1ª juíza brasileira a presidir tribunal da ONU diz desejar ‘abrir caminhos’
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postado em 20 de novembro de 2020
No final de 2015, a juíza Martha Halfeld de Mendonça Schmidt, da 3ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora, em Minas, sofreu o que ela própria gosta de chamar de um ‘golpe de sorte’. Navegando pelo Facebook, se deparou com o anúncio de quatro vagas abertas no Tribunal de Apelações da Organização Mundial das Nações Unidas (ONU).
“Foi pelo perfil de um juiz colega meu que, na época, era diretor de assuntos internacionais da Associação dos Magistrados Brasileiros. Eu vi aquela notícia: ‘ONU seleciona juízes para seus tribunais internos’ e fui conferir no site”, contou em entrevista por vídeo à reportagem. “Era aquilo mesmo, só que as inscrições fechavam três dias depois. Então foi uma loucura”, completou.
Com uma bagagem de mais de quase duas décadas na magistratura e experiências de mestrado e doutorado na França, Martha passou na seleção como a candidata mais votada na Assembleia Geral da ONU em novembro daquele ano e se tornou a primeira brasileira a ocupar uma das sete cadeiras na Corte. Para isso, além das provas e entrevistas, costurou uma articulação política com apoio do Itamaraty, do então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, e de outros nomes de tribunais superiores e do Executivo. Associações nacionais de magistrados e personalidades do mundo Jurídico, nacional e internacional, também apoiaram sua candidatura.
Depois de quatro anos como juíza do Tribunal de Apelação, a juiz-forana está prestes a assumir a presidência da Corte. O mandado começa em 1º de janeiro de 2021 e vai até o final do mesmo ano.
“Na presidência, eu quero tentar honrar essa tradição brasileira de boa diplomacia, com gentileza, com respeitabilidade, com honestidade, com boa-fé, que é a marca de diplomacia brasileira”, planeja a magistrada.
O Tribunal de Apelação da ONU tem como atribuição julgar, em segunda instância, causas trabalhistas e administrativas envolvendo funcionários e colaboradores da entidade. O sistema foi concebido para tornar mais transparente, independente e profissional o sistema de administração de justiça da ONU e para atender aos quadros da organização, que tem imunidade de jurisdição, ou seja, não se submete à Justiça de nenhum país.
“Eu sempre fui servidora e depois juíza da Justiça do Trabalho e na ONU eu tive que dar uma virada para o Direito Administrativo, isso foi um desafio muito grande”, conta Martha sobre os primeiros anos no tribunal.
O colegiado se reúne em três sessões anuais, de duas semanas cada, na sede da ONU, em Nova Iorque, ou em outras jurisdições, como nas filiais em Genebra, na Suíça, e Nairobi, no Quênia. Como não existe uma ‘Constituição da ONU’, cada julgamento envolve horas de discussão, dentro e às vezes fora do plenário, entre os juízes que compõem a Corte – atualmente, além da brasileira, um sul-africano, uma alemã, um grego, uma neozelandesa, uma canadense e um belga.
“É um aprendizado de um ‘Direito novo’ que a gente compreende no cotidiano, porque cada agência das Nações Unidas tem um Direito específico. A gente não tem uma faculdade para estudar esse ‘Direito novo’. Então a gente tem que estudar dentro do caso concreto qual a legislação aplicável. Isso supõe uma pesquisa e uma preparação prévia”, diz sobre a rotina. “As formações jurídicas são diferentes. A gente tem que associar os diversos sistemas jurídicos com as culturas próprias dos juízes. Sem falar que a gente julga, às vezes na mesma sessão, o caso de servidor altamente qualidade de Nova Iorque e um capacete azul da África. É como um caldeirão de diversidade e a gente tem que tentar solucionar aquele caso de uma forma adequada e aceita por todos como viável. Tem participação coletiva o tempo inteiro”, explica.
Ao revisitar as memórias dos julgamentos em busca de uma história que traduza o choque cultural de compor um tribunal internacional, Martha lembra de uma de suas primeiras sessões.
“Eu era relatora do caso. Estudei bastante e levei a minha sugestão de decisão para apreciação pelos membros da turma”, contextualiza. “Eles não concordaram e chegaram a uma conclusão totalmente contrária. Eu fui vencida, digamos assim, mas não convencida. De tal forma que eu resolvi escrever um voto divergente, mas como eu era relatora, também tive que escrever o voto majoritário. Foi um exercício dentro de mim, porque na jurisdição nacional, normalmente, quem vence escreve o voto. Mas lá eu tive que defender o ponto de vista contrário. Foi um exercício de humildade e me deu uma propulsão para melhorar a minha capacidade de comunicação e persuasão em outra língua”, lembra.
Outra diferença marcante para a jurisdição brasileira é a confidencialidade dos julgamentos. As sessões são feitas a portas fechadas, embora os fundamentos sejam publicados quando os juízes chegam a uma decisão. “É bem diferente dos julgamentos nacionais que são televisionados”, conta.
Martha diz que encara a experiência como ‘uma aventura com responsabilidade’. “Traz um tipo de motivação extra, é um desafio diferente”, avalia. “A carreira de magistratura no Brasil é apaixonante, eu amo o que eu faço aqui, mas eu comecei a trabalhar muito cedo e eu não considero realísticas as minhas chances de promoção. Então, é uma oportunidade de, ao mesmo tempo, viver outros ares, ter uma outra experiência, uma aventura com responsabilidade, mas ao mesmo tempo enriquecer a profissão daqui e enriquecer a ONU com a nossa contribuição”, diz.
Como o trabalho no tribunal da ONU não demanda dedicação exclusiva, Martha segue como juíza na 3ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora. Como magistrada, adota uma linha de defesa da resolução consensual de litígios.
“Muitas vezes os conflitos têm origem não no que está ali perante o juiz, mas em alguma coisa que está ali subjacente. Eu percebi com a prática, isso depois de muitos anos de magistratura, que se a gente tiver uma ocasião, uma oportunidade de restabelecer o diálogo entre as partes conflitantes, muitas vezes elas próprias chegam a uma solução que às vezes é melhor que o julgamento. Porque o julgamento resolve o caso, põe fim estatisticamente ao processo, mas muitas vezes não resolve o conflito, não atende à necessidade humana de respeitabilidade”, defende.
No tribunal internacional, Martha tem mandato até 2023, sem possibilidade de renovação. Segundo a juíza, seu maior desejo é inspirar outros brasileiros que tenham vontade de construir uma carreira internacional.
“Eu espero que a minha atuação lá sirva para abrir caminho para outros brasileiros, latinoamericanos e, de modo geral, de países em desenvolvimento. Claro que tem toda uma trajetória, toda uma carreira pretérita que embasa e dá legitimidade para a candidatura. Mas se o meu percurso puder servir de inspiração para outras candidaturas eu vou ficar bem feliz. Esse é o meu objetivo: abrir caminhos”, conclui.
“Foi pelo perfil de um juiz colega meu que, na época, era diretor de assuntos internacionais da Associação dos Magistrados Brasileiros. Eu vi aquela notícia: ‘ONU seleciona juízes para seus tribunais internos’ e fui conferir no site”, contou em entrevista por vídeo à reportagem. “Era aquilo mesmo, só que as inscrições fechavam três dias depois. Então foi uma loucura”, completou.
Com uma bagagem de mais de quase duas décadas na magistratura e experiências de mestrado e doutorado na França, Martha passou na seleção como a candidata mais votada na Assembleia Geral da ONU em novembro daquele ano e se tornou a primeira brasileira a ocupar uma das sete cadeiras na Corte. Para isso, além das provas e entrevistas, costurou uma articulação política com apoio do Itamaraty, do então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, e de outros nomes de tribunais superiores e do Executivo. Associações nacionais de magistrados e personalidades do mundo Jurídico, nacional e internacional, também apoiaram sua candidatura.
Depois de quatro anos como juíza do Tribunal de Apelação, a juiz-forana está prestes a assumir a presidência da Corte. O mandado começa em 1º de janeiro de 2021 e vai até o final do mesmo ano.
“Na presidência, eu quero tentar honrar essa tradição brasileira de boa diplomacia, com gentileza, com respeitabilidade, com honestidade, com boa-fé, que é a marca de diplomacia brasileira”, planeja a magistrada.
O Tribunal de Apelação da ONU tem como atribuição julgar, em segunda instância, causas trabalhistas e administrativas envolvendo funcionários e colaboradores da entidade. O sistema foi concebido para tornar mais transparente, independente e profissional o sistema de administração de justiça da ONU e para atender aos quadros da organização, que tem imunidade de jurisdição, ou seja, não se submete à Justiça de nenhum país.
“Eu sempre fui servidora e depois juíza da Justiça do Trabalho e na ONU eu tive que dar uma virada para o Direito Administrativo, isso foi um desafio muito grande”, conta Martha sobre os primeiros anos no tribunal.
O colegiado se reúne em três sessões anuais, de duas semanas cada, na sede da ONU, em Nova Iorque, ou em outras jurisdições, como nas filiais em Genebra, na Suíça, e Nairobi, no Quênia. Como não existe uma ‘Constituição da ONU’, cada julgamento envolve horas de discussão, dentro e às vezes fora do plenário, entre os juízes que compõem a Corte – atualmente, além da brasileira, um sul-africano, uma alemã, um grego, uma neozelandesa, uma canadense e um belga.
“É um aprendizado de um ‘Direito novo’ que a gente compreende no cotidiano, porque cada agência das Nações Unidas tem um Direito específico. A gente não tem uma faculdade para estudar esse ‘Direito novo’. Então a gente tem que estudar dentro do caso concreto qual a legislação aplicável. Isso supõe uma pesquisa e uma preparação prévia”, diz sobre a rotina. “As formações jurídicas são diferentes. A gente tem que associar os diversos sistemas jurídicos com as culturas próprias dos juízes. Sem falar que a gente julga, às vezes na mesma sessão, o caso de servidor altamente qualidade de Nova Iorque e um capacete azul da África. É como um caldeirão de diversidade e a gente tem que tentar solucionar aquele caso de uma forma adequada e aceita por todos como viável. Tem participação coletiva o tempo inteiro”, explica.
Ao revisitar as memórias dos julgamentos em busca de uma história que traduza o choque cultural de compor um tribunal internacional, Martha lembra de uma de suas primeiras sessões.
“Eu era relatora do caso. Estudei bastante e levei a minha sugestão de decisão para apreciação pelos membros da turma”, contextualiza. “Eles não concordaram e chegaram a uma conclusão totalmente contrária. Eu fui vencida, digamos assim, mas não convencida. De tal forma que eu resolvi escrever um voto divergente, mas como eu era relatora, também tive que escrever o voto majoritário. Foi um exercício dentro de mim, porque na jurisdição nacional, normalmente, quem vence escreve o voto. Mas lá eu tive que defender o ponto de vista contrário. Foi um exercício de humildade e me deu uma propulsão para melhorar a minha capacidade de comunicação e persuasão em outra língua”, lembra.
Outra diferença marcante para a jurisdição brasileira é a confidencialidade dos julgamentos. As sessões são feitas a portas fechadas, embora os fundamentos sejam publicados quando os juízes chegam a uma decisão. “É bem diferente dos julgamentos nacionais que são televisionados”, conta.
Martha diz que encara a experiência como ‘uma aventura com responsabilidade’. “Traz um tipo de motivação extra, é um desafio diferente”, avalia. “A carreira de magistratura no Brasil é apaixonante, eu amo o que eu faço aqui, mas eu comecei a trabalhar muito cedo e eu não considero realísticas as minhas chances de promoção. Então, é uma oportunidade de, ao mesmo tempo, viver outros ares, ter uma outra experiência, uma aventura com responsabilidade, mas ao mesmo tempo enriquecer a profissão daqui e enriquecer a ONU com a nossa contribuição”, diz.
Como o trabalho no tribunal da ONU não demanda dedicação exclusiva, Martha segue como juíza na 3ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora. Como magistrada, adota uma linha de defesa da resolução consensual de litígios.
“Muitas vezes os conflitos têm origem não no que está ali perante o juiz, mas em alguma coisa que está ali subjacente. Eu percebi com a prática, isso depois de muitos anos de magistratura, que se a gente tiver uma ocasião, uma oportunidade de restabelecer o diálogo entre as partes conflitantes, muitas vezes elas próprias chegam a uma solução que às vezes é melhor que o julgamento. Porque o julgamento resolve o caso, põe fim estatisticamente ao processo, mas muitas vezes não resolve o conflito, não atende à necessidade humana de respeitabilidade”, defende.
No tribunal internacional, Martha tem mandato até 2023, sem possibilidade de renovação. Segundo a juíza, seu maior desejo é inspirar outros brasileiros que tenham vontade de construir uma carreira internacional.
“Eu espero que a minha atuação lá sirva para abrir caminho para outros brasileiros, latinoamericanos e, de modo geral, de países em desenvolvimento. Claro que tem toda uma trajetória, toda uma carreira pretérita que embasa e dá legitimidade para a candidatura. Mas se o meu percurso puder servir de inspiração para outras candidaturas eu vou ficar bem feliz. Esse é o meu objetivo: abrir caminhos”, conclui.
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