buscas, pois a única coisa que encontrei foram slogans, alegações, alertas e premonições, mas nenhuma evidência concreta de que essa dominação globalista esteja sendo implementada pela ONU, suas agências especializadas, ou quaisquer outras entidades multilaterais ou transnacionais. O mais preocupante, porém, não é que as antecipações paranoicas estejam sendo veiculadas pelos conhecidos profetas do apocalipse e outros alarmistas doentios, mas que elas tenham sido incorporadas em programas de governo e estejam servindo de bandeira e justificativa para uma luta inglória, insana e estúpida, contra o multilateralismo e outras instâncias do globalismo normal, isto é, a do sistema internacional construído progressivamente desde Bretton Woods e em constante aperfeiçoamento desde então.
Custa a crer que o governo brasileiro, pela voz e ação de vários de seus mais altos dirigentes, de representantes diplomáticos e outros funcionários qualificados, estimulados por algumas mentes doentias que circulam à sua volta, tenha embarcado nessas fantasias ridículas do antiglobalismo como programa de governo, como bandeira de luta, supostamente contra uma ameaça real aos interesses do país. O grau de irracionalismo embutido nesse tipo de discurso é propriamente estarrecedor, sobretudo no âmbito das relações exteriores do país e no de sua diplomacia prática.
Como diplomata de carreira, e estudioso das relações internacionais do Brasil, inquieta-me a capacidade que têm os discípulos de uma paranoia, sem qualquer fundamento na realidade, de projetar uma imagem distorcida do país no plano internacional, diminuindo sua credibilidade diplomática e projetando uma sombra de escárnio sobre nossas posturas em relação a diversos itens da agenda mundial. Meus espaços públicos estão abertos a um debate qualificado, bem informado, intelectualmente honesto e empiricamente fundamentado sobre todos os fatos concretos e os elementos conceituais que poderiam sustentar a “tese” de que o tal de globalismo – que não vejo senão como um espectro pueril – possa, de alguma forma, trazer prejuízos ao Brasil e à sua sociedade. Estou sempre aberto ao diálogo, como sempre estive à época das bizarrices antiglobalizadoras, sem ter tido, de fato, oponentes credíveis. A luta continua, desde meu quilombo de resistência intelectual.


Brasília, 1 de fevereiro de 2020

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